sexta-feira, 1 de março de 2024

Pensamento woke resvala facilmente nos males que combate, João Pereira Coutinho, FSP

 De vez em quando, existem séries e filmes que, em nome da inclusão, apresentam atores negros no papel de personagens históricas brancas. Nada contra —em princípio. Mas, quando descemos aos detalhes, há algo de sinistro nessa escolha.

Se, por exemplo, Thomas Jefferson fosse representado por um ator negro, isso não seria apenas uma liberdade criativa. Seria um anacronismo histórico e, pior, um insulto histórico.

Gemini, ferramenta de inteligência artificial do Google, gera imagens de soldados nazistas negros e de ascendência asiática
Gemini, ferramenta de inteligência artificial do Google, gera imagens de soldados nazistas negros e de ascendência asiática - Reprodução

Jefferson tinha muitas qualidades. Mas, como qualquer latifundiário nos Estados Unidos do século 18, era dono de escravos. Ver um ator negro a representar um proprietário de negros seria uma paródia à infâmia da escravidão. Os negros eram as vítimas, não os carrascos.

O mesmo com soldados nazistas. Em teoria, podemos imaginar um ator negro com a suástica no braço, marchando em nome de Adolf Hitler e fazendo a apologia da raça ariana. Aliás, podemos até imaginar Jamie Foxx ou Denzel Washington, com um bigodinho ridículo, no papel do próprio Führer.

Mas, na prática, você sabe que eu sei que você sabe que o racismo era o principal combustível do Terceiro Reich. Ver um ator negro a defender o genocídio racial seria uma aberração ética e estética.

É por isso que o "flop" do Google com a sua nova ferramenta de inteligência artificial, o criador de imagens Gemini, é tão cômico e tão repugnante.

A ideia da empresa era introduzir "diversidade" e "inclusão" nos resultados das buscas. A consequência, informa o portal The Verge, foi termos personagens negros como os pais fundadores dos Estados Unidos ou soldados da Alemanha nazista.

Fato: o Google já suspendeu o Gemini. Mas o episódio ilustra bem um dos problemas do pensamento woke: a forma como resvala facilmente para os males que procura combater. Exagero?

Não creio. No mesmo dia em que li sobre as desventuras da Google, soube também que a peça "Slave Play", do dramaturgo Jeremy O. Harris, terá estreia em Londres em junho deste ano.

Estarei na cidade por essa altura. Mas qualquer interesse que pudesse ter na peça foi rapidamente extinto pelo autor e pela produção. "Slave Play" terá duas sessões só para um auditório negro, que assim poderá "experimentar e discutir" a peça sem ter de lidar com "o olhar branco".

Boa noite e boa sorte, pessoal. Espaços onde existe segregação racial, mesmo que temporária, mesmo que bem intencionada, são infrequentáveis para mim. Sem falar da acusação boçal de que meu "olhar branco", o que quer que isso seja, pode ser ofensivo para terceiros.

O problema, no fundo, foi bem detectado pela filósofa Susan Neiman, de quem já falei nesta Folha a respeito do seu ensaio "A esquerda não é woke" —o livro terá finalmente edição brasileira, em março, pela Âyiné.

O pensamento woke tem o coração no lugar certo, reconhece a autora: na empatia pelos oprimidos e injustiçados da história.

Mas ao optar pelo tribalismo, o pensamento woke abandona a ambição universalista típica da esquerda, que sempre pautou suas lutas pela defesa da essencial igualdade dos seres humanos. De todos os seres humanos, não apenas dos brancos, dos homens ou dos aristocratas.

Uma das consequências dessa deserção está no fato da palavra "raça" ter sido reintroduzida no discurso cultural, ao mesmo tempo que foi desacreditada como conceito científico.

Se isso é progresso, eu tremo só de pensar o que será o retrocesso.

Conrado Hübner Mendes - Quanto custa o STF?, FSP

 Se você pensa que o Judiciário é caro, o Judiciário não é caro, não. Melhor fazer a pergunta correta: quanto vale a jurisdição?

Foi mais ou menos assim que Luís Roberto Barroso, presidente do STF, deu a nos explicar que o "custo da Justiça pode parecer alto, mas o da falta de justiça é bem maior" ("Quanto vale o Judiciário?", Folha, 25 de fevereiro).

Ao converter a pergunta orçamentária —quanto custa— numa pergunta moral —quanto vale, Barroso abriu uma trilha que não vai nos ajudar a explicar um dos sistemas de Justiça mais caros e juízes entre os mais bem remunerados do mundo. Em números absolutos ou relativos.

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, durante sessão - Rosinei Coutinho - 19.dez.23/Divulgação STF

Barroso reduziu as finanças a tema menor. Deu três justificativas sintéticas: a Justiça brasileira é "provavelmente, a mais produtiva do planeta"; temos "alguns dos profissionais mais bem preparados do mercado, embora ganhem menos do que atores de sucesso no ambiente privado"; e "para quem preza a questão financeira, o Judiciário arrecada para os cofres públicos cerca de 70% do que despende".

A primeira é empiricamente impressionista e ecoa a mitomania magistocrática. Sem uma definição de produtividade e sem dados comparados, sobra só o chute. Não basta a autoafirmação de produtividade, nem um número bruto de "quantas sentenças". Sem falar da presunção de trabalhar mais que qualquer outra carreira pública no país.

A segunda ecoa arroubo corporativista, segundo o qual cada juiz abre mão de ser advogado rico na Faria Lima e faz sacrifício pelo bem público. Um grito de injustiçados.

A terceira expressa um erro conceitual e induz correlação artificial entre o quanto decisões judiciais contribuem para a arrecadação fiscal e a justificativa de seus salários (e melhor não problematizar o número de 70%). Imagine quanto mereceria ganhar, por esse critério, um agente da Receita Federal.

Mas a ousadia do argumento foi partir para a metafísica e destacar a imaterialidade da justiça. "Justiça é gênero de primeira necessidade. Há na sua atuação um valor inestimável, que não se mede em dinheiro. Coisas que têm valor, mas não têm preço."

Entre as coisas sem preço, enumerou "correção de injustiças, pacificação social, punição de crime, proteção do consumidor, do meio ambiente e da saúde". Não surpreende a ausência de "proteção do trabalhador".

A justiça é inestimável, o Judiciário não. Seus descompassos remuneratórios e despesas mal explicadas devem estar sujeitos a escrutínio público real. A incomensurabilidade da prestação da justiça não faz de quem a presta uma autoridade indevassável e incriticável.

Não conheço quem discorde da essencialidade da Justiça. Nem alguém que, com base nessa premissa, justifique desperdício, promiscuidade, remuneração ilegal, indiferença a conflitos de interesse e negociações de constitucionalidade para garantir toda uma variedade de "auxílios-dignidade" (às vezes retroativos).

Justamente porque a prestação da justiça é inestimável, não é legal que ministros aceitem convite, direta ou indiretamente remunerado, para terem com empresários encontros interessados. Ou que aceitem viagens patrocinadas pelos atores econômicos e políticos que julgam no dia a dia.

Mas Barroso tem razão ao afirmar que a pergunta sobre o custo do Judiciário transcende a dimensão financeira. E se o valor da justiça é intangível, o desvalor da injustiça cruel também é.

O debate sério olha para fatos, não abstrações normativas. Precisamos de um método para calcular, por exemplo, quanto custa o STF para o país. Uma resposta para além da planilha, que aponte o aumento ou redução de sofrimento humano e de concentração de riqueza gerados por suas decisões.

Importante estimar, fora da linguagem financeira, quanto custa o apoio do STF à precarização do trabalho ou o atraso em invalidar a criminalização do porte de drogas. E reconhecer seu acerto em controlar operações policiais em favelas, que reduziu letalidade. E o acerto tardio em se enfrentar Bolsonaro, depois de tantas oportunidades de sancionar uma carreira política construída na delinquência política.

O STF cria agora um inovador programa de transferência de renda de aposentados para empresas que confessaram corrupção e celebraram acordos de leniência assessorados por times de advogados. Alegam tortura e pedem suspensão da multa. O neolavajatismo, como o lavajatismo, não tem preço.

Bom observar quem perde e quem ganha. Algo estimável e personificável.

Setor ferroviário vê leilão de trem SP-Campinas como resgate histórico, Marcelo Toledo, FSP

 


RIBEIRÃO PRETO

leilão do projeto do trem de média velocidade que vai ligar São Paulo a Campinas, que ocorreu nesta quinta-feira (29), permitirá no futuro desafogar o sistema Anhanguera/Bandeirantes, que apresenta lentidão cotidiana na chegada de veículos à capital, e é visto como o primeiro passo para a retomada de trens regionais no país.

A avaliação é de Joubert Fortes Flores Filho, presidente do conselho administrativo da ANPTrilhos (Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos) e de Vicente Abate, presidente da Abifer (Associação Brasileira da Indústria Ferroviária).

Trem modelo double-decker (dois andares) fabricado pela chinesa CRRC
Trem modelo double-decker (dois andares) fabricado pela chinesa CRRC - Divulgação/CRRC

Para os executivos, o surgimento do novo trem vai impulsionar as atividades do setor, que sofreu muito durante a pandemia —caso do transporte de passageiros— e com a ociosidade e falta de pedidos para as fabricantes nacionais —situação da indústria ferroviária.

Com proposta única, o leilão foi vencido pelo consórcio C2 Mobilidade Sobre Trilhos. O grupo ofereceu um desconto (deságio) de 0,01% no pagamento de R$ 8 bilhões que o Governo de São Paulo terá de fazer, saindo vencedor do certame na sede da B3, na capital.

Liderado pela Comporte, holding brasileira ligada à família Constantino, fundadora da Gol, o consórcio foi formado em parceria com a gigante CRRC, empresa estatal chinesa que é a maior fabricante de suprimentos ferroviários do mundo. A concessão será de 30 anos e feita via PPP (parceria público-privada).

"A gente espera que seja o passo de uma retomada, para que a gente possa voltar a ter o transporte regional, transporte de intensidade, no Brasil. É difícil a gente entender num país do tamanho do nosso que a gente praticamente abandonou desde a década de 70 [as ferrovias] e agora, no momento em que se preza pela questão de sustentabilidade, é melhor a gente tentar resgatar isso", afirmou Flores Filho.

Ele afirmou esperar que essa retomada comece a acontecer a partir desse projeto e que ele impulsione inclusive os outros previstos para São Paulo, ligando a capital às regiões de Sorocaba, São José dos Campos e Santos.

"A linha São Paulo-Campinas é a que tem uma demanda mais intensa, então tem uma viabilidade maior e, na medida que ela tem sucesso, pode servir de paradigma para outras linhas no próprio estado de São Paulo."

O executivo disse que as operadoras de trens e metrôs no país ainda não recuperaram totalmente o fluxo de passageiros pré-pandemia de Covid-19 e que dificilmente isso acontecerá, devido a questões como a adoção do home office em ao menos um dia da semana nos grandes centros urbanos. Hoje, o setor transporta perto de 80% dos passageiros levados diariamente antes da pandemia.

A concessão do trem entre a capital e Campinas envolverá três serviços. Além do trem de média velocidade, o edital inclui a implementação de um "trem parador" conectando Jundiaí a Campinas e a concessão da linha 7-rubi da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos).

O fato de ser de média velocidade é visto por Abate como essencial para que o projeto prospere.

"O trem a 140 km/h é bem mais que a média de um trem do metrô, por exemplo, correndo a 60 km/h ou 80 km/h, e eu diria que 10 ou 12 anos atrás, quando se pensou em alta velocidade [Trem Bala], a gente talvez não tivesse a maturidade que tem hoje. Nada melhor que um trem de média velocidade para impulsionar, no futuro, o de alta velocidade. Talvez lá atrás a gente não estivesse preparado para isso", afirmou o dirigente da Abifer.

Abate disse ainda que o leilão é um marco por conta do resgate do transporte de passageiros em São Paulo, essencial para o desenvolvimento do interior paulista a partir da segunda metade do século 19.

"Tivemos um transporte nos anos 60 e 70 para 100 milhões de passageiros por ano e isso se exauriu. Espero agora que os trens [envolvidos no projeto] sejam fabricados no Brasil. Ninguém tem, naturalmente, garantia sobre isso, mas há movimentos da própria empresa chinesa de se instalar no Brasil."

Previsto no Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), o trem terá 101 quilômetros de extensão e ligará a estação da Barra Funda, na zona oeste de São Paulo, ao centro da maior cidade do interior, com parada apenas em Jundiaí.

As obras devem durar cerca de sete anos, com as primeiras viagens das linhas paradoras em 2029, enquanto o trem expresso deve estrear dois anos depois.