quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Dois papas, sem sinal fácil na internet , Marcelo Coelho , FSP

Fernando Meirelles organizou um verdadeiro balé de personalidades, imagens e argumentos em seu “Dois Papas”.
Em cartaz nos cinemas e disponível na Netflix, o filme contrasta e aproxima as figuras de Bento 16 e Francisco, vividos respectivamente por Anthony Hopkins e Jonathan Pryce.
Ilustração de dois miltra
André Stefanini
Como num clássico de futebol —esporte que é uma das paixões do papa argentino—, o espectador já sabe, e com razão, para quem torcer.
Joseph Ratzinger, o Bento 16, não foi agraciado pelas qualidades da simpatia e do carisma; quanto a Jorge Bergoglio, o papa Francisco, seu encanto e simplicidade derretem qualquer coração.
Um dos grandes desafios de “Dois Papas” é tornar humano e amável um cabeça-dura tão terrível quanto Ratzinger. Os primeiros diálogos entre ele e Bergoglio são de molde a tirar a esperança de qualquer um. 
Ratzinger é teimoso, agressivo, dificílimo. Mas termina aprendendo com Bergoglio. O coração do espectador se encanta quando o velho papa redescobre uma das mais belas virtudes evangélicas: a de se desarmar. 
Trata-se de uma abertura para o mundo; é ver nas coisas uma ocasião para a humildade, para o maravilhamento e para a graça. O tremendamente antipático Ratzinger —cujo olhar diabólico, na vida real, foi atenuado na interpretação de Anthony Hopkins— torna-se merecedor de carinho e compaixão.
O curioso é que, do ponto de vista da decência e da moral comum, a história de Francisco teve erros mais graves que a de Bento. 
“Dois Papas” dedica muita atenção ao papel de Bergoglio durante a ditadura militar argentina. Não foi bonito. Ele exigiu que padres sob seu comando interrompessem o trabalho social nas favelas. Dois deles se rebelaram. Bem ao estilo Ratzinger, retirou-lhes o privilégio eclesiástico. Na prática, entregou-os à tortura e à prisão.
Apesar de bastante didático, Fernando Meirelles foi delicado nesse ponto. Não exibiu em detalhes o horror das câmaras de tortura dos generais e almirantes argentinos. Talvez nossa disposição para perdoar Bergoglio diminuísse nesse caso.
“Dois Papas” é ainda mais complacente com Bento 16. Dá a entender que houve cumplicidade do papa no caso dos inúmeros padres acusados de pedofilia e abuso sexual. Mas nenhuma cena do filme reproduz o que pode haver de realmente horrível e chocante nesse tipo de crime.
Desse modo, tudo fica mais “perdoável”. 
Não acredito que isso seja necessariamente uma falha do filme. “Dois Papas” lança sobre seus personagens um olhar amoroso. Pode parecer delírio de minha parte, mas me arrisco a dizer que se trata de um olhar… divino. 
Ratzinger e Bergoglio são “criaturas” nas mãos do diretor e do roteirista. Como obra de arte, o filme dá coerência e simbolismo a muitas coisas que, na vida real, poderiam passar por casualidade.
Veja-se, por exemplo, a cena em que Bergoglio e Ratzinger estão a bordo de um helicóptero. O barulho do motor impede que conversem. Mas o papa mostra a Bergoglio os fones de ouvido e o microfone: graças ao aparato tecnológico, eles poderão provisoriamente se entender.
Em outro ponto do filme, Francisco quer reservar uma passagem aérea pelo telefone; a atendente da companhia não acredita que quem está falando é o papa. Eis, novamente, um problema de comunicação.
No auge de sua crise pessoal, Bergoglio interrompe um sermão, comparando seu estado de espírito ao de uma televisão que está com problemas na antena, e não consegue receber as mensagens da emissora.
Na discussão essencial sobre a renúncia de Bento 16, os dois personagens tentam decifrar os sinais divinos que possam orientar suas decisões. 
A vocação de Bergoglio, assim como o desespero de Ratzinger, se traduz numa espécie de superabundância semiótica: tudo é mensagem, tudo é sinal, cada coincidência conta, cada pequeno acontecimento pode ocultar um ato transcendental da Providência.
Fiquei os últimos dias sem internet em casa, e só consegui acessar a Netflix na última hora. Foi uma guerra.
Talvez por isso, fico pensando se não há um “inconsciente tecnológico” no filme de Meirelles. Ratzinger e Bergoglio vivem um problema de conexão. O contato é complicado, pior que nos tempos da internet discada.
Tanto faz, no fundo. Para eles, e para nós, o universo emite radiações invisíveis, carregadas de mensagens, formigando de megabytes. A questão —e, para os religiosos, isso talvez seja mais fácil— é configurar direito o software.
Marcelo Coelho
Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”. É mestre em sociologia pela USP.

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