segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

O despertar das forças antiglobalização marcou o ano de 2016, Por Eduardo Felipe Matias (pauta AL)



O ano que se encerra foi bem diferente para cada uma das três principais tendências que vêm moldando o mundo nas últimas décadas: globalização, sustentabilidade e inovação tecnológica.
A inovação, nem seria preciso dizer, pois faz cada vez mais parte de nosso dia-a-dia, continua transformando diversos setores por meio de uma onda de empreendedorismo que, apoiada em novas tecnologias e em conceitos como o de economia compartilhada, vem revolucionando nossa sociedade e economia.
A sustentabilidade viveu neste ano um bom momento, em especial graças à entrada em vigor do Acordo de Paris sobre o clima, um marco no reconhecimento da interdependência entre as nações. Já a globalização sofreu com discursos e atitudes protecionistas, nacionalistas e xenófobas.
Com o foco nessas tendências, procuraremos entender como se deu o embate entre cooperação internacional e isolacionismo em 2016. Um ano em que “surreal” e “pós-verdade” foram escolhidas as palavras que marcaram o período – e, como veremos, não foi para menos.
Um ano surreal — Europa e crise dos refugiados
A vitória de Donald Trump para a presidência dos EUA e os atentados terroristas de 2016 motivaram as buscas pelo significado de “surreal”, cuja definição é "marcado pela intensa realidade irracional de um sonho", fazendo que esse fosse selecionado o termo do ano pelo dicionário Merriam-Webster. 
Antes da eleição norte-americana, no entanto, prenúncios de que os ventos antiglobalização soprariam forte em 2016 vieram da Grã-Bretanha. Em junho, um plebiscito para decidir se o Reino Unido deveria ou não se retirar da União Europeia (UE) revelou que inesperados 52% dos eleitores eram a favor do “Brexit” — a saída do país do bloco que, até então, nunca havia visto nenhum de seus membros tomar decisão semelhante.
Após a divulgação do resultado, o primeiro-ministro David Cameron, que apoiava a permanência na UE e até agora deve estar se perguntando por que propôs o plebiscito, teve de renunciar ao cargo, sendo substituído por Theresa May. Caberá agora ao Reino Unido acionar o Artigo 50 do Tratado de Lisboa, que prevê um processo de dois anos de negociação para retirada voluntária e unilateral do bloco.
O Brexit se explica, em boa parte, por sentimentos xenófobos que ganharam força em toda Europa em 2016, reforçados por novos atentados terroristas e pelo prolongamento da crise dos refugiados provenientes de conflitos no Oriente Médio e na África.
Atos terroristas — muitos deles reivindicados pelo grupo Estado Islâmico — voltaram a assombrar diversas cidades neste ano, como Istambul, Lahore, Daca, Cairo, Bagdá e, na Europa, Bruxelas, Nice e Berlim.
Assim como o terror dos atentados, o horror da crise dos refugiados parece longe do fim. Esta segue sendo abastecida por conflitos sangrentos como aqueles na Somália, Afeganistão, Iraque e Síria, onde a guerra já dura mais de 5 anos e teve como desdobramento mais recente a violenta tomada de Alepo pelas forças do ditador Bashar al-Assad, com o apoio do Irã e da Rússia. Vladimir Putin aumenta com isso sua influência na região, o que não deve acontecer sem provocar efeitos colaterais, caso do recente assassinato em Ancara do embaixador russo na Turquia por um atirador aparentemente motivado em se vingar da ação russa em Alepo.
Cinco milhões de pessoas já tiveram que deixar a Síria, contribuindo para o número recorde de mais de 21 milhões de refugiados ao redor do mundo. Esse é um drama cuja solução depende de ação mais incisiva da ONU, o que talvez passe a ocorrer em 2017, quando o português António Guterres, que durante dez anos ocupou o posto de alto-comissário da agência para refugiados (ACNUR) assumirá a Secretaria Geral da organização.
Ainda que o fluxo crescente de refugiados cause temor nos cidadãos europeus, na verdade são outros países, como Turquia, Irã, Líbano e Paquistão, que absorvem o maior número deles.
Turquia, em particular, é um ator importante nesse cenário, sendo o país que hoje abriga o maior número de refugiados: por volta de 3 milhões, dos quais aproximadamente 2,5 milhões são sírios. Em 2016, a UE chegou a um acordo com a Turquia para que esta, em troca de ajuda financeira, receba de volta migrantes em situação irregular. Porém, em junho, uma tentativa de golpe de Estado contra o presidente turco Recep Tayyip Erdogan, seguida de um endurecimento da repressão à oposição promovido pelo governo, acabou abalando a relação com a UE. Em novembro, o Parlamento Europeu votou pela suspensão temporária das negociações de entrada da Turquia no bloco, o que levou Erdogan a ameaçar abrir as fronteiras turcas para permitir a passagem de migrantes rumo a Europa.
Enquanto isso, partidos nacionalistas, populistas e xenófobos, muitos deles contrários à integração europeia e favoráveis a um referendo como o do Reino Unido – continuam ganhando espaço.
Isso preocupa na Holanda e na França, por exemplo, que terão eleições em 2017 assim como, possivelmente, a Itália, onde há pressão para convocação de eleições antecipadas após a renúncia do primeiro-ministro Matteo Renzi, depois que este — em outro caso neste ano de tiro no pé político – condicionou sua permanência no governo a ganhar o referendo do qual saiu derrotado, que visava aprovar uma reforma constitucional para, entre outras medidas, reduzir a função legislativa do Senado.
Na Alemanha, país da UE que mais recebe pedidos de asilo, a chanceler Angela Merkel está com sua reeleição no ano que vem em risco, pois sua atitude liberal e, por que não dizer, de uma solidariedade rara hoje em dia em relação à imigração é ainda mais questionada por conta dos atentados deste ano naquele país, alguns deles cometidos por refugiados. Ao menos na Áustria, agora em dezembro, o candidato da extrema-direita, Norbert Hofer, foi derrotado na eleição presidencial pelo ecologista Alexander Van der Bellen.
A ameaça de Trump
O novo ano começa sob a sombra de Donald Trump. Eleito em 8 de novembro por ter somado mais votos no colégio eleitoral (ainda que tenha obtido um número total de votos inferior ao de sua adversária, a democrata Hillary Clinton), o empresário bilionário será o 45º presidente dos Estados Unidos da América.
A campanha, em si, com atuação intensa de bots e trolls disseminando nas redes sociais mentiras e opiniões infundadas, reforçou a tendência que levou o dicionário Oxford a escolher a outra palavra do ano: “pós-verdade”, que significa "relativo a ou que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos influenciam menos na formação da opinião pública do que apelos à emoção ou à crença pessoal".
Com promessas como construir um muro entre seu país e o México, Trump atingiu em cheio os anseios de parte do eleitorado afetada pela imigração, pela abertura das fronteiras para produtos asiáticos, pela fuga de empresas para o exterior e pela revolução tecnológica, todos eles causa de desemprego em alguns Estados americanos que ajudaram a eleger o republicano.
O ano de 2017 pode ser um ano difícil para a cooperação internacional, se levarmos a sério todas as declarações de Trump no período eleitoral.
Este pôs em dúvida, por exemplo, o papel de seu país na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), cobrando que as nações europeias e asiáticas da aliança cumpram seus compromissos de investimento em defesa, caso contrário os Estados Unidos não se sentiriam obrigados a protegê-los como prevê o acordo.
Cuba — onde morreu neste ano Fidel Castro — também deverá sofrer as consequências da vitória de Trump. Esta não deverá ajudar em nada a aproximação que vinha sendo liderada por Barack Obama que, neste ano, nomeou o primeiro embaixador dos Estados Unidos em Havana após mais de 50 anos de relações diplomáticas rompidas e foi primeiro o presidente americano a visitar aquele país em quase um século.
O relacionamento com o Irã deverá piorar, igualmente. Trump afirmou por diversas vezes que considera “desastroso” e pretende anular o Plano de Ação Conjunto Global assinado em 2015 entre aquele país e Estados Unidos, China, França, Reino Unido, Rússia e Alemanha para garantir que o programa nuclear iraniano seja usado apenas para fins pacíficos. Ainda que a Agência Internacional de Energia Atômica tenha constatado no início de 2016 que o Irã havia cumprido os termos do acordo e que as sanções econômicas a ele impostas pela ONU deveriam ser levantadas, a tensão voltou a aumentar agora no final do ano pela decisão do Senado dos Estados Unidos de prorrogar por mais dez anos algumas das sanções americanas ao Irã.
Por fim, das três tendências anteriormente mencionadas, a globalização é aquela que mais parece incomodar Trump, que insinua poder entrar em guerra comercial com a China e já deixou claro que, no que depender dele, não há qualquer esperança de que os Estados Unidos efetivem dois acordos de livre comércio que já foram abordados neste espaço em anos anteriores. O primeiro deles é o com a UE. O outro é a Parceria Transpacífica (TPP na sigla em inglês), que foi assinada no começo do ano por 12 países banhados por aquele oceano e aguarda a finalização dos processos de ratificação para entrar em vigor.   
Comércio Internacional, OMC e América Latina
As convicções do novo presidente norte-americano certamente não colaborarão para uma retomada do comércio internacional, o qual vem se arrastando desde a crise financeira internacional de 2008 e que, afetado por medidas protecionistas, têm crescido menos até do que o PIB mundial.
Naquela que exerce a função de “xerife” contra o protecionismo, a Organização Mundial do Comércio (OMC) — que, diferentemente do ano passado, em 2016 não apresentou resultados relevantes em termos de acordos comerciais – duas disputas que seguirão 2017 adentro chamaram a atenção. A primeira delas, em ação movida por Japão e UE, foi a condenação, ainda em fase preliminar, de políticas industriais brasileiras de incentivo fiscal voltadas para os setores de tecnologia, telecomunicações e automóveis, como a Lei de Informática e o programa Inovar-Auto, as quais afetariam de forma injusta as empresas estrangeiras.
A outra foi iniciada pela China que, no final deste ano, iniciou processo de consultas na OMC contra os Estados Unidos e a UE, questionando as metodologias de cálculo por estes utilizadas em procedimentos antidumping. A China exige ser reconhecida por ambos como economia de mercado – alegando que isso deveria ocorrer agora que se completa o prazo de 15 anos de sua adesão à OMC – a fim de evitar que medidas mais elevadas continuem sendo aplicadas às suas exportações.
Na América Latina, o Peru elegeu presidente o economista Pedro Pablo Kuczynski e a Venezuela de Nicolás Maduro mergulha cada vez mais em um abismo social e econômico, terminando 2016 com queda de 10% do PIB e inflação de mais de 700%. Por não atender as obrigações previstas no protocolo de sua adesão ao Mercosul — dos 57 acordos estabelecidos, o país teria cumprido apenas 16 —, a Venezuela foi suspensa do bloco no final do ano.
A melhor notícia na região veio da Colômbia, terra do realismo fantástico, que quase contribuiu para este ano com mais um evento surreal. Em outubro, o povo colombiano surpreendeu o mundo ao decidir, por pequena margem, não referendar o acordo de paz entre o governo e os guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), dias antes de o presidente Juan Manuel Santos receber o Prêmio Nobel da Paz por esse processo. Felizmente, ao final, prevaleceu a razão. Em novembro, as partes reabriram as negociações e firmaram um novo acordo, ratificado pelo Congresso.
Uma nova esperança para o Clima
Acordo de Paris sobre o clima entrou em vigor em novembro de 2016, ao atingir, em tempo recorde, o número de ratificações necessárias — 55 países responsáveis por ao menos 55% do total de emissões globais de gases de efeito estufa — para que começasse a valer, o que era esperado acontecer só em 2020.
Até o final do ano, 118 países, representando mais de 80% das emissões mundiais, o haviam ratificado, o que confirma o caráter global do acordo, cujas características, baseadas no tripé ambição-revisão-transparência (analisadas neste espaço na Retrospectiva de 2015), fazem com que este possa ter um peso relevante na luta contra o aumento da temperatura no Planeta.
Outra contribuição para o combate às mudanças climáticas veio da emenda ao Protocolo de Montreal sobre a Camada de Ozônio, de 1987, assinada em outubro em Kigali, capital de Ruanda. Esta prevê o compromisso de redução do consumo e da produção dos hidrofluorcarbonos (HFCs), gases usados para refrigeração e ar-condicionado que, embora não prejudiquem a camada de ozônio, causam o efeito estufa.
Por fim, em novembro, na cidade de Marrakesh, no Marrocos, ocorreu a 22ª Conferência das Partes da Convenção do Clima da ONU (COP-22), na qual começou-se a discutir a regulamentação e implementação do Acordo de Paris.
Como não poderia deixar de ser, esse encontro foi tomado pelo susto com a eleição de Donald Trump que, no passado, chegou a “tuitar” que o aquecimento global seria uma farsa criada pelos chineses para tornar o setor manufatureiro americano não competitivo. A ascensão ao poder de um negacionista da mudança climática, que prometeu reduzir regulações ambientais para ajudar os setores de petróleo, gás e carvão e chegou a afirmar durante a campanha que retiraria seu país do Acordo de Paris – o que, pelas regras do próprio documento, não pode ser feito em menos de 3 anos – é, sem dúvida, uma notícia preocupante. Esta, ao menos, foi compensada pela reação de outras nações, como a China, que reafirmaram seu compromisso com a causa.
Conclusão
A globalização tem um lado escuro, e este prevaleceu em 2016. O ritmo das mudanças trazidas pela abertura dos mercados e pela inovação tecnológica deixou boa parte da sociedade para trás — e essas pessoas resolveram mandar uma mensagem neste ano.
Vale a pena ouvir esse recado, porque está demonstrado que, sem controle, a globalização tende a causar sérios desvios, como crises financeiras e aumento da desigualdade. Isso não significa abandoná-la, abrindo mão de seus benefícios, que não são apenas econômicos. Colocar-se simplesmente contra a globalização seria o mesmo que adotar uma postura ludita em relação à revolução tecnológica, deixando de lado tudo que ela pode trazer de positivo – inclusive para a solução de alguns desafios comuns a toda a humanidade, como as mudanças climáticas.
A maior parte dos problemas aqui tratados somente se resolverá por meio da aceitação da nossa interdependência. Precisamos de mais cooperação internacional, e não menos. O ano de 2016, como vimos, foi surreal. Agora é torcer para que 2017, com partidos xenofóbicos avançando na Europa e Trump no poder, não venha a se tornar, mais do que um ano “marcado pela intensa realidade irracional de um sonho”, um verdadeiro pesadelo.
 é sócio de Nogueira, Elias, Laskowski e Matias Advogados, Doutor em Direito Internacional pela USP e mestre pela Universidade de Paris, com pós doutorado na Espanha pela IESE Business School.. Alguns dos temas aqui abordados foram explorados com maior profundidade em artigos do autor reunidos no blog: http:// eduardofelipematias.blogspot.com.br/ (Twitter: @EduFelipeMatias)

Revista Consultor Jurídico, 23 de dezembro de 2016, 7h54

Marcos Nobre: “Em 2017, sentimento de insatisfação pode virar contra o STF”BRASIL








Marcos Nobre: “Em 2017, sentimento de insatisfação pode virar contra o STF”

Para o filósofo Marcos Nobre, o horizonte político brasileiro é nebuloso para o ano que vem



Marcos Nobre, filósofo e professor da Unicamp 

No final do ano passado, o filósofo e cientista político Marcos Nobre disse em entrevista ao EL PAÍS que a crise vista durante 2015 se prolongaria por 2016. Também fez a leitura de que o processo de impeachment de Dilma Rousseff, que tinha acabado de ser aceito por Eduardo Cunha, era só uma tática do sistema político para se salvar da Lava Jato. Agora, depois de um ano, ele avalia que a instabilidade vista lá atrás continua e que a operação, sediada em Curitiba, continua ditando o ritmo da vida nacional. Nobre traça um horizonte nebuloso para 2017, em que até o Supremo Tribunal Federal (STF) pode se ver no centro da insatisfação popular.
Pergunta. No final do ano passado, logo depois de Eduardo Cunha deflagrar o impeachment de Dilma Rousseff, você disse que o processo era um mecanismo de autodefesa do sistema político. Funcionou?


Resposta. Por enquanto não, mas isso não significa que o sistema político não esteja tentando encontrar alguma maneira de se autoanisitiar. O problema é que quanto mais tempo passa, quanto mais delação aparece, mais difícil fica. A ideia inicial era tentar circunscrever a Operação Lava Jato à corrupção do PT. Era uma tática semelhante a do mensalão, em que figuras de alto escalão do sistema político foram entregues em uma bandeja e o resto se salvou. Só que dessa vez não deu certo. Do ponto de vista da insatisfação popular, a rejeição antipetista de certos setores virou uma rejeição à política como tal, já que a Lava Jato se estendeu por todo lado.
P. Na sua leitura, por que lá atrás a tática teve êxito e dessa vez não?
R. Por causa da maneira de operar da Lava Jato. O juiz Sergio Moro inventou uma espécie de linha de montagem processual penal. Ele não segue os passos clássicos de um processo, como aconteceu no mensalão, em que havia toda uma investigação, depois o estabelecimento de uma teia de ação e do universo de possíveis atingidos. Moro inverteu a lógica e passou a fazer um por um: esse sujeito vai me levar a outro e esse outro vai me levar a outro. Ou seja, só vai haver uma rede, uma narrativa mais consolidada, se, ao final, for possível montá-la. Quando essa lógica foi invertida, o sistema político entrou em pânico, porque já não é possível ter horizonte algum. Ninguém sabe onde isso vai acabar e qualquer acordo fica impossível. Por isso o impeachment não deu certo e, por isso, o Governo Temer está em uma situação praticamente insustentável.
P. Apesar das delações, é um Governo que conseguiu aprovar uma mudança na Constituição para aprovar o ajuste fiscal mais duro desde 1988. A situação é tão delicada assim?
R. A lógica do impeachment nunca foi a lógica das ruas. No começo das manifestações de 2015, ninguém pedia a deposição de Dilma Rousseff. Foi só depois de Temer sair da articulação política do Governo e dizer que o país precisava de alguém para reunifica-lo, que a energia foi canalizada para essa pauta. A mensagem dele, naquele momento, foi de que a porta estava aberta e de que ele trabalharia pelo impeachment. Acontece que, uma vez que ele colocou esse mecanismo em marcha, por que ele não pode se voltar contra ele? Esse era o drama na época do Collor, mas naquela época havia um projeto no horizonte. O Plano Real estava lá e a Lava Jato não existia. Agora qual é o projeto? Não há. Só há uma agenda negativa de cortes e cortes, como a PEC 55. Isso, somado ao fato de que o impeachment de Dilma não colocou ninguém a salvo, é explosivo. Se Temer não apresentar um novo Governo, se não conseguir convencer as pessoas de que é um novo Governo, ele não vai conseguir se sustentar até 2018.
P. Você acredita que a tranquilidade das ruas, então, é tão importante neste momento quanto o apoio da Câmara?

Qual é o projeto do Temer? Não há. Só há uma agenda negativa de cortes e cortes, como a PEC 55. Isso, somado ao fato de que o impeachment de Dilma não colocou ninguém a salvo, é explosivo

R. Sim, os dois são importantes, mas se engana quem acha que não há fraturas na base. Ela está expressa hoje, por exemplo, no funcionamento miúdo do sistema político. A possível indicação do Antonio Imbassahy (PSDB) para a Secretaria Geral e a reação do centrão mostra bem isso [a nomeação do tucano foi vista como um sinal de que Temer apoiaria a recondução de Rodrigo Maia (DEM) à presidência da Câmara, almejada pelo dito centrão]. O que acontece? É que ao mesmo tempo em que existe um interesse generalizado do sistema se salvar, está impossível de achar uma saída para todos e isso cria divisões internas aos montes. Como uma união contrária a Lava Jato não está funcionando como estratégia, cada ator, conforme tiver mais ou menos implicado, está tentando uma saída diferente. Por isso a presidência da Câmara é tão importante e, por isso, essa base do Governo Temer é tão delicada. Cantar vitória agora, nos seis primeiros meses, soa precipitado.
P. Mas, por enquanto, tirando as manifestações à esquerda, Temer não enfrentou uma rejeição nas ruas como a de Dilma.
O que acontece é que está funcionando já faz algum tempo, do ponto de vista da opinião pública, a história de escolher um inimigo número um, um alvo privilegiado. Por que isso? Porque tem tanta gente delatada, tem tanta gente sob suspeita, que você não pode, do ponto de vista da indignação, dirigir sua ira contra 200 ao mesmo tempo. Uma pessoa, que representa uma ojeriza geral, acaba virando o alvo. Primeiro foi a Dilma, o Lula, o PT, depois com o afastamento da ex-presidente, virou o Eduardo Cunha. Aí vieram as eleições municipais que acalmaram o cenário e agora, depois dos enfrentamentos com o Ministério Público, o alvo virou o Renan Calheiros. Nesse momento, o que o Renan mais queria, provavelmente, era sair da presidência do Senado, submergir no sistema e deixa a poeira baixar. Mas quem será o novo alvo? Vai depender muito das delações, mas o que está parecendo é que será o Temer. E se o alvo é ele, o Governo também é. Acredito que ele tem duas possibilidades: ou dá um jeito de desviar dessa indignação, sabendo que em algum momento ela pode vir para cima dele, ou, mais uma vez, dá um jeito de se reconfigurar. De fazer com que pareça que ele está começando de novo.
R. E essa reconfiguração seria uma troca ministerial no começo do ano, por exemplo?
P. Também. Ele precisa fazer alguma coisa para apresentar um horizonte. A PEC do teto de gastos só foi relativamente compreendida pela população no momento em que ela estava sendo votada em segundo turno no Senado, mas vem aí uma reforma da Previdência. E de Previdência as pessoas entendem. É algo palpável, sensível. É de se esperar que vão reagir de outro modo. Não dá para governar na base de corte. Quer dizer, por enquanto, o Governo consegue aprovar as coisas, porque essa é a especialidade do PMDB: ser base. Mas o que vem funcionando nos últimos 20 anos no Brasil é que você tem dois polos e um centro. Os polos são representados por PT e PSDB, o centro é essa coisa meio amorfa que é o PMDB, especializada em oferecer apoio parlamentar. PT e PSDB são especialistas em coordenar, em criar agendas minimamente transversais que apontam para um lugar. É só pensar nos anos FHC, Lula e Dilma. Você sabia para onde eles estavam indo. A grande questão é que o PMDB não vai conseguir fazer isso sem esse tipo de expertise. Bom, o PT está fora do jogo no momento, então a questão é: ou o PSDB entra com tudo e coordena esse Governo, assumindo sua função clássica, ou esse Governo não dura. O dilema do Temer, no momento, passa por isso, porque ele já perdeu sua cozinha política. Não caiu só o Geddel, mas a capacidade de articulação de figuras como Eliseu Padilha e Moreira Franco também está debilitada. O Temer precisa do PSDB.

Não caiu só o Geddel, mas a capacidade de articulação de figuras como Eliseu Padilha e Moreira Franco também está debilitada. O Temer precisa do PSDB

P. E o PSDB precisa do Temer?
R. O partido está rachado de maneira irremediável e não se sabe como e nem se vai conseguir se reunificar. Hoje, Geraldo Alckmin é o candidato mais forte. Ele tem o segundo e o terceiro orçamento da união: Estado e cidade de São Paulo [comandada por João Doria, prefeito eleito e afilhado político de Alckmin]. Serra e Aécio, por outro lado, não tem dinheiro, mas são mais expressivos e estão fazendo uma aliança contra Alckmin. Para o Governador, o interessante é fugir dessa aliança, mas os dois querem tomar o Governo Temer. É um risco para o futuro? É, mas é como eles podem lutar contra a influência de Alckmin. O que isso significa? Que a política, como funcionou desde 1994, não existe mais. Os polos coordenadores estão fraturados e o centro, que sempre foi responsável por apoio parlamentar e conquista de votos, está desnorteado com a Lava Jato. Ninguém sabe até onde ela vai e nem quanto ela acaba.
P. Moro vem dizendo que ano que vem gostaria de morar nos Estados Unidos e parece pouco provável agora, mas já falou em encerrar a operação até o final deste ano.
R. Só que ela continua no STF. Ele terá que lidar com todos os processos com foro privilegiado que vão chegar lá. E aí está uma questão central do problema vivido hoje no Brasil. Quando eu digo que o sistema político não sabe o que fazer, estou incluindo também o Judiciário. Nunca considerei que a Justiça está fora desse sistema. O que quero dizer é que o STF terá problemas pela frente. No momento em que a Corte e as instâncias superiores foram concordando com os procedimentos controversos da Lava Jato, passaram a mensagem de que esse procedimento vale lá também. Como o STF vai fazer para julgar tudo o que vai chegar lá no ano que vem? O risco é que o sentimento de insatisfação que virou contra o Renan, que pode virar contra o Temer, também pode virar contra o STF.
P. Em algumas manifestações já teve pixuleco de juízes do Supremo...
R. Sim. Uma coisa é você ter um juiz de primeira instância, com dedicação exclusiva, que é o caso do Sergio Moro. Outra coisa é o funcionamento normal do Judiciário. Não foram apenas as sucessivas confirmações do trabalho da Lava Jato, mas também algumas decisões, como a prisão do Delcídio do Amaral, um senador em exercício de mandato, que colocaram em marcha uma maneira de funcionar que não cabe dentro do sistema. Acho que o STF vai receber uma bola de Curitiba que não está preparado para lidar. Se não se preparar, vai ser apedrejado. Não existe nenhuma figura, ou instituição, hoje que seja incontroversa.
P. Moro não é essa figura?
R. Não, de jeito nenhum. É só citar a divulgação do áudio em que a presidente aparecia falando, o caso do promotor que apresentou um PowerPoint esdrúxulo, e, mais recentemente, a foto de Moro em uma espécie de convescote com Aécio Neves. Essas coisas só são aceitas sem conflitos por um ódio antipetista ensandecido. Ele é uma figura controversa.
P. Uma pesquisa recente do instituto Ipsos mostra que 96% da população é favorável à Operação Lava Jato custe o que custar.
R. O que essa pesquisa mostra é que a luta contra corrupção é uma unanimidade e hoje, no Brasil, Lava Jato virou sinônimo dessa luta. Agora, quando você vai para as figuras, sempre há controvérsias. O principal é que esse sentimento é um reflexo do fato de que a maneira de funcionar do sistema político brasileiro acabou com as manifestações de junho de 2013. Essa história de um Governo que só governa com uma supermaioria não dá mais. Só que ninguém se dá conta disso, porque a Lava Jato impõe um ritmo de salvação para esse sistema. Quem está pensando no futuro, não consegue pensar na semana que vem. É um horizonte muito curto.

Hoje, poucas pessoas estão contando com a possibilidade de Lula ser candidato, mas ninguém pode colocar alternativa enquanto isso não for resolvido. A reconfiguração da esquerda depende dele

P. Enquanto o Governo Temer termina o ano envolto em turbulência, a esquerda, por outro lado, não consegue se reorganizar. Talvez o momento mais significativo do ano tenha sido a manifestação de 4 de setembro contrária a deposição de Dilma Rousseff, que reuniu 100 mil pessoas, em São Paulo. Por que isso não se repete?
R. Aquele foi um momento muito significativo, porque o campo progressista entendeu que a defesa do mandato de Dilma não era uma defesa do Governo dela ou do PT, mas uma defesa da esquerda. É uma pauta que mobiliza, que diferencia. Isso só vai acontecer de novo quando a esquerda construir, novamente, uma agenda. Qual é o programa econômico da esquerda hoje? Quais são as ações propostas para se enfrentar o retrocesso? Não há. O Lula hoje é o principal nome desse campo, continua crescendo nas pesquisas, mas a discussão fica travada porque não se sabe o destino dele. Estão todos à espera do que vai acontecer com ele. Hoje, poucas pessoas estão contando com a possibilidade de ele ser candidato, mas ninguém pode colocar alternativa enquanto isso não for resolvido. A reconfiguração da esquerda depende dele.
P. No final do ano passado, você disse durante as eleições de 2014, a rua, que protestou em 2013, foi organizada em duas calçadas distintas. 2017 pode começar com a união dessas duas calçadas entorno de uma pauta?
R. Acho pouco provável. Os últimos anos fraturaram demais a opinião pública. O que pode acontecer, isso, sim, são manifestações que pedem a mesma coisa em dias diferentes ou em locais diferentes. Podem ter o mesmo objetivo e adotarem a pauta do Fora Temer ou se virarem contra a reforma da previdência, mas as razões serem diferentes. E as razões, na política, importam muito.