domingo, 4 de agosto de 2024

Governo prepara 1ª reforma em porta de entrada do Bolsa Família em 14 anos, FSP

 Adriana Fernandes

BRASÍLIA

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prepara a primeira reforma no Cadastro Único dos últimos 14 anos. A base de dados é a porta de entrada para quase 2.000 benefícios sociais em todo o Brasil, incluindo o Bolsa Família e a tarifa social de energia elétrica.

O cadastro fornece uma radiografia de quem são e como vivem as famílias mais vulneráveis do Brasil, que reúnem 94 milhões de pessoas —quase metade da população brasileira. A partir de suas informações, o governo federal desembolsa pelo menos R$ 280 bilhões em políticas sociais por ano.

Os dados também serão usados como critério para a concessão do cashback, mecanismo de devolução do imposto para famílias de baixa renda criado pela reforma tributária. A reforma entrará em vigor a partir de 2026 e prevê a devolução parcial ou integral de impostos incidentes sobre alimentos, botijão de gás e serviços de água e esgoto.

Mão feminina segurando um cartão do programa Bolsa Família
Em agosto, beneficiários também receberão o auxílio-gás

O novo sistema deve entrar em funcionamento na segunda quinzena de março de 2025. A mudança tem potencial para melhorar a qualidade das informações do cadastro e fazer com que os benefícios cheguem de fato a quem mais precisa, fechando brechas que hoje facilitam o acesso de pessoas que não se encaixam nas regras, gerando pagamentos indevidos.

Será uma virada de chave única, de todos os municípios ao mesmo tempo, diferente do ocorrido em 2010, quando a implementação do novo sistema foi gradual e levou quatro anos para ser concluída.

A mudança está sendo preparada desde 2023 e ocorre num momento em que o governo começa um programa de revisão de gastos, numa estratégia para reduzir despesas e o rombo das contas públicas. O plano inclui um pente-fino no BPC (Benefício de Prestação Continuada), pago a idosos e pessoas com deficiência de baixa renda.

A secretária de Avaliação, Gestão da Informação e Cadastro Único do MDS (Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome), Letícia Bartholo, diz à Folha que o novo sistema vai permitir a interligação de diferentes bases de dados do governo federal e automatizar processos que hoje são feitos de forma artesanal.

É mais do que uma integração com outras bases do governo: agora, elas serão interoperáveis, um jargão técnico que significa a possibilidade de uma comunicação direta e online.

Hoje, é como se cada um desses bancos de dados estivesse armazenado em um computador de forma isolada. Com isso, o governo precisa paralisar o CadÚnico por até 4 dias para importar manualmente os dados de outros cadastros e fazer os batimentos que permitem, por exemplo, saber se há alguém com renda maior do que a permitida recebendo benefícios.

A paralisação tem impacto na ponta, já que os assistentes sociais ficam sem acesso para prestar atendimento e cadastrar novas famílias. Por causa disso, a rotina de atualização é feita com intervalos maiores, a depender do caso a cada trimestre.

A integração vai pôr fim ao isolamento e permitir a troca de informações online. Essa conversa será feita entre o CadÚnico e mais de 20 bases de dados do governo federal.

A secretária de Avaliação, Gestão da Informação e Cadastro Único do Ministério do Desenvolvimento Social, Letícia Bartholo - Roberta Aline - 26.set.2023/Ascom MDS

"Nós vamos ter um Cadastro Único em comunicação online direta com a base de óbitos, com a base de emprego, com a base de benefícios previdenciários. Vai ser tudo online. É uma medida de qualificação estrutural", diz Bartholo.

Hoje, os dados de falecimento de brasileiros são inseridos dentro do cadastro a cada três meses. Se algum beneficiário morre nesse intervalo, os pagamentos são mantidos até que haja a atualização. O novo sistema vai automatizar esse processo e reduzir o intervalo.

Os assistentes sociais na ponta também terão mais ajuda no preenchimento automático de partes do formulário e poderão fazer a checagem em tempo real da regularidade de um CPF.

Hoje em dia, a atualização manual do cadastro permite, por exemplo, que uma pessoa já falecida seja cadastrada. A partir da mudança, ao digitar o CPF de uma pessoa morta, o sistema nem permitirá o registro.

Os dados dos CadÚnico são coletados pelos municípios nos Cras (Centros de Referência de Assistência Social), onde o responsável pela família responde a um questionário. Hoje, 40 mil agentes estão habilitados a operar o sistema e vão receber treinamento em três níveis: básico, intermediário e avançado.

A capacitação será online, uma inovação em relação ao modelo atual, que prevê turmas presenciais. O governo avalia que as aulas remotas darão maior flexibilidade aos operadores e às próprias prefeituras, já que hoje é um desafio viabilizar os treinamentos presenciais diante, inclusive, da alta rotatividade dos agentes nos municípios. Só quem fizer o treinamento terá permissão para acessar o sistema do cadastro.

O novo CadÚnico é um dos pilares de uma série de transformações que o governo está promovendo após o cadastro ter sido desfigurado na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), após a criação do Auxílio Brasil.

O desenho do benefício, que pagava um valor mínimo independentemente do número de pessoas na família, estimulou a divisão artificial de famílias e converteu o cadastro em um registro individual, sem o mapeamento preciso das vulnerabilidades das famílias nem o diagnóstico correto de sua situação socioeconômica.

No final de 2022, o número de famílias unipessoais explodiu e chegou a 5,4 milhões, o triplo do 1,8 milhão observado em 2020. Após um esforço de regularização, as famílias unipessoais caíram a 3,4 milhões em 2024, mas o número ainda é elevado.

Neste plano de transformação do cadastro, o governo pretende ainda atualizar as perguntas do questionário, mas essa etapa só deve ser implementada daqui dois anos. Outras iniciativas, por sua vez, já foram lançadas, como o Índice de Vulnerabilidade das Famílias do Cadastro Único, chamado de IVCad.

Reprodução de tela do novo IVCad (Índice de Vulnerabilidade das Famílias do Cadastro Único), uma das ferramentas abastecidas com informações do Cadastro Único
Reprodução de tela do novo IVCad (Índice de Vulnerabilidade das Famílias do Cadastro Único), uma das ferramentas abastecidas com informações do Cadastro Único - Reprodução MDS

A ferramenta serve como um farol sobre a situação de vida das famílias, a partir de 40 indicadores divididos em seis dimensões: necessidade de cuidados, primeira infância, crianças e adolescentes, trabalho e qualificação de adultos, disponibilidade de recursos e condições habitacionais.

A partir dos dados, é possível saber quantas famílias do CadÚnico vivem em situação de rua ou em domicílios improvisados, ou têm crianças, adolescentes ou idosos entre seus integrantes. O instrumento permite fazer recortes por região, estado ou município.

"Cada dimensão reflete uma atuação da política pública, ou uma política pública mais específica que pode chegar [às famílias]. A gente quer ser farol para diversas políticas. Ele é um índice sintético que varia de 0 a 1. Quanto mais próximo de 1, maior é a situação de vulnerabilidade", afirma Joana Costa, diretora de Departamento de Monitoramento e Avaliação da Sagicad.

Segundo ela, com o IVCad é possível identificar regiões em que determinadas políticas são mais demandadas pelas famílias vulneráveis.

Outra ferramenta que ajudará a fazer esse mapeamento é a nova versão do Mops (Mapas Estratégicos para Políticas de Cidadania), atualizado com a malha de domicílios do Censo Demográfico de 2022.

Reprodução de tela do novo Mops (Mapas Estratégicos para Políticas de Cidadania), uma das ferramentas abastecidas com informações do Cadastro Único
Reprodução de tela do novo Mops (Mapas Estratégicos para Políticas de Cidadania), uma das ferramentas abastecidas com informações do Cadastro Único - Reprodução MDS

A plataforma permite situar geograficamente cada família inscrita no CadÚnico, além de indicar onde estão equipamentos públicos como escolas, unidades básicas de saúde e hospitais. A atualização é essencial para ter uma fotografia fidedigna e, assim, identificar com maior precisão os bolsões de vulnerabilidade.

"A gente vai poder ter, por exemplo, informação de onde há maior densidade de famílias com o cadastro desatualizado", diz o diretor do Departamento de Gestão da Informação, Davi Lopes Carvalho. Os dados podem também nortear decisões de políticas públicas.


VEJA POLÍTICAS EXECUTADAS A PARTIR DO CADASTRO ÚNICO

As regras gerais do Cadastro Único preveem a inclusão de famílias que vivem com renda mensal de até meio salário mínimo (hoje equivalente a R$ 706) por pessoa. Famílias com renda acima desse valor podem ser cadastradas para participar de programas ou serviços específicos. Algumas políticas também seguem regras próprias de concessão do benefício.

Bolsa Família
Programa de transferência de renda voltado a famílias com renda mensal de até R$ 218 por pessoa. O Orçamento de 2024 reserva R$ 168,6 bilhões para a política.

BPC
O Benefício de Prestação Continuada é pago a idosos a partir de 65 anos e pessoas com deficiência de qualquer idade, com renda mensal de até ¼ do salário mínimo por pessoa (hoje equivalente a R$ 353). A despesa prevista para este ano é de R$ 111,5 bilhões.

Auxílio Gás dos Brasileiros
O benefício é pago a famílias inscritas no CadÚnico, em valor equivalente a 50% do preço médio do botijão de gás de 13 quilos. O repasse é feito a cada dois meses.

Tarifa social de energia
Famílias de baixa renda têm descontos entre 10% e 65% na conta de luz. Para indígenas e quilombolas, o abatimento pode chegar a 100%.

Cashback
Instrumento de devolução do imposto pago sobre conta de luz, água, botijão de gás e itens de supermercado. Entrará em funcionamento após a implementação da reforma tributária, a partir de 2026. Terão acesso ao benefício as famílias com renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa inscritas no Cadastro Único.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Reconstruindo as capacidades estatais, André Roncaglia, FSP

 

A Sest (Secretaria de Coordenação e Governança das Estatais) do MGI (Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos) apresentou, há alguns dias, o "Relatório Agregado das Empresas Estatais Federais", um mapa do sistema de empresas estatais federais.

O relatório oferece uma descrição de cada uma das 44 empresas sob controle direto da União e permite uma análise mais adequada dos resultados das estatais ajustados aos seus objetivos.

A imagem mostra o logotipo da Petrobras em uma parede de concreto. O logotipo é composto pelas letras 'BR' em verde, com um retângulo amarelo acima, e a palavra 'PETROBRAS' em letras grandes e verdes. A parede apresenta um padrão de triângulos e texturas de concreto.
Fachada da sede da Petrobras no Rio de Janeiro - Sergio Moraes - 16.out.2019/REUTERS

A imprensa costuma repercutir uma análise superficial, tipicamente financista, de lucro ou prejuízo. A extrema direita se gaba de o governo Bolsonaro ter melhorado a gestão das estatais, mas os números mostram o desmonte a granel do sistema, por meio de cortes de investimento e da venda lesa-pátria da Eletrobras.

Os objetivos das empresas estatais transcendem a mera busca de resultados financeiros de curto prazo. Sua governança considera aspectos ligados ao interesse público, como a geração de empregos de qualidade, o abastecimento e a segurança alimentar, a inovação tecnológica e a gestão focada em resultados.

Em 2023, o sistema de empresas estatais federais contribuiu com cerca de 6% do PIB em valor adicionado bruto e mais 6% na compra de insumos, ativando cadeias produtivas nacionais. Os ativos somaram cerca de R$ 6 trilhões (60% do PIB), e o lucro líquido foi de R$ 197,9 bilhões: dois terços desse resultado vieram da Petrobras (R$ 125,2 bilhões), seguida pelo Banco do Brasil (R$ 33,8 bilhões), pelo BNDES (R$ 21,9 bilhões) e pela Caixa Econômica Federal (R$ 11,7 bilhões). A queda de 28% nos lucros relativos a 2022 se deveu à redução nos preços do petróleo e ao aumento de 30% dos investimentos das empresas.

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Em termos de emprego, o sistema detém mais de 436 mil postos, com atuação em todo o território nacional, e vem melhorando a baixa representatividade das mulheres (ainda em 38% do total), mas que já detém 49% dos empregos gerados nos últimos dez anos.

Ao longo do ano de 2023, foram distribuídos R$ 128,1 bilhões em dividendos e juros sobre o capital próprio, dos quais a União recebeu R$ 49,4 bilhões. Cerca de R$ 222 bilhões foram pagos na forma de impostos, taxas e contribuições para municípios, estados e a União. Os lucros retidos no total de R$ 101 bilhões podem reforçar os investimentos ligados ao Novo PAC.

A Ebserh, que controla 41 dos 45 hospitais universitários federais (responsáveis por mais 8 milhões de cirurgias em 2023), e a Embrapa (tecnologia agropecuária) receberam, cada uma, cerca de R$ 4 bilhões do Tesouro. E os Correios receberam R$ 532 milhões para universalizar o acesso à distribuição postal.

No mundo inteiro, as empresas estatais retomam sua centralidade em setores estratégicos, como os de rede (ferrovias, portos, eletricidade, saneamento, telecomunicações etc.) e na produção e na prestação de serviços (saúde, financeiros, manufatura, indústria aeroespacial etc.). Um estudo do Roosevelt Institute—"Industrial Policy 2025: Bringing the State Back In (Again)"—mostra que, das 10 maiores empresas do mundo, 4 são estatais. A França, por exemplo, tem mais empresas estatais que a ex-soviética Rússia. O Brasil tem menos cobertura estatal do que SuíçaAlemanha e Argentina.

Ao operar uma agenda intensiva em inovações para o setor público, o MGI visa construir as capacidades estatais para lidar com os desafios da transição ecológica e da digitalização da economia. É uma estrada longa e repleta de obstáculos. Por isso, a maior transparência ajuda a qualificar o debate público sobre o papel das empresas estatais no século 21.