terça-feira, 2 de abril de 2024

Wilson Gomes Por que o debate público parece cada vez mais caótico?, FSP

 São tempos muito tumultuados na política. Estamos quase todos perdidos, patinando em gelo fino, não controlamos sequer o vocabulário da conversa social e brigamos por palavras e designações como em outros tempos, igualmente fatais, lutávamos pela fé verdadeira ou por conquista de terras e riquezas. E quem não se sente confuso há de ser porque deve estar investindo na confusão para faturar com o caos.

Não tenho explicações, só faço mapas. Infelizmente. Mas o que sei da nossa peculiar era política é que uma grande parte do desentendimento acontece por duas razões. A primeira é que o debate público provavelmente nunca esteve tão saturado, com tanta gente falando coisas tão diferentes ao mesmo tempo, o que leva todos a gritarem na esperança de serem ouvidas. O mercado de ideias, na metáfora liberal, virou uma feira superlotada, sob um sol escaldante, com mais vendedores do que compradores, em que todos berram e quase ninguém ouve ou entende.

Nesta década, não apenas estamos muito mais interessados em política do que há 15 anos, por exemplo, mas também tendemos a politizar absolutamente tudo. Os confins entre as esferas íntima, particular e pública já não fazem sentido: tudo deságua na esfera pública e as coisas mais pessoais e mais "apolíticas" se tornam objeto do acalorado debate político nacional. Tão dignas de atenção e energia pública quanto qualquer grave problema social ou alguma proposta de emenda constitucional.

A segunda razão é que as várias categorias de práticas políticas estão ocorrendo simultaneamente, e umas contra as outras.

Temos, naturalmente, a política instrumental clássica, geralmente praticada no quadro tradicional de direita versus esquerda, progressistas versus conservadores. Seus objetivos são estáveis, os meios e os atores são bem conhecidos, e envolve a disputa pela aprovação de projetos de lei e pela implementação de regulamentações e políticas públicas. No cerne de tudo isso está a luta por mandatos executivos e parlamentares em eleições livres e justas.

Na ilustração, toda em preto e branco e tons de cinza, do lado esquerdo a silhueta de uma pessoa com o braço levantado e a mão aberta chamando a atenção. No espaço restante à direita da pessoa, vários braços levantados na mesmo tipo de movimento, chamando a atenção. Os braços se diferenciam uns dos outros pela nitidez ou não, alguns muito fora de foco, todos eles se sobrepõem por transparência. Como fundo, uma textura de pontos mais intensa do lado esquerdo e quase desaparecendo do lado direito.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 2 de abril de 2024 - Ariel Severino/Folhapress

Mas nem todo mundo está na esfera pública para lutar por mandatos e bancadas parlamentares. Muitos certamente estão lá para a política como expressão e desabafo. No centro da arena estão sentimentos e afetos, o que significa muitas vezes ódio e ressentimento. O resultado da ação não é dirigido para solucionar um problema identificado, mas é um meio de expressar o que as pessoas sentem em relação à própria situação. A frustração facilmente se orienta para destruir, depredar. Quando não há o que de fato quebrar ou incendiar, move-se para o nível simbólico de destruição e ressentimento, que se materializam em ambientes digitais na forma de escaramuças e linchamentos.

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Além disso, há a política dos movimentos morais, cujo principal objetivo é expressar valores culturais e reforçar a identidade social. Símbolos culturais, ideias arraigadas sobre o certo e o errado, o moral e o imoral são base suficiente para a ação política. Esta forma de política é chamada de "moral" não necessariamente por seu alto valor ético, mas sim por ser moralista. Pessoas direitas e homens de fé, de um lado, tanto quanto as "vítimas da opressão" e "os corpos historicamente subalternizados", do lado oposto, lutam na esfera pública para corrigir o comportamento dos imorais. Que tanto podem ser os liberais nos valores, os opressores ou "o resto da sociedade".

Eles buscam resultados tangíveis, como leis e políticas públicas, que reflitam sua visão de mundo e seus valores, ou que assegurem privilégios para membros especiais do grupo. No entanto, acima de tudo, buscam resultados simbólicos: a conversão dos outros e da sociedade de acordo com a definição de correção adotada pelo grupo; a vigilância constante dos comportamentos inadequados na esfera pública, levando a expedições morais punitivas; a disputa contínua pela linguagem apropriada; a recusa fundamentalista em questionar as crenças compartilhadas pelo grupo; e o horror a quem deles diverge.

O aparente caos do debate público em grande parte decorre disso. Há, sim, discussão política como habitualmente se faz, mas isso é quase nada diante da quantidade de temas, propósitos e atores que colidem entre si numa intensidade sem precedentes. A política institucional segue o seu caminho, em geral pouco virtuoso, enquanto a esfera onde ela deveria ser examinada, dobrada à razão e ao interesse público, e negociada republicanamente, virou uma confusão de performances, símbolos e dogmas cujo sentido é impossível estabelecer.

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