sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

João Pereira Coutinho - Meu Pelé é cinéfilo e humilha com seu talento a sombra da suástica. FSP

 Conheci Edson Arantes do Nascimento quando tinha sete ou oito anos, pela mão do meu avô. Perto de casa, um cinema exibia "Fuga para a Vitória", um dos mais deliciosos e idiossincráticos filmes de John Huston.

Para o meu avô, Pelé era o segundo maior jogador da história do futebol. O primeiro, claro, era Eusébio. Pelo menos, ele dizia isso em público. Privadamente, eu sei que a história era outra. Mas divago.

Da esq. para a dir., os atores Sylvester Stallone, o jogador de futebol Pelé e Michael Caine em cena do filme 'Fuga para Vitória', de John Huston
Da esq. para a dir., os atores Sylvester Stallone, o jogador de futebol Pelé e Michael Caine em cena do filme 'Fuga para Vitória', de John Huston - Divulgação

Então fomos. Naquele tempo, os cinemas eram arcas de Noé, gigantescos e com fauna diversa, onde era possível fumar do princípio ao fim. O público, esse, comentava a história em voz alta, dava indicações aos atores —e, se gostasse, aplaudia.

Foi ali, por entre a bruma do vício, que Pelé me apareceu pela primeira vez, na pele de Luis Fernandez, um nativo de Trinidad e Tobago, prisioneiro de um campo de concentração nazista em plena França —e um gênio do futebol. Faz sentido?

Nenhum. Mas que interessa? O que interessa é a força da história: um grupo de prisioneiros aliados aceita o desafio de jogar uma partida de futebol contra um time alemão. Para os nazistas, o jogo é um excelente ato de propaganda, uma forma de mostrarem seu lado humano e tolerante.

Para os aliados, é uma oportunidade para fugirem, no intervalo do jogo, através de um túnel escavado por baixo do estádio.

O jogo começa. Pelé deslumbra. A Alemanha, mais forte, vai vencendo. Chega o intervalo. Que fazer? Fugir, conforme o plano?

Ou ficar, jogar e derrotar os nazistas?

A equipe se divide. Pelé não se conforma. "Se fugirmos agora", diz ele, "perdemos mais que um jogo." Palavras proféticas, que ainda hoje ressoam na minha memória infantil.

O time volta para o gramado, Pelé supera a sua lesão e faz um gol de bicicleta, arrancando aplausos do próprio oficial nazista. No cinema, escusado será dizer, todo mundo aplaudia também.

Aos sete ou oito anos, "Fuga para a Vitória" não era apenas um filme sobre futebol. Era uma primeira introdução à nobreza de espírito: aquela qualidade humana que nos eleva acima do horror.

E, no centro do palco, Pelé. Quando o técnico John Colby (inesquecível Michael Caine) pede aos jogadores que não corram demasiado, caso contrário não vão aguentar os 90 minutos, Pelé se levanta e explica como vai jogar: sem amarras e sem temor. No fundo, sem comprometer a sua liberdade.

Na hora da morte, cada um terá o seu Pelé. O meu é cinéfilo, humilhando com seu talento a sinistra sombra da suástica.

Espero que o meu avô, que partiu primeiro, não se esqueça de lhe agradecer lá em cima por aquela sessão de matiné. Tenho a certeza que até o Eusébio vai compreender.


A tarde quente em que Pelé driblou a Folha, FSP

 Naief Haddad

SÃO PAULO

Era por volta de 14h30 do dia 6 de abril de 2016 quando um SUV preto estacionou em frente ao prédio da Folha. Naquela tarde quente do outono paulistano, meu colega Rogério Gentile, então secretário de Redação, e eu, editor de Esporte naquela época, estávamos na calçada à espera de Pelé, que nos deixou nesta quinta (29) aos 82 anos.

A porta de trás do carro se abriu e ele, lentamente, pôs os pés na Barão de Limeira. Neste instante, ao olhar para os lados, percebi que uma roda rapidamente tinha se formado: amigas e amigos da Redação, colegas de outros departamentos do jornal, balconistas da padaria vizinha, curiosos que passavam pela rua. O Rei havia chegado.

Pelé ao deixar o prédio da Folha em 6 de abril de 2016 - Adriano Vizoni/Folhapress

Para a surpresa de todos ali, Pelé tinha uma bengala à mão esquerda. Era o primeiro drible nas nossas expectativas: aos 75 anos, o maior nome da história do esporte do país —no nosso imaginário, uma fortaleza— caminhava com dificuldade e demonstrava certa fragilidade.

Logo, porém, veio uma segunda finta na direção contrária: a debilidade física em nada abalava o carisma de Pelé, que cumprimentou todos que o abordaram e deu alguns autógrafos.

Em 2016, ano da visita, completavam-se curiosamente seis décadas da primeira menção ao jogador nas páginas do jornal. Pelé foi citado em um breve relato da goleada de 7 a 1 do Santos sobre o Corinthians de Santo André. O garoto de 15 anos havia feito o sexto gol da partida, o primeiro de 1.283 ao longo de uma carreira de 1.365 jogos.

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Era um registro da edição de 8 de setembro de 1956 da Folha da Manhã, jornal que, unido à Folha da Tarde e à Folha da Noite, deu origem à Folha de S.Paulo quatro anos depois.

Ao deixar o elevador no nono andar, onde seria recebido para um café, Pelé viu Juca Kfouri, a quem abraçou de modo efusivo. Essa tarde "marcou nosso reencontro depois de muito tempo e foi como se tivéssemos nos visto no dia anterior", lembra o colunista.

Havia sempre quatro ou cinco assessores ao lado do craque, além de dois ou três seguranças. Em outras circunstâncias, um entourage assim impediria que os interlocutores se sentissem à vontade. Não com Pelé —mais um olé dele no que parecia óbvio.

Como se fosse um amigo antigo, papeou com todos que o aguardavam, como Sérgio Dávila, então editor-executivo (hoje diretor de Redação), Vinicius Mota, secretário de Redação, e Maria Cristina Frias, editora da coluna Mercado Aberto.

"Tem algum santista aqui?", ele perguntou. Emocionado e meio sem jeito, o garçom Nivaldo Fonseca respondeu que sim, ele torce para o clube da Baixada. Pelé o abraçou e disse que tinha um amigo no interior de São Paulo com o mesmo nome.

"Não cheguei a ver Pelé no estádio, mas acompanhava muito pela TV. Eu adorava quando ele comemorava os gols dando socos no ar", conta Fonseca, que continua colaborando com a Folha.

Pelé com o garçom Nivaldo Fonseca em visita à Folha em abril de 2016 - Rogério Gentile

Instantes depois, Gentile fez uma pergunta ao convidado: depois de mais de 40 anos da época de Pelé, com o avanço da preparação física dos atletas, como seria agora? Em um futebol de mais velocidade, ele continuaria sendo —caso estivesse em atividade— tão superior aos demais?

O brasileiro mais famoso de todos os tempos começou a enumerar as condições do período dele: a bola e a chuteira eram mais pesadas que as usadas atualmente; os gramados não eram tão bem cuidados; os zagueiros eram mais violentos. E arrematou, sorrindo, com uma outra pergunta: "Você acha que eu ainda seria um bom jogador?"

Passados alguns minutos, Pelé foi para a sala ao lado para dar uma entrevista a Kfouri, à então repórter Camila Mattoso (hoje diretora da sucursal de Brasília da Folha) e a mim, com registro da TV Folha.

Kfouri fez a primeira pergunta: "Prefere ser chamado de você, senhor ou majestade?" Um entrevistado sem ginga talvez ficasse desconcertado, não ele. "Pode me chamar de ‘meu bem’. O pessoal me chama de senhor Pelé, de seu Pelé. E eu falo: 'Tem tantos adjetivos e vai me chamar de seu Pelé?' Me chama de Edson, me chama de Rei."

Pelé encontra o jornalista Juca Kfouri em visita à Folha em abril de 2016 - Adriano Vizoni/Folhapress

Na entrevista, afirmou pela primeira vez que acreditava ter havido um erro médico em sua primeira cirurgia no quadril. Segundo ele, médicos dos EUA tinham apontado a ocorrência de uma falha em operação à qual se submetera em 2012 no hospital Albert Einstein, em São Paulo. Esse suposto erro o levou a passar por nova cirurgia, em 2015, desta vez no Hospital for Special Surgery, em Nova York.

No dia seguinte à entrevista, Roberto Dantas, ortopedista responsável pela cirurgia no Einstein, afirmou que "não houve erro e estamos seguros disso".

No dia da visita à Folha, Pelé dizia não sentir dor. "Até brinquei com meu médico que chegou minha oportunidade nas Olimpíadas", disse sobre os Jogos do Rio de Janeiro, que começariam quatro meses depois.

O relógio azul da recepção da Folha marcava 15h50 quando Pelé se despediu de todos. A história, aquela que sai dos jornais para ganhar os livros, tinha corrido diante dos nossos olhos, mas mal percebíamos —a gentileza do Rei fazia tudo parecer muito natural. Aquele era o drible derradeiro.