Leandro Karnal
22 de dezembro de 2019 | 05h00
Começamos a nos despedir da segunda década do século 21. Historicamente, existe uma tendência antiga de se considerar o momento em que se vive como de crise profunda e de decadência. Com raros momentos de otimismo, o mundo está em declínio desde a inauguração das pirâmides de Gizé. De Boécio no século 6º a Freud no 20, sempre houve quem alertasse seus contemporâneos sobre ruínas, desilusões, fim de utopias ou um mal-estar na civilização. O rastro vai longe. O segundo Templo de Jerusalém, reconstruído após a tragédia da invasão da Babilônia, era pálida sombra do anterior construído por Salomão. O projeto de obras de Herodes, o grande, tinha um sentido de cooptação política, mas sempre seria um Santo dos Santos sem a Arca da Aliança. O passado sempre foi e será visto como mais glorioso, opulento, pacífico e, acima de tudo, mais culto.
Estabelecido o fundo moral da construção de uma ideia de decadência, sejamos objetivos. Estamos diante de um imenso e necessário debate sobre financiamento cultural. Os modelos oficiais com renúncias fiscais, apoios públicos e a participação (outrora dominante) de empresas estatais, como a Petrobrás, estão sob ataque ou com dificuldades para obter recursos. Mesmo os tradicionais centros culturais de bancos públicos sofrem investidas. O episódio da exposição do Santander em Porto Alegre (2017) mostrou que o debate também envolve, além do financiamento, a ideia de decidir que tipo de arte ou expressão cultural pode e deve ser trazida ao público (e para qual público). No fundo, sempre a mesma questão: quem controlaria a orientação cultural? Seria uma crise de política cultural ou um exercício de poder?
Houve algo similar há 30 anos. O presidente Collor extinguiu a Embrafilme e tivemos uma seca violenta na produção cinematográfica. O mercado cinematográfico teve de se reorganizar. Algumas lacunas foram preenchidas pelas já citadas estatais. O grande amparo, desde 1991, tornou-se a Lei Rouanet, hoje igualmente sob invectiva frontal.
A polarização está no campo cultural também. Temas como o Prêmio Camões atribuído a Chico Buarque, a biografia da atriz Fernanda Montenegro, o filme Bacurau e a cinebiografia de Marighella trouxeram o duplo debate sobre recursos de financiamento e visão política da produção da arte. A participação do poder público atingiu até a mais popular festa do Rio, o carnaval. A Flip de 2019 viveu momentos de polarização política e a escolha do nome da poeta americana Elizabeth Bishop como homenageada de 2020 já incendiou os meios literários e da internet. O debate é sempre bem-vindo. Precisamos reaprender que o contraditório é positivo e parar de conjugar o péssimo verbo “lacrar”.
O ano foi pesado para a música, pois as orquestras foram atingidas em cheio pela falta de financiamento. Iniciativas importantes como o Projeto Guri sofreram abalos e incertezas. A crise é anterior a 2019. A Banda Sinfônica do Estado de São Paulo foi dissolvida em 2017. A brilhante Jazz Sinfônica resiste, aumenta sua popularidade e mostra como alguns abnegados podem manter algo tão belo. A Osesp, melhor sinfônica do Brasil e entre as melhores do mundo, é uma ilha de produtividade em meio ao mundo Mad Max que a cerca, literalmente. No esplendor da Sala São Paulo produzem-se concertos didáticos, milhares de ofertas gratuitas e noites inacreditáveis, como foi no dia 12 de dezembro, com a Nona Sinfonia de Beethoven marcando a abertura do ano jubilar 250 do mestre. Com a tradução em português a cargo de Arthur Nestrovski e inserções de músicas em diálogo com a obra, a plateia foi mesmerizada pela batuta de despedida da regente Marin Alsop. Ali fulgiu uma vela poderosa em meio a trevas assustadoras.
O ano de 2019 levou lendas como Bibi Ferreira e talentos no apogeu da criatividade como Fernanda Young. O diretor Antunes Filho, pilar de uma revolução teatral, também se foi. Em todos os campos desponta uma moçada muito interessante. Precisamos de outro texto para indicar alguns nomes.
A crise das livrarias continua a fazer estragos. Temos autores e leitores, falta dinheiro para livros e faltam lugares para vender os livros. Há reações, com ressurgimento de pequenos espaços. Como em toda época de crise, as editoras apostam em obras com grande apelo e autores já famosos em mídias digitais. Escasseiam os experimentalismos, explodem os títulos com palavrões. O debate é infindável: o nariz torcido de alguns diante do sucesso popular de outros. O preço da sobrevivência será sempre o da vulgarização?
Será o fim da cultura como a conhecemos? Sim, sempre, pois emergem novas formas culturais. O término do meu mundo não é o término do mundo. Mesmo sem ter consciência da crise de financiamento da cultura, o jovem que frequenta um baile funk de São Paulo descobrirá que a visão da cultura atinge a todos, alguns de forma fatal. No fundo, 2019 continua com o dilema, agora chaga aberta: quem tem direito de definir o que é cultura? As exposições sobre “arte degenerada” ainda rondam nossas consciências no campo estético e evocam memórias autoritárias. Eu desejo um 2020 sem donos da cultura, sem vozes únicas, sem comissários do povo ou guardiões da pureza da cultura nacional. Desejo um ano-novo múltiplo, com Beethoven e funk, música lírica e Anitta dançando. Que toda arte transgrida, desinstale, agite e perturbe. Que morra todo Ministério da Verdade.
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