Em meados do ano passado, a coluna criticava o excessivo fatiamento do noticiário na Folha, característica do jornalismo atual, que se esgueira por qualquer fresta em busca de audiência. A prática ganha corpo e sofisticação, mostrou o jornal na última semana.
A começar pelo aniversário do golpe de 1964, marcado por série de reportagens, uma em muitas que o jornal mantém neste momento, e pesquisa Datafolha. Vários títulos para o levantamento: 63% são contra anistia a responsáveis pelo 8/1; 65% acham que foi vandalismo; 37% aprovam Moraes; 55% dizem que Bolsonaro quis dar um golpe; 63%, que o 31 de Março deve ser desprezado; 71%, que democracia é a melhor forma de governo; 53% descartam nova ditadura; 59% acham que Lula fez bem ao vetar atos sobre os 60 anos do início da ditadura militar. Um dia e meio de manchetes e pushes no celular, que, ao fim do ciclo, já soavam redundantes.
Tal sensação era menor na versão impressa de domingo (31), em que a edição, capitaneada por um editorial de registro histórico, reunia e concatenava as informações. No site, fragmentação. Havia um diagnóstico a ser feito e debatido, mas é como se o jornal preferisse listar os resultados do exame de sangue, não o que significam para o paciente.
Algo mais orgânico ajudaria a leitura e a avaliação do momento do país, porém a imprensa, não apenas a Folha, parece não conseguir abdicar da ideia de noticiar em compartimentos. Se sua fatia não vier com a cereja, paciência.
Mas a semana era de terremotos, e 1964 virou história rapidamente. O grande fato na imprensa, com repercussão em diversos veículos e reflexos importantes nos mercados, foi a entrevista do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, aos repórteres Fábio Pupo e João Gabriel. "Silveira reconhece conflito com presidente da Petrobras e diz não abrir mão de autoridade; veja vídeo" foi o título que habitou o site do jornal durante boa parte da quarta-feira (3). Uma paulada em Jean Paul Prates, que derrubou as ações da Petrobras e suscitou temores de intervenção na empresa e na política de preços dos combustíveis, para ficar na primeira camada da altercação.
Silveira fala muito e não economizou assuntos na conversa com a Folha. Decretou que o Brasil vai explorar petróleo enquanto for pobre, ou seja, até não poder mais; que cogita rediscutir o "fracking", um método violento de obtenção de gás, muito criticado por ambientalistas; que vai propor alterações nos contratos de empresas de energia a partir do caso Enel em São Paulo. Tudo isso, é claro, porcionado, desta vez em estratégia acertada.
A coisa foi bem até a confecção do impresso. Aquele primeiro título, o mais forte, que ocuparia o jornalismo nacional pelos dias seguintes, com diversas citações à Folha, simplesmente sumiu. Não estava na Primeira Página nem na interna de Mercado. O conteúdo foi embutido em uma versão da entrevista, que abria com a discutível visão do ministro sobre transição energética.
A capa do jornal ignorou também um desenvolvimento da novela, um pedido de audiência que Prates fez a Lula, outra revelação da Folha a campear nas páginas da concorrência, publicada na coluna Mônica Bergamo. Como notícia se impõe, o equívoco foi superado nas duas edições seguintes, em que as manchetes do jornal se ocuparam do presidente e da crise fabricada.
A dúvida que fica é se a Folha acreditou que sua primeira fatia de informação, a mais importante, perderia força no dia seguinte ou se projetou seu impresso como uma espécie de prosseguimento da edição do site. Em qualquer hipótese, falhou ao não perceber ou respeitar a hierarquização dos eventos em todas suas plataformas.
Leitores do impresso certamente engordarão a crítica com outros episódios de omissão, como, por exemplo, a não publicação até hoje no papel de que R$ 82 milhões de Paulo Maluf bloqueados na Suíça foram repatriados em março.
Se o jornal não consegue deixar de retalhar seu conteúdo, que ao menos consiga dar luz ao que mais interessa. Ser corrigido pelos fatos acontece, mas não é bom sinal.
NO MEIO DA CONFUSÃO
Wilson Gomes faz diagnósticos precisos sobre o país. Sua última coluna pergunta por que o debate público parece cada vez mais caótico. Politizamos tudo e misturamos práticas políticas. "Há, sim, discussão política como habitualmente se faz, mas isso é quase nada diante da quantidade de temas, propósitos e atores que colidem entre si numa intensidade sem precedentes", escreve.
O ombudsman pega carona e indaga o quanto a imprensa e a mídia contribuem para tamanha confusão, o quanto estamos nos atendo ao debate público legítimo, se é que podemos nos ater apenas a ele, se é que nossa sobrevivência ainda permite tal opção. Fragmentar o noticiário aumenta o ruído, o que quase nunca informa.
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