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Pega na mentira
Pega na mentira
No dia 11, multidões foram às lotéricas, apavoradas com a ideia de que ia acabar o Bolsa Família – ou apressadas em receber um extra de Dia das Mães que seria pago apenas naquele dia. Não adiantaram desmentidos das lotéricas. Como isso ocorreu em quase metade dos Estados, fica a pergunta: quanto pode um rumor falso? Como tantas pessoas acreditam numa bobagem dessas, que felizmente não feriu nem matou ninguém?
No Barbeiro de Sevilha, de Rossini, dois velhos tentam impedir o amor dos jovens. Para isso, usam a calúnia. Como ela atua? Ela é uma mentira. Começa baixinho, para apagar suas origens; cresce; forma uma rede, garantindo anonimato; torna-se irrefreável; e elimina “o infeliz caluniado”. Nos boatos do fim de semana, estiveram presentes o anonimato, a torrente e a maldade.
Quem inventou e difundiu o rumor foi antiético. A mentira perturbou vidas. É preciso apurar os fatos. Aparentemente, foi um rumor de ouvir dizer. Não creio que tenha saído pelas redes sociais; se assim fosse, alguém já teria descoberto onde, quando e por quem.
Mas a grande questão é: como circulam ideias, opiniões e mentiras? Foi tudo orquestrado por ligações de celular, para várias cidades, de modo a espalhar o medo? Essa interpretação está perto da teoria da conspiração – o que não significa que esteja errada, porque também paranoicos são perseguidos. Ou o rumor se terá alastrado, espontaneamente, em horas, por dezenas de cidades? A hipótese da conspiração é mais plausível que a da geração espontânea. O caso merece um estudo interdisciplinar. A curto prazo, a polícia precisa intervir, com o objetivo principal, mas não único, de punir. A médio, a academia deve interpretar, com o objetivo de compreender a comunicação informal em nossos dias.
Há uma diferença. A polícia vai apurar como criminosos enganaram suas vítimas. Só que a grande pergunta, que cabe à academia, é: como pode alguém ser vítima de um conto tão mal contado? Como se dá crédito a rumores absurdos? Alguém em sã consciência pode crer que, sem aviso pelos meios de comunicação, sem nada nos jornais ou blogs, o governo cortaria um benefício social para – esse é o lado cômico da coisa – pagar a recepção ao papa Francisco? O crédulo precisa ignorar totalmente como funcionam a sociedade, o Estado, para cair nessa.
Temos uma democracia, um Estado de Direito. Se a Presidência pudesse suspender o Bolsa Família de repente, ou desse poucas horas para sacar o bônus de Dia das Mães, nosso regime seria despótico, não democrático. Acreditar nesse tipo de rumor é não saber o que é a democracia. E crer nessas bobagens não é distintivo de pessoas incultas. Quanta gente não reproduz notas dos sites de humor levando-as a sério?
Um ex-candidato a presidente, antigo e culto comunista, assim acreditou na nota do G17 segundo o qual Dilma teria mandado escrever “Lula seja louvado” nas cédulas de real. Ele não percebeu que a presidente não pode fazer isso legalmente, nem que ela jamais o faria. Possuído pela paixão, acreditou. Ou vejam, na internet, a imagem do fazendão do filho de Lula – fazendão esse que, na verdade, é a sede da Esalq, a escola de agronomia que é um dos orgulhos da USP e do Brasil. Um conhecido postou a denúncia da tal fazenda no Facebook; alertei-o de seu erro. Respondeu-me: quero uma certidão negativa. Queria ele que o diretor da escola de agricultura o desse? O episódio só ilustra a ignorância convertida em sem-vergonhice: a pessoa descobre que errou, mas, em vez de se desculpar ou retratar, ou de se envergonhar, reitera. Transforma o erro em mentira. Há até quem diga: com tudo o que acontece no Brasil, seria possível.
Por que, então, a recepção do absurdo? À primeira vista, ela se explicaria pela ignorância dos desinformados. Quem sabe, por serem carentes, os beneficiários do Bolsa Família seriam mais crédulos, só conhecendo do Estado a dimensão assistencial? Mas pessoas supostamente educadas também veiculam absurdos. Será essa uma fragilidade de nossa democracia? Um ponto fraco de nossa educação política?
Tenho insistido em que nossa democracia é mais forte no plano das instituições que no da crença nela depositada. Temos eleições limpas como nunca antes. As campanhas são razoáveis, embora não perfeitas. Mas candidatos e mesmo eleitores demonizam o adversário, o que lhes dá nota zero em sociabilidade democrática, porque o bê-á-bá da democracia é que disputamos com adversários, não com inimigos. Inimigos, na guerra, nós matamos. Com adversários, na paz, disputamos. É diferente. Mas não é assim que a democracia tem sido vivida, aqui, pelos seres de carne e osso que elegem e são eleitos. Se usarmos conceitos de Montesquieu, eu diria que a natureza da democracia, seu conceito, sua descrição, sua instituição, vão bem, obrigado, no Brasil; mas o princípio dela, a paixão que os cidadãos sentem por ela, o movimento que lhe confere vida, isso é bem fraco entre nós. Dar fé a rumores estúpidos faz parte dessa fragilidade democrática. Podemos extrair daí uma lição: é preciso educação política em democracia. Na política, a razão funciona melhor que esse mau pensamento mágico, que acredita que decisões de governo são atos de prestidigitação, em que por um passe de magia se dá sumiço a uma bolsa ou se cria um bônus dela, como se numa sociedade complexa as instituições funcionassem baseadas no pó de pirlimpimpim.
*RENATO JANINE RIBEIRO, PROFESSOR TITULAR DE ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA DA USP, É AUTOR DE A SOCIEDADE CONTRA O SOCIAL – O ALTO CUSTO DA VIDA PÚBLICA NO BRASIL (COMPANHIA DAS LETRAS)
No Barbeiro de Sevilha, de Rossini, dois velhos tentam impedir o amor dos jovens. Para isso, usam a calúnia. Como ela atua? Ela é uma mentira. Começa baixinho, para apagar suas origens; cresce; forma uma rede, garantindo anonimato; torna-se irrefreável; e elimina “o infeliz caluniado”. Nos boatos do fim de semana, estiveram presentes o anonimato, a torrente e a maldade.
Quem inventou e difundiu o rumor foi antiético. A mentira perturbou vidas. É preciso apurar os fatos. Aparentemente, foi um rumor de ouvir dizer. Não creio que tenha saído pelas redes sociais; se assim fosse, alguém já teria descoberto onde, quando e por quem.
Mas a grande questão é: como circulam ideias, opiniões e mentiras? Foi tudo orquestrado por ligações de celular, para várias cidades, de modo a espalhar o medo? Essa interpretação está perto da teoria da conspiração – o que não significa que esteja errada, porque também paranoicos são perseguidos. Ou o rumor se terá alastrado, espontaneamente, em horas, por dezenas de cidades? A hipótese da conspiração é mais plausível que a da geração espontânea. O caso merece um estudo interdisciplinar. A curto prazo, a polícia precisa intervir, com o objetivo principal, mas não único, de punir. A médio, a academia deve interpretar, com o objetivo de compreender a comunicação informal em nossos dias.
Há uma diferença. A polícia vai apurar como criminosos enganaram suas vítimas. Só que a grande pergunta, que cabe à academia, é: como pode alguém ser vítima de um conto tão mal contado? Como se dá crédito a rumores absurdos? Alguém em sã consciência pode crer que, sem aviso pelos meios de comunicação, sem nada nos jornais ou blogs, o governo cortaria um benefício social para – esse é o lado cômico da coisa – pagar a recepção ao papa Francisco? O crédulo precisa ignorar totalmente como funcionam a sociedade, o Estado, para cair nessa.
Temos uma democracia, um Estado de Direito. Se a Presidência pudesse suspender o Bolsa Família de repente, ou desse poucas horas para sacar o bônus de Dia das Mães, nosso regime seria despótico, não democrático. Acreditar nesse tipo de rumor é não saber o que é a democracia. E crer nessas bobagens não é distintivo de pessoas incultas. Quanta gente não reproduz notas dos sites de humor levando-as a sério?
Um ex-candidato a presidente, antigo e culto comunista, assim acreditou na nota do G17 segundo o qual Dilma teria mandado escrever “Lula seja louvado” nas cédulas de real. Ele não percebeu que a presidente não pode fazer isso legalmente, nem que ela jamais o faria. Possuído pela paixão, acreditou. Ou vejam, na internet, a imagem do fazendão do filho de Lula – fazendão esse que, na verdade, é a sede da Esalq, a escola de agronomia que é um dos orgulhos da USP e do Brasil. Um conhecido postou a denúncia da tal fazenda no Facebook; alertei-o de seu erro. Respondeu-me: quero uma certidão negativa. Queria ele que o diretor da escola de agricultura o desse? O episódio só ilustra a ignorância convertida em sem-vergonhice: a pessoa descobre que errou, mas, em vez de se desculpar ou retratar, ou de se envergonhar, reitera. Transforma o erro em mentira. Há até quem diga: com tudo o que acontece no Brasil, seria possível.
Por que, então, a recepção do absurdo? À primeira vista, ela se explicaria pela ignorância dos desinformados. Quem sabe, por serem carentes, os beneficiários do Bolsa Família seriam mais crédulos, só conhecendo do Estado a dimensão assistencial? Mas pessoas supostamente educadas também veiculam absurdos. Será essa uma fragilidade de nossa democracia? Um ponto fraco de nossa educação política?
Tenho insistido em que nossa democracia é mais forte no plano das instituições que no da crença nela depositada. Temos eleições limpas como nunca antes. As campanhas são razoáveis, embora não perfeitas. Mas candidatos e mesmo eleitores demonizam o adversário, o que lhes dá nota zero em sociabilidade democrática, porque o bê-á-bá da democracia é que disputamos com adversários, não com inimigos. Inimigos, na guerra, nós matamos. Com adversários, na paz, disputamos. É diferente. Mas não é assim que a democracia tem sido vivida, aqui, pelos seres de carne e osso que elegem e são eleitos. Se usarmos conceitos de Montesquieu, eu diria que a natureza da democracia, seu conceito, sua descrição, sua instituição, vão bem, obrigado, no Brasil; mas o princípio dela, a paixão que os cidadãos sentem por ela, o movimento que lhe confere vida, isso é bem fraco entre nós. Dar fé a rumores estúpidos faz parte dessa fragilidade democrática. Podemos extrair daí uma lição: é preciso educação política em democracia. Na política, a razão funciona melhor que esse mau pensamento mágico, que acredita que decisões de governo são atos de prestidigitação, em que por um passe de magia se dá sumiço a uma bolsa ou se cria um bônus dela, como se numa sociedade complexa as instituições funcionassem baseadas no pó de pirlimpimpim.
*RENATO JANINE RIBEIRO, PROFESSOR TITULAR DE ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA DA USP, É AUTOR DE A SOCIEDADE CONTRA O SOCIAL – O ALTO CUSTO DA VIDA PÚBLICA NO BRASIL (COMPANHIA DAS LETRAS)