O professor Pablo Ortellado, que coordena o grupo de pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação da Universidade de São Paulo (USP), arregalou os olhos quando viu os resultados finais da pesquisa de opinião organizada pela sua equipe durante um dos protestos a favor do impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff, em 2015. Os dados mostraram um fenômeno curioso: apesar da alta escolaridade dos manifestantes entrevistados (dois em cada três tinham curso superior completo), a maioria afirmou acreditar em boatos tão inverossímeis quanto “o PCC é o braço armado do PT” ou que “50 mil haitianos vieram ao Brasil para votar em Dilma” nas eleições do ano anterior.
Esse fenômeno voltou a aparecer em pesquisas posteriores, mas relativas ao outro extremo ideológico. Na manifestação contra o impeachment em março de 2016, 56% dos entrevistados disseram que os protestos contra a corrupção eram na verdade articulados pelos Estados Unidos para se apropriar do petróleo brasileiro – a mesma proporção dos que afirmaram que o juiz Sérgio Moro, que julga os casos da Lava Jato, é filiado ao PSDB. E, assim como na primeira manifestação, os participantes também tinham escolaridade bem acima da média nacional.
O resultado dessas pesquisas é revelador, mas cada vez menos surpreendente. Uma série de estudos recentes num campo que congrega ciência política, cognição e psicologia social está derrubando a ideia de que o acesso a mais informação significa, de fato, que as pessoas ficarão mais bem informadas. Na verdade, quando o assunto é política, parece acontecer o oposto: o ser humano tende a reforçar ainda mais suas convicções (mesmo que estejam erradas) quando são expostas a evidências que provem o contrário.
Essa conclusão é nova, mas está se tornando consenso na academia. Um estudo que se tornou referência foi conduzido em 2013 pelo cientista social Dan Kahan, do Centro de Cognição Cultural, da Escola de Direito da Universidade de Yale. Mil adultos daquele país foram recrutados para analisar dados fictícios de uma pesquisa cujo objetivo era identificar se um novo creme para pele causava ou não irritação. A conclusão foi a esperada: quem antes havia se saído melhor em um teste de matemática conseguiu interpretar os números de maneira mais correta e identificar os possíveis efeitos do creme.
Tudo mudou, no entanto, quando o problema deixou de ser sobre um produto dermatológico e passou a envolver um assunto bem mais polarizador nos Estados Unidos: o porte de armas. Dados fictícios similares foram apresentados às mesmas pessoas, mas desta vez relativos a supostos crimes em cidades que proibiam ou permitiam o porte de arma pelos cidadãos. Dois grupos de dados foram apresentados a grupos distintos: um deles levava à conclusão de que o porte de armas estaria relacionado a aumento nos crimes, enquanto o outro apontava o oposto. Dessa vez, o que separou a performance dos indivíduos não foi mais a habilidade matemática, mas sim a ideologia: os liberais foram melhores para interpretar os dados quando eles relacionavam o porte de armas com um aumento de criminalidade, mas os conservadores ganharam quando a versão apresentada do exercício apontava à direção contrária.
O mais notável, no entanto, é que a taxa de erro no cenário político acabou sendo quase duas vezes maior entre os indivíduos bons de matemática do que entre os outros – justamente o contrário do que ocorrera quando o assunto era um simples creme para pele. Em outras palavras, os pesquisadores concluíram que a política “emburrece” mais justamente os mais aptos para analisar as evidências de maneira técnica – o que torna a correlação entre alta escolaridade e crença em boatos nas manifestações brasileiras algo bem mais compreensível.
Emburrecimento. “Esse processo existe, e isso está cada vez mais claro. Quando se discute algo relacionado com um valor importante para uma pessoa, a reação natural é que ela só saia mais convencida da sua certeza anterior”, diz Pablo Ortellado, que coordenou as pesquisas dos protestos no Brasil. A reação natural dos indivíduos em proteger seus valores foi batizada por Kahan como “cognição de proteção da identidade”. Esse conceito, segundo ele, vem da importância dada pelas pessoas às crenças compartilhadas pelos grupos com os quais se identificam. “Baseados em mecanismos psicológicos, os indivíduos aceitam ou rejeitam evidências empíricas, a partir de sua visão desejada de sociedade”, escreveu o pesquisador.
Como o que importa para a identidade de cada grupo muda de sociedade para sociedade, é natural que consensos indiscutíveis em um determinado país sejam impossíveis de serem alcançados em outro. Um exemplo disso é o aquecimento global. Nos Estados Unidos, esse é um assunto polarizador, que divide o país em linhas similares aos dos dois grandes partidos (democratas e republicanos). Lá, apenas 64% da população acredita que essa seja uma ameaça séria, segundo pesquisa publicada na Nature em 2015. Já no Brasil, onde todos os grandes partidos parecem compartilhar preocupação similar em relação ao tema, como mostra artigo publicado pela revista Opinião Pública também em 2015, esse porcentual salta para 99%.
Para Ortellado, dois fenômenos recentes são catalisadores desse processo cognitivo. O primeiro é o efeito bolha nas redes sociais. “Vimos nas pesquisas que ambos os lados nas manifestações dizem se informar sobre política principalmente no Facebook. E estudos recentes mostram que o algoritmo usado para escolher o que aparece na página de um usuário prioriza o que confirma as opiniões dele.” O segundo seriam as chamadas “guerras culturais”. O professor da USP explica: “O debate político está deixando de ser sobre questões econômicas e está indo para temas relacionados a valores, como drogas e homossexualidade. E os grupos e partidos estão se realinhando em torno dessas novas disputas.”
Para ele, essa tendência fortalece os vieses dos grupos que se articulam ao redor de uma posição sobre esses temas. Isso teria ao menos um efeito macabro: o debate público ficaria menos produtivo, já que um extremo não consegue conversar com o outro, e quem está no meio – ou seja, quem não considera que esse tema importante para definir sua identidade social – se sente excluído da discussão. Novos estudos feitos no Brasil corroboram essa tese. Um trabalho recente de dois pesquisadores da Universidade de Brasília, Carlos Oliveira e Mathieu Turgeon, com base em bancos de dados de pesquisas de opinião, concluiu que a grande maioria dos eleitores não se alinha em torno dos polos de direita e esquerda, e que esses conceitos pouco importam ao decidir em quem votar.
A disputa dos extremos no debate público, portanto, seria dirigida justamente a essa grande maioria silenciosa. “Os extremos polarizam o debate, e isso dá a falsa impressão de que é impossível conversar. Mas não é assim. Estimamos que esses extremos totalizam cerca de 10 milhões de pessoas no Brasil. Todo o resto, portanto, pode ir pra lá ou pra cá. São pessoas que nem se interessam tanto por política, e por isso não têm tanta dificuldade em mudar de opinião ou serem convencidas”, afirma Ortellado.
Eleição. Para alguns pesquisadores desse campo, mais importante do que entender como funcionam os vieses cognitivos é descobrir como furá-los. A importância disso está no uso prático – uma ONG ambientalista, por exemplo, precisa convencer pessoas de que o aquecimento global ameaça a humanidade. Por isso mesmo, partidos políticos e think tanks norte-americanos gastam milhões de dólares financiando pesquisas para descobrir a resposta a duas perguntas: É possível resolver impasses entre os extremos? E, se sim, como?
Ainda não há respostas definitivas, mas aparecem hipóteses promissoras. Uma delas é quase uma consequência óbvia da cognição de proteção de identidade: se a tendência das pessoas é reagir à evidência sobre um assunto de maneira a não contradizer as crenças do grupo social com o qual ela se identifica, talvez ela fique mais aberta a mudar de ideia caso essas evidências sejam apresentadas de maneira que reforcem sua visão de mundo, em vez de contestá-la.
Essa saída foi testada por pesquisadores das universidades de Yale, Texas e de Stanford, que tentaram mudar a opinião de estudantes que se declararam contrários ou favoráveis à pena de morte. Eles concluíram que era mais simples convencer alguém do contrário quando os argumentos eram apresentados de maneira condizente com valores considerados importantes por essa mesma pessoa em um momento anterior da pesquisa – se alguém havia dito que se identificava como ligado à família, por exemplo, comentários que enfatizavam esse traço pessoal eram feitos antes da leitura do texto, o que, segundo os pesquisadores, aumentava as chances de o estudante mudar de ideia.
Mas um artigo que saiu na revista Science em abril deste ano causou furor especial nesse meio. Uma dupla de pesquisadores da Universidade da Califórnia e de Stanford comprovou que existe outra maneira eficaz de causar mudanças em opiniões fortes sobre um assunto polarizador: a homossexualidade. O estudo, financiado por uma ONG de combate à homofobia, consistia em enviar 56 entrevistadores – alguns transgêneros, outros não – em mais de 500 residências na Flórida para conversar sobre preconceito contra homossexuais e saber a opinião dos indivíduos em duas ocasiões diferentes, separadas por três meses. O resultado provou que, quando um transgênero realizava a entrevista, a chance de a pessoa reduzir sua pontuação em uma escala de homofobia tinha aumento significativo. O contato pessoal com os dramas pessoais, portanto, ajudaria a derrubar barreiras cognitivas que antes pareciam intransponíveis.
O que todos os estudos mostram é que, se nem evidências científicas são suficientes para mudar a opinião de um convencido, partir para o enfrentamento direto é a pior das estratégias. O melhor caminho para estimular o debate entre grupos opostos – ou transformar uma opinião cristalizada sobre um assunto politicamente sensível – pode estar em entender os valores considerados importantes para os grupos e usá-los na hora de apresentar novos argumentos. Parece simples, mas uma olhada rápida em qualquer feed de Facebook prova que encontrar esse meio-termo pode ser tarefa árdua – ainda mais em tempos de impeachment e eleições.
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