Cientistas do Laboratório Nacional Lawrence Livermore, na Califórnia, anunciaram em dezembro que haviam realizado na Terra algo que é comum nas estrelas: fundido isótopos de hidrogênio, liberando mais energia na reação do que a energia gasta na ignição. O anúncio foi acompanhado de ressalvas para deixar claro que a fusão nuclear usável ainda está a décadas de distância.
Mas o fato de que a fusão nuclear não vai mudar nosso sistema energético no próximo ano não significa que ela não deva mudar nossas ambições energéticas para os próximos anos.
Há três metas que uma sociedade pode ter para seu uso de energia. Uma é consumir menos. Pode-se dizer que ela ganhou força na década de 1970. O slogan fundamental é "reduzir, reutilizar, reciclar", acompanhado de instrução frequentemente ignorada de que há uma razão para "reduzir" vir primeiro. Hoje essa ambição persiste no pensamento dos proponentes do decrescimento e outros para os quais a humanidade estará flertando com a calamidade se não respeitarmos nossos limites e abrirmos mão das fantasias de crescimento eterno.
A segunda meta é consumir o que consumimos hoje, mas fazê-lo melhor. A política climática moderna hoje a enfoca. A visão da descarbonização –que hoje está sendo promovida por meio de políticas públicas como a Lei de Redução da Inflação— é manter mais ou menos os mesmos padrões energéticos de hoje, mas passar para fontes não poluentes, como eólica e solar.
A descarbonização nessa velocidade e escala é um empreendimento tão tremendo que é difícil olhar para mais além dele, para a terceira meta possível: um mundo de abundância energética.
Em seu livro fascinante e frustrante "Where Is My Flying Car?" (onde está meu carro voador, em tradução livre), J. Storrs Hall argumenta que não nos damos conta de quanto nos custaram nossas ambições energéticas diminuídas. Nos séculos 18, 19 e 20, a energia que a humanidade podia atrelar cresceu 7% a cada ano. Hall escreve que a força energética consolidada da humanidade alimentou "o otimismo e a melhoria constante da vida no século 19 e na primeira metade do século 20".
Mas essa curva começou a se achatar a partir de mais ou menos 1970, especialmente nos países ricos, que começaram a produzir mais gastando menos. Em 1979, os americanos consumiram 10,8 kilowatts per capita. Em 2019, consumimos 9,2. Um conservacionista enxergará isso como progresso, embora esteja longe de ser o suficiente, como confirmarão as emissões de dióxido de carbono. Para Hall, foi uma catástrofe civilizacional.
O carro voador ao qual alude o título do livro simboliza tudo que nos foi prometido em meados do século 20, mas que ainda não temos: carros voadores, é claro, mas também bases lunares, foguetes nucleares, baterias atômicas, nanotecnologia, cidades submarinas, viagens aéreas supersônicas a preços acessíveis e assim por diante.
Hall reúne essas previsões e muitas outras de escritores e profetas de ficção científica de meados do século passado e as classifica segundo o custo energético. O que ele descobre é que, de modo geral, as maravilhas que conseguimos concretizar –a internet, os smartphones, teleconferências, a Wikipedia, TVs de tela plana, streaming, vacinas de mRNA, IA— consomem relativamente pouca energia, enquanto as maravilhas que não realizamos exigiriam energia em escala enorme.
Mas elas são possíveis. Já colocamos muitos protótipos de carros voadores no ar ao longo das décadas. As crises hídricas do futuro poderiam ser resolvidas pela dessalinização em grande escala. O transporte aéreo supersônico é um problema tecnológico resolvido. Bases lunares estão perfeitamente dentro dos limites do possível. O caminho que o físico laureado com o Nobel Richard Feynman delineou para a nanotecnologia –construir máquinas capazes de construir máquinas menores, que serão capazes de construir máquinas menores, que serão capazes... Bem, você entendeu —ainda parece plausível.
O que precisamos é de energia –muito, muito mais energia. Mas Hall acha que viramos uma sociedade "ergofóbica", que ele define como uma sociedade dominada "pela ideia quase inexplicável de que há algo de errado em usar energia".
Nesse ponto o livro de Hall exala desdém por qualquer pessoa que não fuja do caminho dos industriais de hoje. Ele vai procurar em textos antigos de H.G. Wells a metáfora certa para descrever onde nossa civilização começou a se mover lateralmente e a encontra nos preguiçosos Elois, uma raça pós-humana que desabou nos confortos da abundância. Para ele, o verdadeiro conflito não opõe os que têm riqueza aos que não a têm, mas aqueles que realizam aos que não realizam.
"Os que nada fazem são a favor da estagnação e se contentam em converter nossa civilização em um coletivo de ociosos que não saem do sofá", escreve. E, para ele, os que nada fazem estão vencendo.
Eu descreveria "Where Is My Flying Car?" como futurismo reacionário. O livro defende o progresso que a tecnologia pode proporcionar; não suporta humanos molengas que são obstáculos ao futuro. Não há nada de inexplicável no modo como um país após outro procurou conservar energia e por que isso continua a ser uma meta. Uma lista parcial de explicações incluiria os rios poluídos, as cidades sufocadas pela poluição, a chegada acidentada da mudança climática, a extinção em massa em curso e os custos geopolíticos da dependência de petróleo da Arábia Saudita e de gás da Rússia.
Hall dá pouca importância a isso, descrevendo a mudança climática como um problema de importância menor e enfocando em vez disso a vilania de advogados, reguladores e hippies. Ele lamenta que o advento das armas nucleares tenha tornado a guerra tão custosa que "provocou um curto-circuito do processo evolutivo" em que "uma sociedade que descambasse para práticas culturais ou governamentais ineficientes provavelmente seria rapidamente conquistada pelo barão vizinho".
As teorias sociopolíticas de Hall são tão frágeis quanto são cuidadosas suas análises técnicas. Seu livro dá a entender que países com setores públicos pequenos ultrapassariam seus pares estadistas no quesito de inovações e que países ameaçados por vizinhos violentos seriam mais bem governados e mais tecnologicamente avançados que os EUA.
Um de seus argumentos centrais é que, paradoxalmente, recursos e atenção do governo criam obstáculos às tecnologias. Entretanto –curiosamente, em se tratando de um livro sobre energia—, ele tem pouco a dizer sobre os espantosos avanços na energia solar, eólica e de baterias que vem sendo impulsionada por políticas públicas. Ele prevê que, se a energia solar e eólica "realmente se mostrar usável em grande escala", os ambientalistas se voltarão contra ela.
"As objeções deles na realidade não têm nada a ver com poluição, radiação, riscos ou aquecimento global", ele escreve. "Elas visam manter a energia abundante e barata inacessível às pessoas comuns."
Mas nessa parte do multiverso quase todas as organizações ambientalistas destacadas lutaram para fazer aprovar a Lei de Redução da Inflação, que foi na realidade a lei "de uso da energia solar e eólica em toda parte e de investimento em todas as tecnologias energéticas possíveis". E, se as entidades tivessem conseguido seu intento, a lei teria sido muito mais abrangente e bem financiada.
Mesmo assim, vale a pena fazer o esforço de ler o livro de Hall, porque ele tem razão sobre duas coisas importantes. Primeiro, que o achatamento da curva energética foi um momento de grande significado cultural e que merece ser reanalisado. Segundo, que muitos políticos abandonaram qualquer visão real do futuro de longo prazo. Frequentemente demais a direita enxerga apenas as glórias imaginadas do passado, enquanto a esquerda enxerga apenas as injustiças do presente. O futuro existe em nossas políticas públicas principalmente para dar forma aos nossos temores e urgência às nossas agendas. Perdemos de vista o mundo que seria possibilitado pela energia abundante e limpa.
A notável explosão de prosperidade e potencial que definiu as últimas centenas de anos tem sido definida pela energia. "Pense em qualquer variável do bem-estar humano –longevidade, nutrição, renda, mortalidade, população total— e trace um gráfico de seu valor ao longo do tempo", escreve Charles Mann em "The Wizard and the Prophet". "Em quase todos os casos ela terá se mantido mais ou menos igual, em nível baixo, por milhares de anos, e então subido repentinamente nos séculos 18 e 19, quando os humanos aprenderam a usar a energia solar contida no carvão mineral, petróleo e gás natural."
Sem energia, mesmo o esplendor material tem limitações grandes. Mann destaca que, em fevereiro de 1695, pessoas que visitavam o Palácio de Versalhes admiraram os casacos de pele usados por quem jantava com o rei e se surpreenderam com o gelo que se formava sobre os cálices de vidro. A temperatura em Versalhes era gelada, e riqueza nenhuma podia resolver o problema. Cem anos mais tarde, Thomas Jefferson tinha uma adega e biblioteca enormes em sua residência de Monticello, na Virgínia, e contava com o trabalho forçado de centenas de escravos, mas nem por isso a tinta deixava de congelar em seus tinteiros no inverno.
Hoje o aquecimento é um problema resolvido para muitos. Mas não para todos. Há poucas desigualdades mais básicas que a desigualdade energética. O demógrafo Hans Rosling exemplifica isso de modo interessante. Ele argumentou em 2010 que seria possível separar a humanidade em grupos conforme a energia à qual as pessoas tinham acesso. Na época, 2 bilhões de pessoas tinham pouco ou nenhum acesso à eletricidade e ainda usavam lenha para cozinhar e aquecer água. Três bilhões de pessoas tinham acesso a eletricidade suficiente para manter luzes elétricas acesas. Cerca de 1 bilhão dispunham de energia e renda suficientes para usar aparelhos que poupam trabalho manual, como lavadoras de roupa. Apenas o bilhão mais rico tinha meios para viajar de avião, e essas pessoas –nós— consumíamos metade da energia global.
A primeira razão para almejarmos a abundância energética é colocar a energia e as dádivas que ela traz ao alcance de todos. Rosling explicou isso muito bem, descrevendo como sua mãe colocava a roupa suja para lavar na máquina e então o levava à biblioteca, usando o tempo que no passado gastara lavando roupas à mão para estudar inglês. "Essa é a mágica", disse ele. "Você enche a máquina de roupa suja, e o que sai da máquina? Livros." Não existe nenhuma estratégia de assistência global que poderíamos usar que teria tanto efeito quanto tornar a energia radicalmente mais barata, constante e disponível.
E há tudo que poderíamos fazer se tivéssemos a energia barata, limpa e abundante necessária. Num artigo em que imaginam a "superabundância energética", Austin Vernon e Eli Dourado delineiam algumas das possibilidades de curto prazo. "Voos que levam 15 horas num jato 747 poderiam ser feitos em uma hora num foguete", escrevem. Estufas verticais poderiam alimentar muito mais pessoas, e a dessalinização, que hoje contribui para uma parcela importante da água consumida em Singapura e Israel, passaria a ser acessível aos países mais pobres e populosos que mais necessitam de novas fontes de água doce. A remoção direta de dióxido de carbono do ar se tornaria mais viável, oferecendo-nos um caminho para reverter a mudança climática com o tempo.
A definição que Vernon e Dourado fazem da superabundância energética é modesta: para eles, seria que cada pessoa na Terra tivesse acesso ao dobro da energia consumida anualmente pelos habitantes da Islândia. Mas e se a fusão ou outras tecnologias nos derem energia que se torne funcionalmente ilimitada?
"Daqui a cem ou 200 anos, tudo estará radicalmente diferente", disse-me Melissa Lott, diretora de pesquisas do Centro de Política Energética Global da universidade Columbia. "As pessoas olharão para trás e se espantarão ao ver como usamos a energia hoje. Dirão: ‘Sério mesmo, vocês simplesmente a queimavam?’."
Tradução de Clara Allain
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