sábado, 1 de agosto de 2020

Documentos inéditos de Jango revelam pedidos de conspiradores a presidente deposto pelo golpe militar, FSP


PORTO ALEGRE

Pedir era o verbo mais declinado então. A frase do livro “A Memória e o Guardião” (2020, Civilização Brasileira), de Juremir Machado da Silva, sintetiza o conteúdo de 927 correspondências recebidas, despachos e relatórios do ex-presidente João Goulart (1961-1964).

Os documentos inéditos permaneceram guardados em duas malas durante meio século. O livro resgata o conteúdo das cartas recebidas por Jango, deposto pelos militares no golpe que instaurou a ditadura no país (1964-1985).

O assessor de Jango, Wamba Guimarães, era responsável por encaminhar ofícios, relatórios e memorandos. Também gaúcho –nascido em Uruguaiana, enquanto Jango nasceu em São Borja–Guimarães manteve em segredo o material, que foi guardado por sua família.

Cinco décadas mais tarde, o conjunto foi acessado por Silva, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e autor de mais de 30 livros, entre eles "Jango: a Vida e a Morte no Exílio" (2013, L&PM) e “Raízes do Conservadorismo Brasileiro” (2017, Civilização Brasileira).

“A leitura dos 927 itens com textos acaba por gerar um efeito impressionante: o presidente da República parece cercado por uma matilha de vorazes pedintes”, escreve Silva.

Políticos de siglas como a UDN (União Democrática Nacional) e PSD (Partido Social Democrático) figuravam entre os que pediam favores a Jango, especialmente de estados como Minas Gerais e São Paulo.

Para Silva, a presença constante de líderes desses estados revela a importância que tinham na política brasileira desde o pacto “Café com Leite”, durante a República Velha, quando presidentes originários destes estados se revezavam no poder.

Até mesmo o ex-presidente Juscelino Kubitschek, o mineiro JK, estava habituado a escrever para Jango “sempre que achava necessário”, explica Silva.

O que chama mais atenção, porém, é a insistência do governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto. Ele seria um dos principais articuladores do golpe contra Jango.

“Magalhães Pinto fazia uma espécie de jogo duplo. Por um lado, mostrava-se cordial e disposto a dialogar. Por outro lado, especialmente quando o tema das reformas se consolidou na pauta, partiu para a conspiração”, diz Silva à Folha.

O presidente gaúcho costumava responder favoravelmente aos pedidos. “Na instabilidade do poder, caminhando sempre no fio da navalha, como Jango poderia não atender pedidos de próceres da política mineira?”, diz o autor.

Mesmo sendo católico e um fazendeiro rico, Jango foi tachado de comunista ao tentar emplacar as reformas de base. Para Silva, mesmo que fosse contraditório, o rótulo foi “eficaz” para colaborar com sua derrubada por um contexto de Guerra Fria.

“Jango foi vítima de uma poderosa campanha de desqualificação que soube explorar um fantasma fácil de ser disseminado. De certo modo, os espantalhos são sempre os mesmos. Para assustar uma população nada como recorrer aos velhos e cansados, embora eficazes, estereótipos: o comunismo, o ateísmo, a ameaça à liberdade, esses arquétipos constituídos nalgum momento e até agora passíveis de atualização”, afirma o professor.

Entre as recorrentes queixas recebidas pelo presidente estão as vidas dos agropecuaristas, como ele próprio. A principal reclamação era contra o projeto de reforma agrária. Em uma carta, líderes ruralistas escrevem pedindo a revogação do “decreto monstruoso que irá derramar o sangue dos nosso filhos”.

Carta de Juscelino Kubitschek revelada no livro "A Memória e o Guardião",
Carta de Juscelino Kubitschek revelada no livro "A Memória e o Guardião", - Divulgação

Entre os documentos conservados pelo assessor de Jango está o despacho em que Jango escreve à mão para que ele responda aos ruralistas que “o desejo é justamente evitar a luta entre irmãos”. Guimarães respondeu, então, que o presidente planejava as reformas “dentro da paz social”.

“Na época de Jango, a concentração da propriedade rural era escandalosa. A reforma agrária de Jango era capitalista, um bem para o Brasil, inclusive para as elites, que veriam se constituir um mercado interno mais consistente para a indústria."

O acervo inédito mostra também carta de pessoas longe do poder. Há agradecimentos de um homem por sua aposentadoria, pedido de uma garota de 14 anos por uma cirurgia para corrigir lábios —"lembre-se de que o sonho de toda moça é pintar os lábios na idade devida”—, e até uma senhora que pedia um cavalo.

O pedido veio por meio de versos: “Sempre quis um cavalo/E só consigo no sonho/Por isto peço e imploro/A vós presidente angolar/para meu sonho realizar”. Em outra carta, uma mulher pede para conhecer o presidente pessoalmente.

Os pedidos de empregos no serviço público predominam, reflexo de um país, “pré-moderno”, explica Silva. É com Jango que inicia a se consolidar o concurso para esse tipo de função. Entre as correspondências, uma em especial condensa as mazelas sociais que o Brasil precisava responder.

“As coisas estão cada vez mais caras e o que ganhamos não dá para o nosso sustento”, escrevia uma menina de 12 anos que trabalhava como doméstica. A irmã, de dez anos, também trabalhava como empregada, contava.

Há também mensagens de uma estrela de Hollywood. Em 13 de novembro de 1961, a atriz Janet Leigh escreveu em um papel timbrado do hotel Capacabana Palace. Leigh concorreu ao Oscar de melhor atriz pelo filme "Psicose", do ano anterior. Ela agradecia Jango pelo empréstimo de seu avião particular.

A carta revela o glamour que envolvia Jango e o Brasil naquele período pré-ditadura: “Jango e Maria Thereza [primeira-dama] eram um casal deslumbrante. Brasília era um desafio, uma surpresa e ainda certa novidade. O Rio de Janeiro vivia entre a corte que perdeu o poder e o eterno poder de uma cidade maravilhosa pela qual muitos políticos suspiravam constantemente”, analisa o autor.

Para o pesquisador, o “Brasil tinha tudo para dar o salto de qualidade que o tornaria, enfim, o país do futuro”. Para isso, “precisava de um impulso político” que foi dado quando fez o comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. “Quando anunciou a reforma agrária, começou a cair”, diz.

"A MEMÓRIA E O GUARDIÃO"

  • Preço R$59,90
  • Autor Juremir Machado da Silva
  • Editora Civilização Brasileira | Grupo Editorial Record
  • Páginas 364

Caixas usadas de sucos viram bikes, óculos e casas, Mara Gama, FSP


Três ONGs cariocas —Redes da MaréAbraço Campeão e Sim, eu sou do meio— receberam nos últimos dias bicicletas verdes especiais: feitas de embalagens longa vida recicladas.

As bikes, produzidas pela Muzzicycles, a empresa que inventou o modelo, serão usadas em atividades com moradores nas comunidades da Maré, do Morro do Alemão e de Belford Roxo.

A entrega foi o primeiro resultado do projeto Bagaço, da empresa de sucos Do Bem, que promete reciclar a mesma quantidade de embalagens que coloca no mercado (mil toneladas ou 44 milhões de caixinhas por ano), incentivar a produção de novos produtos com o material e fazer parcerias com organizações para destinar esses produtos a iniciativas de cunho social.

O projeto Bagaço começou a ser elaborado na metade de 2019. A empresa fez uma revisão de processos de produção, distribuição e consumo. As primeiras decisões foram retirar do meio ambiente 100% das embalagens após o uso e eliminar canudinhos de plástico dos pacotes de suco pequenos – as caixinhas com canudos de papel devem estar no mercado em setembro.

Parte das embalagens recicladas será usada para fazer caixas de papel para a distribuição dos sucos no varejo e parte para a produção de objetos como bicicletas, óculos, telhas e pisos.

O primeiro lote de 20 bicicletas consumiu cerca de 8 mil embalagens: cada quadro de bicicleta usa o equivalente a 400 caixas. Além das 15 já entregues, também vai receber cinco Muzzicycles a ONG Centro Comunitário Irmãos Kennedy.

“A ideia do Bagaço é incentivar a produção de empresas que transformam resíduos”, diz Tiago Schmidt, gerente de marketing da Do Bem. “Em setembro e outubro, devem ser produzidas mais bicicletas. Em outubro, deve começar a produção de óculos com material reciclado. Até o fim do ano, vamos colocar de pé casas feitas com telhas , pisos e revestimentos do material reciclado”, diz Schmidt.

A produção das casas ficará a cargo das empresas sociais Teto Ecolar, que atuam na construção de moradias sustentáveis e espaços de emergência em áreas de vulnerabilidade urbana.

Paredes, piso e teto são de chapas de polialumínio reciclado feitos pela Ibaplac. As casas terão 20 metros quadrados e no total são utilizadas 63 chapas e 16 telhas recicladas, com cerca de 40 mil embalagens.

As primeiras dez casas serão construídas em São Paulo, capital. Numa segunda fase, mais 16 no Estado e 12 na Bahia, ainda em 2020.

Os consumidores também podem fazer parte do projeto descartando suas embalagens em pontos de coleta. A ação acontece em parceria com o projeto Rota da Reciclagem, da TetraPak.

Mara Gama