quinta-feira, 4 de abril de 2024

Tirando ouro do nariz, José Benjamim de Lima

 

“O juiz municipal

discute com o juiz estadual

qual deles é capaz de bater o juiz federal.

Enquanto isso o juiz federal

tira ouro do nariz.

(Versão parodiada do poema “Política Literária,).

de Carlos Drummond de Andrade)

 

Nos tempos do poema piada modernista, Drummond escreveu um pequeno texto, dedicado a Manuel Bandeira, intitulado “Política Literária”: “O poeta municipal / discute com o poeta estadual / qual deles é capaz de bater o poeta federal.  // Enquanto isso o poeta federal / tira ouro do nariz”. Um pouco pela minha vida profissional, não sei ler esse pequeno poema sem ter a tentação de substituir poeta por juiz, mesmo sabendo que a versão paródica fica meio capenga, por falta, em nosso ordenamento jurídico atual, da figura do juiz municipal, o que inviabiliza a disputa de poder nos termos implícitos no poema. De qualquer forma a disputa de competências entre a Justiça Estadual e as Federais já justifica o poema, entendido como “Política Judiciária”, com destaque para o atual Supremo Tribunal Federal que parece estar querendo, para aumentar seu poder, açambarcar todas as competências.

 

Desde mocinho, quando nos bancos escolares aprendia sobre os três poderes da República, ficava encafifado pela ausência de um Poder Judiciário Municipal, o que prejudicava a simetria perfeita que a meu ver devia existir nos vários níveis dos poderes republicanos. Se no Executivo havia Presidente da República, Governador do Estado e Prefeito Municipal; se no Parlamento havia Deputados Federais, Deputados Estaduais e Vereadores, por que no Judiciário havia apenas a Justiça Federal e Estadual? Adepto intransigente das formulações simétricas perfeitas, essa lacuna sempre me incomodou.

 

Mais tarde descobri que na tradição do direito português e brasileiro havia sim uma Justiça Municipal, encarnada nas figuras dos juízes municipais e dos juízes de paz, com algumas atribuições tanto no Juízo Cível como no Criminal. O Código Criminal de Primeira Instância do Império previa a existência de juízes de paz para os distritos, juízes municipais para os “termos” e juízes de direito para as comarcas. Estes eram nomeados pelo Imperador; os juízes de paz, eleitos pelo povo, juntamente com os vereadores; e os juízes municipais eram nomeados pelo Governo da Província, a partir de uma lista tríplice elaborada pela Câmara Municipal. (Mas aqui, também, a simetria não era perfeita. Por força da conformação do Império como Estado Unitário e não Federativo, só havia, além dos municipais, os juízes de direito, nomeados pelo Imperador, inexistindo a figura do juiz federal). Nos tempos da República, a figura do juiz municipal desapareceu, manteve-se apenas a do juiz de paz, com atribuição restrita a presidir casamentos.

 

O Constituinte de 1988 buscou abrir caminho para revigorar a figura do juiz de paz, admitindo sua remuneração e ampliação de atribuições, embora sem dizer quais seriam elas. Mas não ousou dispor sobre a criação de juizados municipais, embora tenha admitido a atuação de juízes leigos não remunerados para pequenas causas, como auxiliares dos juízes togados.  Em relação aos juízes de paz, o Parlamento e o Judiciário fizeram ouvidos moucos e não legislaram, nem provocaram legislação que ampliasse suas atribuições. Os Poderes tendem a ser centrípetos, ou seja, procuram atrair para si todo o poder possível, não gostam de dividi-lo; quando há risco de perder parte dele, deixam de tirar ouro do nariz, e entram em ação, ágeis, ativos e competentes.

 

Pode parecer bizarro ou surreal, mas já é tempo de se pensar em buscar o ideal de simetria, nos três níveis de Poder, criando-se uma Justiça Municipal. E não apenas para que o juiz federal possa com mais pose tirar ouro do nariz. Nos dias de hoje, de crime organizado sofisticadíssimo, transestadual e transnacional, de crimes hediondos de alto impacto na segurança e na ordem públicas, não se justifica que os mesmos juízes, promotores e policiais que cuidam da repressão desses crimes, que exige muita perícia, especialização e dedicação, cuidem também de pequenas causas cíveis e criminais, envolvendo, na maioria das vezes, (re)conciliação ou recomposição do dano com pequenas multas. Como municipalista de carteirinha, penso que o fortalecimento dos municípios passa pela adoção do modelo simétrico de repartição dos Poderes.

 

Muitos dirão que é retrocesso, um andar para trás. Voltar aos tempos do Império! Absurdo! Absurdo é ter um dos ramos mais bem pagos do serviço público, cuidando de brigas de vizinhos ou de pequenos delitos como vias de fato ou leves hematomas. Lembro meus tempos de promotor de justiça, quando perdia um tempo considerável com inquéritos e processos pela contravenção de dirigir sem habilitação. Trabalho da polícia, promotores e juízes que engordava estatísticas de produção, mas que resultava inútil. A imensa maioria dos processos prescrevia no Tribunal. (limajb48@gmail.com)

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