quarta-feira, 3 de abril de 2024

O curioso caso da comissão de reforma do Código Civil, FSP

 

João Ricardo Aguirre

Professor de direito da Universidade Mackenzie, tem pós-doutorado em direito civil pela USP

No conto "O Curioso Caso de Benjamin Button", de Scott Fitzgerald, o personagem principal nasce idoso e rejuvenesce com o tempo, em história imortalizada no cinema e que revela a peculiar trajetória do protagonista que vai remoçando ao longo dos anos.

Assim como Button, o atual Código Civil nasceu velho, com a comissão de elaboração instituída em 1969, seus trabalhos desenvolvendo-se até 1975 —ano do anteprojeto—, e, somente no ano de 2002, transformando-se na lei 10.406. Da instauração da comissão à vigência foram longos 34 anos, a evidenciar um antiquado ideário. Não havia internet nem smartphone, e a biotecnologia engatinhava, em três singelos exemplos que transformaram a vida da coletividade nas últimas duas décadas. A própria Constituição de 1988 foi promulgada 13 anos após a entrega do anteprojeto ao governo, ainda militar e eleito pelo voto indireto.

O novo Código Civil, que, entre as mudanças, permitiu que o homem adotasse o sobrenome da esposa. Após o casamento, o publicitário Marçal Rocha Rogel Righi, 31, e a médica Clarissa Schmidt Rogel Righi, 31, decidiram adotar sobrenomes um do outro - Karime Xavier/Folhapress - Folhapress

Seria injusto dizer que nada se atualizou nas quase três décadas de tramitação do projeto, mas parte significativa do que se alterou no texto original não reflete a realidade social do novo milênio, momento de sua entrada em vigor. O que dizer da aplicação dessas normas nos dias de hoje, quase seis décadas da instauração de sua comissão?

A reposta, obviamente, passa pela necessidade de atualização de suas normas, o que vem sendo feito pelo Legislativo, pontualmente, e, de forma mais aguda, pelos tribunais. Com esse objetivo, por iniciativa do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), instalou-se a Comissão de Juristas responsável pela atualização e revisão do Código Civil, tendo os ministros do STJ Luís Felipe Salomão e Marco Aurélio Bellizze como presidente e vice e, como relatores-gerais, os professores Rosa Nery e Flávio Tartuce, além de 34 membros nomeados para as subcomissões.

Como todo processo de seleção, a escolha deixa poucos honrados e muitos melindrados, causando a primeira onda de insatisfação com críticas aos eleitos, à comissão e aos trabalhos que nem sequer começaram. Não raro, alguém que se considere preterido transforma-se em crítico mordaz de currículos e trajetórias.

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O ministro do STJ Luís Felipe Salomão, presidente de comissão de juristas que debate Código Civil no Senado - Pedro Ladeira/Folhapress - Pedro Ladeira/Folhapress

No curioso caso da comissão de reforma do Código Civil, a simples divulgação das propostas apresentadas pelas subcomissões já se tornou motivo para nova torrente de críticas na segunda onda de descontentamento, só sobrepujada pela revelação das propostas sugeridas pela relatoria-geral, resultando em verdadeiro tsunami de juízos — alguns pontuais, outros bem fundamentados e, lamentavelmente, uma profusão de falsas notícias.

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A pauta dos costumes, obviamente, é o centro das fake news, com arautos alardeando o fim da família e a adoção de normas contrárias aos valores e princípios do ordenamento. Mas as aleivosias atingem todas as áreas, como acontece, por exemplo, com a proposta de reconhecimento de natureza especial aos animais como seres sencientes, em proposição consonante com recentes alterações de outros ordenamentos, como é o caso de França e Portugal.

Existem críticos, contudo, que fazem objeções fundamentadas, trazendo sugestões e, até, insurgindo-se contra a necessidade de atualização do código. Isso é o que se espera em nosso ordenamento: que todos exerçam seu direito à expressão e opinião e participem de forma ativa do processo democrático, dando sua efetiva contribuição para o aprimoramento da norma.

Importante lembrar que nem sequer foi apresentado o texto final da comissão, pois ainda haverá deliberação do colegiado sobre as diversas propostas apresentadas para depois ser remetido à Casa Legislativa, onde, certamente, haverá grandes debates e contendas.

Espera-se, entretanto, que não fiquemos outras décadas no aguardo dessa atualização, a fim de que, como em Benjamin Button, o tempo, ao invés de consumi-lo, o rejuvenesça para que possa atender às demandas e aos anseios de nossa sociedade atual.

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