Milton Hatoum, O Estado de S.Paulo
10 de abril de 2022 | 03h00
Às vezes, um amigo some do mapa. Não sei por onde anda um simpático francês que conheci em Manaus, em 1989. Gérard era engenheiro e trabalhava numa fábrica da Zona Franca; dois anos depois, mudou-se para Cingapura, e eu mudei apenas de bairro: saí do centro para as margens da cidade.
Naquele mundo sem celular e sem internet, perdi o contato com ele; lembro que adorava os pratos da Amazônia, tinha amigos brasileiros e estrangeiros, e casou-se com uma amazonense; adaptou-se ao ritmo lento das pessoas, e ria quando era chamado de “mano”.
Certa vez, me disse: “Você mal conhece uma pessoa e ela já te trata de ‘maninho’, petit frère. Não é incrível? Isso é inimaginável na Europa. Em Manaus, aprendi a arte da hospitalidade”.
Às vezes, a gente tende a idealizar o outro; outras vezes, e com mais frequência, o outro é hostilizado. Mas Gérard não era ingênuo. Sabia que as fábricas da Zona Franca tinham sido atraídas pelos incentivos fiscais, e que o salário em Manaus era inferior ao de São Paulo; sabia como moravam os operários, pois conhecia os bairros pobres da cidade. Mas lembrava que, na década de 1950, imigrantes da Argélia e de outros países da África moravam em favelas em plena Paris.
Aliás, ele não hesitava em falar das atrocidades de lá, como a matança durante a guerra de libertação da Argélia. Ainda me lembro de uma frase sua, Gérard, quando a gente tomava guaraná Baré, ali perto da Banca do Largo: “A história da Europa é também uma história de guerras”.
Não sei o que você diria do sufoco dos manauaras durante a pandemia. Sei que você se maravilhava com a visão do encontro das águas, e quando voltava de um passeio de barco, exclamava, emocionado: “Quelle merveille, mano!”.
Mas você não sabe que querem construir o novo porto de Manaus bem em frente daquela maravilha. É o nefasto Projeto das Lages, iniciativa de uma empresa privada, referendada pelo governo do Estado. O terreno “escolhido” para o novo porto vai prejudicar o turismo e causar danos irreversíveis à natureza. O Iphan decretou o tombamento do encontro das águas, mas, antes de ser homologado, foi contestado por um ex-governador. O caso está no STF há anos.
Se você ler esta crônica, envie uma mensagem à ministra Cármen Lúcia. Escreva uma carta de amor a Manaus e à natureza amazônica. Ou, quem sabe, uma carta desesperada. Mas se essas palavras não chegarem a Cingapura, escreva você, caro leitor brasileiro. Só nos restam as palavras, antes da destruição total.
*Milton Hatoum é escritor e arquiteto, autor de Dois Irmãos e Cinzas do Norte
Nenhum comentário:
Postar um comentário