domingo, 3 de março de 2024

Hélio Schwartsman -A nossa Lua, FSP

 A Lua faz mais do que inspirar poetas. Não fosse por ela, não apenas não teríamos poesia como também não teríamos ciência, filosofia e religião. Na verdade, nem sequer existiríamos. "Our Moon" (Nossa Lua), de Rebecca Boyle, não esconde que seu objetivo é encher a bola do satélite natural da Terra. Mas o faz com propriedade e talento narrativo.

Embora ela própria seja um mundo estéril, a Lua viabilizou a vida pluricelular em nosso planeta. Sem ela e sua força gravitacional, não teríamos nem dias nem estações razoavelmente estáveis. Também não teríamos as marés, que muito provavelmente estão na origem da passagem da vida marítima para a terrestre. Também não teríamos o campo magnético que nos protege da radiação cósmica. Obviamente tudo isso teve impacto sobre nossa fisiologia e nossa psicologia.

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 3 de março de 2024, mostra uma lua cheia no meio do céu azul marinho e, sob o astro, quatro figuras em ação, da esquerda para a direita: um músico faz serenata, um lobo uiva, um padre reza e um cientista observa pelo telescópio.
Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman na Folha de S.Paulo, publicada também na versão impressa neste domingo (3 de março) - Annette Schwartsman

Numa era em que relógios e calendários são ubíquos, damos a contagem do tempo como algo trivial. Mas não é. Foram os ciclos da Lua que nos ensinaram a perceber as semanas e meses. Boyle vai à arqueologia de sítios como Warren Field e Stonehenge para explicar como isso aconteceu.

A autora também mostra como a Lua influenciou a religião, sua derivação para a filosofia (quando os gregos passaram a pensar seu movimento desvinculado de qualquer caráter divino) e, mais tarde, para a ciência (quando observações empíricas derrubaram teorias de base mais racionalista, como a aristotélica e ptolomaica). Boyle é competente tanto para explicar as complexas sutilezas matemáticas envolvidas no movimento das marés como também para analisar passagens de autores tão variados quanto Kant e Júlio Verne.

As lições de Boyle me fizeram experimentar uma sensação de solidão. Se a Lua foi tão fundamental para a vida complexa e se satélites com suas características não são assim tão comuns, então aumentam as chances de estarmos sós ou, pelo menos, proibitivamente longe de outros seres inteligentes.

sexta-feira, 1 de março de 2024

Ministério Público não pode defender regalias, editorial FSP

 

Paulo Gonet, procurador-geral da República - Pedro Ladeira/Folhapress

Toda atenção é pouca quando um órgão com o histórico do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) edita portarias e resoluções que versam sobre pagamentos a promotores e procuradores.

No papel, a instituição surgiu para incrementar a fiscalização administrativa e disciplinar do Ministério Público; na prática, sua conduta se distingue pouco daquela esperada de uma entidade corporativa.

Em novembro passado, por exemplo, o conselho lutou contra a transparência e dificultou a busca de dados sobre remuneração de membros do Ministério Público.

Anos antes, fez ainda pior: autorizou que a licença-prêmio fosse convertida em pecúnia, uma medida que, de 2019 a 2022, custou R$ 439 milhões aos cofres públicos.

E o que dizer do auxílio-moradia? Em 2014, uma decisão provisória do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, concedeu a ajuda de custo a todos os juízes federais, pouco importando o local em que trabalhassem.

Como se pode imaginar, não tardou para a regalia ser estendida a todos os magistrados brasileiros. Diante dessa escalada esdrúxula, como reagiu o Ministério Público? Enfrentou a mamata? Não: pediu para se refestelar na pândega.

Agora o CNMP se vê mais uma vez às voltas com o auxílio-moradia. Ainda que a distribuição indiscriminada dessa benesse tenha sido encerrada em 2018, sempre parece haver alguém disposto a explorar as brechas legais.

No fim de 2023, Elizeta Ramos, então na condição interina de procuradora-geral da República, resolveu ampliar o valor máximo do benefício, elevando-o de R$ 4.377 para pouco mais de R$ 10 mil mensais.

Em 5 de fevereiro deste ano, o titular do cargo, Paulo Gonet, repetiu a canetada. No mesmo dia, porém, baixou outra ordem, determinando que o teto do auxílio seria de R$ 4.377. Eis que, menos de duas semanas depois, o valor mudou de novo e passou para R$ 5.691.

Seja qual for a cifra, nenhuma faz muito sentido. Membros do Ministério Público são a elite salarial do funcionalismo e não precisam de ajuda de custo. Seus contracheques com frequência ultrapassam o limite constitucional, porque somam regalias aos vencimentos.

Apesar do absurdo patente, há quem defenda os enormes gastos com o sistema judicial brasileiro. É o caso do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, para quem soa irrelevante o fato de o Brasil deter o custo recorde entre 53 países analisados pelo Tesouro Nacional.

Como a atuação do CNMP atesta, muito desse custo decorre de privilégios injustificáveis, garantidos por sequências tão tortuosas que a sociedade às vezes nem sabe se a confusão esconde alguma trama ou se revela certa incompetência.

editoriais@grupofolha.com.br

Precisamos de um novo contrato social, Rodrigo Zeidan, FSP

 Por que nos EUA os ricos doam boa parte ou toda a sua fortuna, enquanto no Brasil dependemos do setor público para resolver os problemas da sociedade?

A resposta está na diferença de contrato social; nós estamos muito mais próximos do contrato europeu que do norte-americano.

Nesta semana, uma doação de US$ 1 bilhão vai garantir que os estudantes da Faculdade de Medicina Albert Einstein, no Bronx, em Nova York, possam estudar de graça. Esse não é o único exemplo nem em Nova York. A escola de medicina da NYU, uma das dez melhores do país, já é gratuita há anos após uma doação semelhante (ela custava até US$ 55 mil anualmente antes disso).

Essas histórias parecem estranhas para brasileiros, mas também para europeus. Meus alunos na Dinamarca não entendem muito bem por que alguém faria isso. "Pagamos altos impostos para o governo resolver os problemas sociais; não é para contarmos com dinheiro privado."

A Faculdade de Medicina Albert Einstein, em Nova York - Michael M. Santiago/Getty Images via AFP

E nem os melhores museus do país, feitos com doações de coleções privadas ou por campanhas para arrecadar recursos privados, como a Glyptoteket, e os museus Thorvaldsen e Louisiana, para ficar em alguns, servem para mudar essa ideia.

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Nos EUA, grande parte da cultura de terceirizar problemas sociais para doações privadas vem dos puritanos, que foram os primeiros a colonizar o país. Eles, parte do movimento calvinista, acreditavam que enriquecer era glorioso (muito antes de Deng Xiaoping), mas com um senão: morrer rico seria pecado. Ou seja, tinham como valor moral trabalhar duro de forma extremamente capitalista desde que devolvessem o excesso para a comunidade.

E esses valores ainda sustentam políticas públicas nos EUA, e o comportamento privado também, mesmo que os puritanos não sejam a elite americana desde o século 18.

Não conheço um americano razoavelmente bem-sucedido, judeu, budista, muçulmano, evangélico ou católico, que não se preocupe sobremaneira com as causas que apoiam diretamente com doações. Há redução de impostos para doações privadas, mas o total doado chega a 2% do PIB por ano, muito mais que em outros países (no Brasil, esse percentual é de cerca de 0,2%).

O modelo americano não é replicável nem é necessariamente eficiente: o Estado chega a quase se ausentar de alguns setores sem que os recursos privados consigam resolver os problemas, como no caso dos desabrigados nas grandes cidades.

Dr. Ruth Gottesman, ex-professora da Albert Einstein College of Medicine,do Bronx,
Ruth Gottesman, ex-professora da Faculdade de Medicina Albert Einstein - NYT

Mas, qualquer que seja o modelo, nenhum país de renda média falhou como o Brasil, onde muitos acham que pagam muitos impostos porque não veem retorno neles. Não vão ver nunca, pois, em um dos países mais desiguais do mundo, a faixa de renda para alguém ser contribuinte líquido do sistema é baixa.

No Brasil, mesmo quem é renda média acaba contribuindo mais do que recebe do Estado, algo que só vai acabar quando a desigualdade do Brasil diminuir.

Falhamos, e um dos exemplos disso é vermos crianças de rua cheirando cola em algumas das principais capitais do país. Isso é algo inaceitável em qualquer sociedade de renda média. E isso não é uma questão de dinheiro. Seja com dinheiro privado, seja com dinheiro público, há coisas que não deveriam acontecer nunca.

Puritanos, católicos, ou satanistas, todos temos responsabilidade pelas péssimas políticas públicas e privadas no país. É fácil "terceirizar" e dizer: "Ah, o governo tem que resolver". Mas não vai. Precisamos de um novo contrato social; todos teríamos responsabilidade. Estamos preparados?