quinta-feira, 6 de março de 2025

Lúcia Guimarães - Trump quer fazer de Nova York um exemplo de seu poder imperial, FSP

 Está um clima de 1975 em Nova York. Mais de 80% da população da cidade não tinha nascido na época, mas muitos devem conhecer a famosa capa de um tabloide que estampava, em outubro daquele ano, a manchete "Ford para a cidade: morra".

então presidente Gerald Ford tinha recusado o pedido de socorro feito ao governo federal para resgatar a cidade, àquela altura prestes a quebrar financeiramente.

Capa do tabloide Daily News, de Nova York, de 30 de outubro de 1975; sua manchete diz 'Ford [diz] para a cidade: morra' - Reprodução

As finanças de Nova York, cuja economia se aproxima, em tamanho, da economia do Canadá, estão hoje sólidas. A maior cidade americana está distante da decadência imortalizada em filmes como "Taxi Driver" e "Perdidos na Noite".

Mas o clima é de apreensão. Vai ficando claro que, neste segundo mandato, a metrópole que tanto rejeita seu filho Donald Trump é também sua refém.

Nesta quarta-feira (5), a humilhação do combalido prefeito nova-iorquino Eric Adams foi exibida para o resto do país. Adams e os prefeitos democratas de Boston, Denver e Chicago foram depor numa comissão da Câmara sobre as políticas de suas "cidades-santuário" —que protegem imigrantes sem documentos e limitam ações policiais da agência federal de imigração.

"Você está vendendo os nova-iorquinos em troca de fugir da Justiça?", perguntou a Adams o deputado Robert Garcia. Ele fazia referência à decisão de Trump de forçar o Departamento de Justiça a suspender o processo criminal por corrupção e fraude que colocaria o prefeito no banco dos réus em maio. A suspensão é, no entanto, condicional, e deixa aberta a possibilidade de reinstalação das acusações se o prefeito democrata não ceder às pressões do presidente na caçada aos imigrantes.

O caso virou um escândalo quando uma promotora republicana se recusou a dar fim ao processo. Ela afirmou que não só havia indícios de crimes, como a decisão da pasta era baseada numa troca de favores ilegal. Ela renunciou, junto com três colegas que também se recusaram a assinar o documento, o que provocou uma intervenção do Departamento de Justiça.

O oficial encarregado de monitorar as finanças de Nova York propôs que o próximo orçamento elaborado em junho considere a possibilidade de uma crise fiscal. Os cortes de ajuda federal atualmente em discussão no Congresso teriam efeito grave sobre a cidade em áreas como assistência de saúde, auxílios de moradia e alimentos. O índice de pobreza em Nova York neste ano bateu o recorde registrado na pandemia e já chega a 25%, quase o dobro da média nacional.

Mas o menu de maldades que o presidente reserva para a cidade que quer tornar um exemplo de seu poder imperial é mais vasto. Ele mandou cancelar o pedágio urbano iniciado em janeiro, uma taxa de US$ 9 para carros que circularem no centro de Manhattan de 5h às 21h.

O pedágio urbano se mostrou um sucessoaliviou o congestionamento, aumentou a circulação de pedestres e reduziu o tempo de transporte para trabalhadores que dependem dos lentos ônibus nova-iorquinos. A governadora do estado, Kathy Hochul, promete desafiar a ordem, e associações locais já entraram na Justiça para manter o pedágio.

A eleição para prefeito, em novembro, também é sacudida pelo fator Trump. O ex-governador democrata Andrew Cuomo, que renunciou em 2021 sob uma acusação de assédio sexual, lançou sua candidatura e tem cacife eleitoral para derrotar Adams. Cuomo assinou o acordo para criar o pedágio urbano em 2019, mas agora diz que é contra a medida.

Como dizia o taxista inesquecível vivido por Robert De Niro no filme de Martin Scorsese: "Estou com umas ideias ruins na minha cabeça".

quarta-feira, 5 de março de 2025

Trump ainda não começou a guerra do novo império americano, VTF FSP

 O começo da guerra comercial de Donald Trump causa sensação "pop". É assunto vívido, que pode ser traduzido em histórias concretas, em dramas de empresas, em aumentos de preços de carros, "avocados" ou "maple syrup" (xarope de bordo canadense, aquele da panqueca). "Homens fortes", ditadores e cafajestes poderosos em geral, dão audiência. Dados os riscos sérios, o que se passa agora parece mera escaramuça de fronteira, porém.

Sabemos muito pouco. Nem mesmo a grande finança por ora acredita que Trump irá muito mais longe nessa "burrice", como diz o Wall Street Journal. Vide a reação ainda moderada nos mercados financeiros, de resto incerta: foi para o vinagre a previsão de que inflação, juros e dólar subiriam por causa das "tarifas". Por ora, o temor é de PIB e juros de longo prazo em queda.

A imagem mostra um homem com cabelo loiro e pele clara, usando um terno escuro e uma gravata vermelha. Ele está em um ambiente de reunião, com uma expressão facial que sugere que está falando ou respondendo a alguém. Ao fundo, é possível ver outra pessoa, mas seu rosto não está claramente visível.
Donald Trump durante sua primeira reunião de gabinete do segundo mandato - Brian Snyder - 26.fev.25/Reuters

De prazo marcado e decisivo, quanto a relações econômicas internacionais, há abril. Trump ordenou que sejam analisadas as políticas de outros países que possam afetar empresas americanas. A lista vai de barreiras não tarifárias a impostos domésticos (como o nosso ICMS), de subsídios a políticas de compras de governos ou mesmo restrições jurídicas (como no caso da "liberdade" de "big techs"). Pode ser uma tentativa de abrir mercados, sob ameaça de retaliação via impostos de importação ("tarifas"). Pode ser guerra total.

Em março, começa a se definir a política fiscal de Trump (gastos, impostos), se haverá mais déficit e dívida, o que afeta moedas e juros do mundo —é tema chato, ao qual se dá pouca atenção, e decisivo. Se Trump avacalhar a política macroeconômica, ignorar o poder do Congresso sobre o Orçamento e criar risco muito grande para aplicações financeiras nos EUA, mais um pouco do crédito americano se vai —é algum risco para o financiamento dos déficits fiscal e externo do país.


Quais as reações? Alguma inflação extra, setores afetados por retaliações e PIB mais fraco podem derrubar o prestígio de Trump? Ou a maioria vai gostar de ter um "Duce"? Qual a reação do Partido Republicano diante do risco de perder votos? Nem todos os setores da elite econômica podem ganhar (indústria, "big techs", agricultura, serviços outros) ao mesmo tempo. Vão entrar em conflito? Os derrotados vão fazer oposição a Trump? Essa política pode ser crucial, pois talvez determine duração, profundidade e danos da loucura, que vai muito além de problemas econômicos, apenas pincelados aqui. Enfim, é preciso saber quanto dessa "loucura" é Trump e quanto é política do establishment.


Alguns efeitos não são dramáticos, demoram a aparecer, mas são sequelas importantes. A epidemia de Covid suscitou o desejo ou a necessidade de manter ou criar certas "indústrias nacionais", assim como o fez a guerra da Ucrânia. O confisco das reservas internacionais da Rússia provocou medo e até atitudes práticas quanto a deixar dinheiro guardado no "Ocidente". As tarifas de Trump 1 mudaram atitudes na China etc., assim como a OMC zumbi animou o protecionismo. A ruína da Otan talvez leve a Europa a, enfim, juntar exércitos e colocar a mão no bolso (meio vazio) para bancá-los. Kaja Kallas, espécie de ministra das Relações Exteriores da União Europeia, escreveu em rede social que "o mundo livre precisa de um novo líder"; "cabe a nós, europeus, assumir esse desafio".

Imposto de importação, "tarifas", pode ser fichinha.

Trump 2.0 irá prejudicar os chamados 'animal spirits'?, Solange Srour

 Solange Srour

O conceito de "animal spirits" foi popularizado pelo economista John Maynard Keynes em 1936. Ele se refere à influência das emoções e da confiança nas decisões de consumo, investimento e poupança. Keynes argumentava que, além de fatores racionais, como taxa de juros e produtividade, aspectos subjetivos também influenciam a economia.

Logo após as eleições presidenciais nos EUA, os mercados começaram a avaliar se o excepcionalismo econômico do país —com forte crescimento e inflação em queda— seria mantido. O fato de a agenda do novo governo ser tão ampla e complexa —incluindo tarifas, política fiscal, desregulamentação, imigração, entre outras frentes— gera incertezas sobre o impacto final para a economia, especialmente para o crescimento e a inflação.

Um homem de cabelo loiro e usando um terno escuro e uma gravata vermelha está falando em um microfone. Ele gesticula com a mão direita enquanto se dirige a uma audiência. Ao fundo, há uma bandeira e uma pintura. Um outro homem está parcialmente visível à esquerda.
O presidente dos EUA, Donald Trump na Casa Branca - Roberto Schmidt - 3.mar.25/AFP

Uma escalada de tarifas, que evoluísse para uma guerra comercial generalizada, com o potencial de resultar em estagflação, está no topo das preocupações. Já uma grande consolidação fiscal, por meio de cortes de gastos, reduziria o crescimento de curto prazo, mas traria juros de longo prazo mais baixos.

Por outro lado, a manutenção de baixos impostos corporativos, ou até mesmo novas reduções, favoreceria o investimento, ao mesmo tempo que levantaria preocupações sobre a sustentabilidade da dívida. Deportações em massa, que reduzam a força de trabalho, são outro fator potencialmente negativo para o crescimento, enquanto uma ampla desregulamentação de vários setores pode aumentar o PIB potencial.

Até agora, as medidas adotadas em relação a tarifas, gastos e imigração têm sido muito erráticas e nada garante que não possam se tornar extremas no futuro próximo. A economia americana começou o ano com um bom impulso, já que o crescimento do ano passado foi forte, o que proporciona uma margem razoável para absorver incertezas. No entanto, dados recentes indicam vulnerabilidades na atividade econômica, afetando particularmente a confiança dos consumidores e as expectativas de inflação.

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O índice de confiança do Conference Board Board teve uma rara queda de 7 pontos em fevereiro — a terceira consecutiva. A retração foi ampla entre diferentes faixas etárias e níveis de renda, com consumidores mais pessimistas em relação às condições atuais e futuras do mercado de trabalho, perspectivas de renda e de negócios. Outros indicadores de confiança divulgados foram na mesma direção.

Em relação à inflação, as tarifas mais altas aparentemente ainda serão implementadas, mas já influenciam as expectativas. Em um horizonte de dois anos, a inflação implícita dos títulos indexados (TIPS) saltou de 2% no final de 2023 para 3,1% atualmente, bem acima da meta de 2%. A inflação implícita de um ano está em 4%, contra cerca de 1% há alguns meses. Diversas pesquisas com consumidores em relação às suas expectativas para inflação corroboram esse cenário.

Os mercados, em geral, reagem às mudanças na percepção sobre crescimento e inflação. Ou seja, são voláteis e vulneráveis a grandes oscilações baseadas em notícias econômicas e políticas. Isso, combinado com a queda da confiança e o aumento das expectativas inflacionárias, pode gerar impactos econômicos independentemente de as políticas serem efetivamente implementadas.

Embora seja difícil prever com precisão qual nível de preços de mercado e sequência de dados econômicos poderiam levar o governo Trump a reconsiderar suas políticas, o padrão atual de ameaças seguidas de recuos sugere que eventuais equívocos serão corrigidos ao longo do tempo. No entanto, o cenário permanece bastante incerto e não traz conforto para países com vulnerabilidades evidentes —como é o nosso caso.