domingo, 10 de maio de 2020

Um novo patamar, Roberto Rodrigues, O Estado de S. Paulo (definitivo)


10 de maio de 2020 | 05h00

Com a tragédia da pandemia, o velho conceito da segurança alimentar ganhou um novo patamar. Nos cinco continentes as populações aprenderam que podem sobreviver sem comprar roupas novas, carros ou eletrodomésticos, mas não podem deixar de comprar alimentos. E isso deu um upgrade universal para as atividades rurais em termos de admiração e respeito.
Embrapa
Há empresas de mercados como leite, suínos, aves, soja, café, pecuária e também focadas em gestão Foto: Wilton Junior/Estadão
Todo mundo compreendeu que os produtores rurais não podem parar nunca. Precisam tirar leite todos os dias: as vacas não sabem se é feriado ou se há uma pandemia varrendo o planeta, e tem que ser ordenhadas. Na hora de plantar tem que plantar, ou cultivar, ou tratar de plantas e animais ou colher, em cada período do ano como manda a natureza. E abastecer, cumprindo o sagrado papel de preservar a vida.
Há um belo momento de admiração, respeito e até gratidão pelo trabalho no campo. Este reconhecimento deverá ter consequências interessantes para o futuro do agro no mundo.
Por um lado, governos se apressam em reexaminar políticas de apoio aos seus produtores rurais, na expectativa de que eles permaneçam ativos e assim garantam segurança alimentar aos consumidores.
Por outro lado, podem taxar suas exportações para evitar eventual falta de produtos à frente ou, ao contrário, criar mecanismos que inibam importações de terceiros países, exatamente para proteger seus camponeses da concorrência inevitável. E esse neoprotecionismo poderá interferir no comércio mundial agrícola, mesmo que isso ocorra ao arrepio da OMC.
Esses fenômenos estão logo aí à frente. Para compreendê-los e avaliar quais são as oportunidades e os riscos neles contidos, é fundamental estudar as medidas que estarão sendo adotadas pelos governos dos países que são nossos mercados ou nossos concorrentes e, a partir daí, traçar as estratégias necessárias para aproveitar umas e mitigar outras. O Ministério da Agricultura está atento a isso, bem como as modernas lideranças rurais brasileiras. E não há tempo a perder.
Até porque ficou evidente para os mercados que temos condições excepcionais e sustentáveis para atendê-los com produção agropecuária em quantidade e com qualidade adequada, isto é, podemos oferecer segurança alimentar e segurança do alimento. E isso traz outro tema à baila: a pandemia mostrou que os padrões sanitários no mundo estão abaixo da necessidade, e com certeza a régua dos controles sanitários vai subir. Pois também nisso o Brasil tem um modelo muito desenvolvido e eficiente, e pode mostrar ao mundo um invejável sistema de defesa sanitária, sobretudo nas indústrias de carnes e alimentos. Sempre existem aperfeiçoamentos para fazer, mas estamos bem nessa foto.
Resta completar a agenda para vencer as barreiras que eventualmente surgirem, e assim possamos alimentar os nossos 220 milhões de brasileiros e outro bilhão de estrangeiros de mais de uma centena de países com nossos excedentes exportáveis. 
Temos que abrir nosso mercado para países de todas as regiões. Somos produtores muito grandes e podemos servir ao mundo inteiro, não fazendo sentido restrições e esse ou aquele mercado, como se escuta, às vezes, em relação à China. No ano 2000, nosso agronegócio exportou US$ 20 bilhões, e a China comprou 2,7% desse montante. Só 19 anos depois, em 2019 o agro exportou US$ 97 bilhões, e a China ficou com 34% disso. Um crescimento espantoso, aquele mercado gigantesco deve ser respeitado e estimulado. E devemos partir para a busca de outros mercados na Ásia mesmo (Indonésia, Filipinas, Malásia), ampliando os que já temos lá (Japão, Coreia), no Oriente Médio, nos países árabes, na Índia, na África e na América Latina, mas sem perder jamais o mercado norte-americano e o da União Europeia, cujo acordo com o Mercosul deve ser agilizado.
Devemos investir muito mais em tecnologia, com ênfase para os temas da conectividade e digitalização, cuidar com rigor dobrado da sanidade, fazer as reformas legais que permitam parceria para investimento em infraestrutura. Precisamos desburocratizar processos arraigados para agilizar o desenvolvimento de setores como a irrigação, buscar capitais externos que estão disponíveis, promover uma real abertura da economia. E tudo revestido com a mais importante variável do futuro: sustentabilidade.
Se tivermos competência para fazer isso, o que passará até mesmo pela melhoria da governança institucional das nossas representações, o Brasil será o grande campeão mundial da segurança alimentar bem antes do que se imaginava.

Finais, Luis Fernando Verissimo, O Estado de S.Paulo

Não sei se serve de consolo, mas a humanidade já esteve mais de uma vez à beira de um apocalipse que acabou não vindo, variando apenas o fim do mundo imaginado por cada geração. Lembro que, quando a ameaça era uma guerra atômica de extermínio mútuo entre União Soviética e Estados Unidos, com o resto da humanidade sofrendo as sequelas radioativas daquela demência alheia, fiz um poema, ou coisa parecida, com a mesma intenção que repito agora, a de amainar o que parecia ser o terror final. Vamos lá.
*
“Quando a Terra acabar
Numa grande explosão nuclear
E tudo virar pedaço
Seja pedra, pau ou aço
E continentes e mares
Forem pelos ares
E a Grande Muralha da China
For reduzida a uma esquina
E os Alpes, a uma autoestrada
Levando do nada ao nada
Sei que então, só então
Voando em formação
Com moedas e dedais
E restos de catedrais 
Aparecerá, rubicundo
Meu chaveiro do 
Internacional 
campeão do mundo.” 
*
Qual é o seu verso favorito do Aldir Blanc? Escolha difícil, ele nunca foi menos do que ótimo e muitas vezes genial. Minha escolha: o final de Dois pra Lá, Dois pra Cá. Alguma vez um homem já esteve tão perdido de amor por uma mulher, incluindo o seu perfume Gardênia, do que o homem que a tem nos braços, dançando, na letra do Aldir?
“A tua mão no pescoço
As tuas costas macias
Por quantas noites rondaram
As minhas noites vazias...
No dedo um falso brilhante
Brincos iguais ao colar
E a ponta de um torturante
Band-aid no calcanhar.” 

'Que fazer?', J.R. Guzzo, O Estado de S.Paulo


10 de maio de 2020 | 03h00


É curioso o que está acontecendo hoje no Brasil. A cada dia que passa, o presidente da República faz alguma coisa que parece desenhada sob medida para tumultuar o seu próprio governo, como se tivesse certeza de que o pior desastre que pode lhe acontecer é viver quinze minutos de paz. (Neste momento de confusão extrema, acredite se quiser, conseguiu achar espaço para arrumar uma briga com a sua ministra-secretária da Cultura, a atriz Regina Duarte, cuja relevância no meio das calamidades atuais oscila ao redor do zero. Justo agora? Não poderia ficar para um pouco mais tarde? Não: ninguém aqui vai perder uma oportunidade para sair no braço.) Ao mesmo tempo, as forças que querem tirá-lo de lá antes da hora prevista na Constituição parecem cada vez mais incapazes de armar uma ação coerente, lógica e eficaz para conseguir isso.
É a velha história da vida política: quando todo mundo diz que “agora não dá mais” e, ao mesmo tempo, não se faz nada de concreto além de falar, é sinal de que ninguém está conseguindo agir no mundo das coisas práticas. Se realmente não “dá mais”, então por que continua dando? Não se trata de falta de vontade – é falta de meios. Como tantas vezes ao longo da História, a questão se resume na inesquecível pergunta de Lenin: “Que fazer?” O Revolucionário Número 1 de todos os tempos sabia muito bem que, sem responder a essa pergunta, o Czar continuaria sentado até hoje no trono da Rússia. Em sua volta, todos faziam os discursos mais devastadores, ano após ano - e continuavam no exílio. Lenin, em vez disso, só pensava em sair do exílio e ir para o governo. Não queria ficar indignado. Queria agir.
É o que está faltando hoje para as múltiplas camadas de opositores do presidente Jair Bolsonaro: saber com precisão o que devem fazer para ele sair do Palácio do Planalto antes de 1º. de janeiro de 2023, quando acaba o seu mandato legal na presidência. Nada parece funcionar. Havia muita esperança, por exemplo, no depoimento do ex-ministro Sergio Moro no inquérito que apura as circunstâncias de sua demissão. Mas depois de oito horas de declarações, o que realmente sobrou de concreto foi a afirmação de que ele, Moro, nunca disse que Bolsonaro cometeu algum crime nos quinze meses de relacionamento que tiveram no governo. Um ministro do STF proibiu Bolsonaro de nomear um diretor para a Polícia Federal; ele nomeou outro, igual ao primeiro, e ficou por isso mesmo, pois não dá para continuar vetando todos os nomes que o presidente escolher. Esperava-se que o Supremo se unisse para acertar alguma maneira legal de deter ou depor Bolsonaro; mas os ministros não estão de acordo entre si. 
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A questão, no fim das contas, não é estabelecer, numa escala de zero a dez, o quanto Bolsonaro é um mau presidente; seus inimigos acham que é onze. A questão é saber quantos dos 513 deputados federais e 81 senadores, exatamente, vão votar a favor de um impeachment – o único caminho disponível para depor o chefe de Estado sem violar a Constituição, coisa que requer força armada e não é possível neste momento no reino das realidades. A “sociedade” não tem voto aí. Ninguém mais, além dos parlamentares, está autorizado a julgar o presidente: ou dois terços dos membros do Congresso concordam em depor o homem, ou ele não sai.
Para quem não quer mais a situação que está aí, a prioridade talvez devesse ser outra - em vez de ficar tentando tirar Bolsonaro agora, que tal começar a trabalhar de verdade para que ele não seja reeleito? O fato é que vai ser preciso ganhar uma eleição em 2022. Se vierem com candidatos parecidos com os de 2018, vamos continuar na mesma.