A nova jabuticaba política nacional, Guilherme Afif Domingos, só pode ser transgênica. É um híbrido de duas espécies até então incompatíveis: uma dá no Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo, outra no Palácio do Planalto, em Brasília. A posse, na quinta-feira, do vice-governador da administração tucana de Geraldo Alckmin como ministro da Secretaria da Micro e Pequena Empresa pela presidente petista Dilma Rousseff superou as mais surreais expectativas sobre o vale-tudo da política brasileira.
Desde então, o professor de sociologia e política do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), Carlos Melo, tem tentado entender o estranho fruto. “Afif está inaugurando a onipresença política, pretendendo servir a dois senhores ao mesmo tempo”, diz o autor de Collor, o Ator e suas Circunstâncias (Editora Novo Conceito, 2007). Para Melo, o vice da oposição que é ministro da situação demonstra quanto os governos brasileiros se tornaram dependentes de aliados como o PMDB de Renan e Henrique Alves e o PSD de Afif e Gilberto Kassab, cujo único projeto é estar no poder. E evoca a sintomática atualidade da frase de Tancredo Neves sobre o antigo (e de sigla homônima) Partido Social Democrático: “Entre a Bíblia e O Capital, o PSD fica com o Diário Oficial”.
O professor identifica a exaustão do até agora relativamente funcional “presidencialismo de coalizão” brasileiro – cujos custos aumentam a cada reeleição do grupo político que está no poder – nas dificuldades crescentes do governo Dilma no Congresso. “Não se aprova a reforma do ICMS nem a legislação dos portos, e até os vetos da presidente são derrubados.”
Que tal a nova jabuticaba brasileira?
É uma jabuticaba criativa, de duas cores: azul e vermelha ao mesmo tempo. Ela engendra uma relação entre dois partidos que estão em campos opostos há anos. A questão não é apenas ocupar dois cargos públicos ao mesmo tempo. Mas ocupar espaços e pressupostos absolutamente diferentes. Se o Brasil estivesse em um governo de união nacional, em uma situação em que todas as forças políticas tivessem que estar presentes, faria algum sentido. Obviamente não é o caso.
Afif pertence ao PSD do ex-prefeito Kassab, partido novo que agremiou, em tempo recorde, uma das maiores bancadas do País. Como entender isso?
Um tempo atrás, o STF tomou a decisão de defender a fidelidade partidária: que um parlamentar eleito pelo partido A teria que continuar nele até o final de seu mandato. Do contrário, o perderia. Aí a “criatividade” da política brasileira produziu uma outra jabuticaba: se ele não podia mudar de partido no meio do mandato, podia ir para um novo. Então, começou a ser um grande negócio criar partidos ou fundir legendas debaixo de um novo nome. Isso aconteceu com o velho DEM, que antes era PFL, aliado histórico do PSDB desde 1994. Afif se elege vice-governador na lógica do velho DEM, que era de oposição renhida ao governo do PT. No entanto, a brecha para se fundar um novo partido, com uma nova cara, outro posicionamento, resultou no PSD – que diz, com todas as letras, pela boca de seu presidente, que “não será de direita, não será de esquerda, nem de centro”! Nesse sentido, Afif é coerente com a incoerência de seu partido, essa coisa sem forma nem cor.
O PSD é uma novidade no quadro partidário historicamente confuso do País?
Se me permite uma digressão, há uma coincidência interessante. O PSD é uma sigla que já existiu no passado, entre 1946 e 1964, o “partido das raposas”, criado pela mão de Getúlio Vargas. Uma das muitas raposas do PSD foi o ex-presidente Tancredo Neves, que tinha uma frase ótima naquele contexto da Guerra Fria e serve como uma luva ao partido atual: “Entre a Bíblia e O Capital, o PSD fica com o Diário Oficial”. Afif foi além, ficou com dois diários oficiais.
A lei determina que ele abra mão de um dos ordenados dos cargos: R$ 19,6 mil como vice-governador ou R$ 26,7 mil como ministro...
O que nem é importante para ele, um empresário de sucesso, que não está na política por causa do salário. Pode ser até que Afif opte pelo salário menor. Mas se fizer isso tampouco será por consciência, mas para vender a ideia de que faz isso “contra meus próprios interesses” (Afif acabou optando pelo salário maior). O que tem importância é o espaço político que ele imagina preservar lá e cá. Está inaugurando a onipresença política, pretendendo servir a dois senhores.
Será possível servir bem a ambos?
Ou bem ele é isolado em um dos dois grupos ou não terá a confiança de nenhum dos dois. Se Afif exercer plenamente, de maneira integrada, o cargo em São Paulo e o ministério em Brasília, tem que virar presidente da República, porque vai conseguir o prodígio de juntar PT e PSDB – coisa que nem Lula, nem Fernando Henrique, Tasso Jereissati ou Mário Covas conseguiram. Não houve santo nesta terra que tenha feito esse milagre.
O filósofo Marcos Nobre, da Unicamp, cunhou a expressão ‘peemedebização’, a composição de um centro tão heterogêneo no Congresso que este se torna incapaz de aprovar qualquer inovação política. O PSD quer esse mesmo papel de fiel da balança?
Gosto dessa tese do Marcos Nobre. Mas a “peemedebização” já vem da “pessedização” original dos anos 1940 para os 60. O PSD à época já servia como fiel da balança nos conflitos entre UDN e PTB. O PMDB descobriu isso: para ele não é interessante ter candidato a presidente da República, pois seja lá quem ganhe, sempre sai vitorioso. De modo que o PMDB já tinha no PSD antigo uma referência histórica, assim como o atual PSD. O partido de Kassab e Afif sabe que essa é a fórmula mais adequada ao fisiologismo brasileiro: estar bem com todo mundo, fincar pé em todas as canoas e trabalhar com essa ambiguidade.
Quais é a consequência dessa eterna reprodução do fisiologismo nacional?
A consequência é que não há projetos voltados a algum tipo de transformação social lá no fim. O que há são projetos de poder, de ocupação de espaço. Tem uma frase no Alice no País das Maravilhas que acho fantástica. Alice pergunta ao gato: “Para onde vai essa estrada?” O gato devolve: “Mas para onde você quer ir?” Alice diz: “Não sei”. E o gato fala: “Para quem não sabe para onde quer ir, qualquer caminho serve”. No caso do Brasil não é nem que não saibam para onde ir, eles querem ir para todos os lados. Para onde quer que haja uma migalha de poder a ser recolhida.
A disputa pelo tempo de TV é um dos responsáveis por isso?
O tempo de TV se transformou, ao longo da história e das mudanças da legislação no País, na principal moeda de troca. E, depois, a garantia de segurança no Parlamento: compor maiorias para não ter investidas que desestabilizem o governo, como CPIs. Nessa lógica competitiva, preciso trazer o maior número de partidos e mais tempo de TV para minha coligação, deixando o mínimo para meu adversário.
Alguns cientistas políticos brasileiros afirmam que, apesar de suas distorções, o presidencialismo de coalizão é uma fórmula vitoriosa, que conferiu estabilidade à democracia do País. O sr. discorda?
É algo que tenho formulado há algum tempo. Concordo com a forma com que meus colegas vinham analisando o presidencialismo de coalizão. Ele de fato forma maiorias. Tem um custo, na distribuição do espaço no governo, mas os partidos votam de acordo com os objetivos do Executivo. Implementa-se uma agenda. Isso é uma maravilha, mas só quando se tem alternância no poder. Por quê? No primeiro mandato, o presidente tem 25 mil cargos para distribuir e formar essa maioria. Os partidos o procuram, cortejam, o presidente vira uma grande noiva. É o período de lua de mel. Maioria formada, dois anos depois é preciso pensar na reeleição. Aí os partidos dizem: “Olha, aquele acordo tem de ser revisto, porque não estou mais satisfeito. Quero mais”. E o presidente, que já tinha distribuído os cargos, começa a entrar nas joias da coroa: postos importantes nas estatais. Você deve se lembrar do Severino Cavalcanti: “Não quero uma diretoria qualquer da Petrobrás. Quero aquela que faz buraco e acha petróleo”. Hoje, vivemos uma situação em que tivemos eleição, reeleição e sucessão. E quando se chega ao terceiro mandato, já se distribuiu tudo que era possível, compôs-se uma base de 400 deputados, só que ela não vota mais de acordo com o que o governo quer. Há um efeito voracidade, que leva o presidencialismo de coalizão a um ponto de exaustão.
É essa exaustão que estamos vendo agora?
A tal ponto que se precisou dar um cargo na Comissão de Direitos Humanos ao pastor Feliciano. O problema já era perceptível no início do governo Dilma. Mas a fase em que entramos é ainda pior: a reeleição na sucessão. Os acordos não são duráveis, a cada novo projeto o Legislativo quer rediscutir mais espaço. E não se consegue mais tocar uma agenda – tudo precisa ser negociado ponto por ponto. A voracidade chegou a tal nível que o governo Dilma não consegue mais aprovar nada. Não aprova a reforma do ICMS, nem a legislação dos portos e até os vetos da presidente são derrubados.
O fim da reeleição, que chegou a ser aventado por Aécio Neves, seria uma solução?
Vou usar aqui um clichê, me perdoe. O marido chega em casa e encontra a mulher traindo-o com outro no sofá. Então, pega e joga fora o sofá. O problema não é a reeleição, é a mentalidade, a prática política, que se utiliza da reeleição para se expandir. Precisamos não de uma reforma política, mas de uma reforma da política, da concepção que temos dessa atividade. Chegamos à total exaustão quando um determinado personagem se vê no direito de ser ministro do governo de um partido e vice de um governo de outro partido.
A velha oposição entre principismo e pragmatismo ganhou outra dimensão no Brasil?
Quem viu o filme Lincoln sabe da polêmica que ele levanta, sobre como o presidente americano comprou deputados para aprovar a abolição da escravatura. “Está vendo, até o Lincoln teve que fazer isso”, dizem uns. Só que ali é pragmatismo em nome de um princípio muito claro, a abolição. Aqui é pragmatismo em nome do quê? Você precisa ter princípios norteadores que não sejam camisas de força. Tem que saber ceder, aqui e acolá, sem perder a essência. Mas o pragmatismo sem princípios está se revelando tão ineficaz quanto o principismo sem pragmatismo. O pragmatismo sem princípios dá em Danton; princípios sem pragmatismo dão em Robespierre. Tanto um quanto outro terminaram na guilhotina.
Qual o primeiro passo para a mudança de mentalidade de que precisamos?
Retomo a pergunta: qual é o projeto? O PSDB ainda pode dizer “queremos criar instituições democráticas e impessoais”. O PT, “estamos trabalhando para distribuir renda”. Tanto um quanto outro douram a própria pílula, mas tudo bem. Mas e quanto ao PSD? O PMDB? Você já viu Kassab, Renan, Henrique Alves ou Eduardo Cunha externando qualquer coisa nesse sentido? Vivemos um processo de seleção adversa na política: não são mais os melhores que a fazem. É preciso recuperar a ideia da política como atividade nobre. O primeiro passo é deixar a crise mostrar que não estamos bem, há um impasse, e explicitar esse desconforto. O segundo é compreender que temos patinado num processo que poderia ser mais ágil. Temos condição de fazer mais, como aliás todos os candidatos estão dizendo – inclusive a própria presidente Dilma. Está na hora de perceber que, por mais que tenhamos dado um salto de 1994 para cá, está na hora de dar outro. E estamos com as pernas amarradas.