É com imenso prazer que o blog recebe mais um post de um dos nossos visitantes recorrentes, o professor Walter Carnielli, do Centro de Lógica da Unicamp. Também assina o texto o advogado e filósofo Pedro Carrasqueira, doutorando sob supervisão do professor Walter.
Didaticamente, tomando como base as delações premiadas da Lava Jato, os dois explicam como funciona o chamado dilema do prisioneiro, um dos fundamentos da teoria dos jogos, com aplicações nas mais diferentes áreas, da economia à psicologia, passando pela biologia evolucionista. Boa leitura!
O uso de delações premiadas na operação Lava Jato segundo a teoria dos jogos
Walter Carnielli e Pedro Carrasqueira
A delação e a colaboração premiadas, ressalvadas pequenas diferenças técnicas entre essas noções, consistem na possibilidade de o investigado em delitos envolvendo quadrilha ou organização criminosa ajudar de algum modo na produção de provas, em troca de benefícios como a atenuação da pena ou mesmo o perdão judicial pelos crimes por ele cometidos.
Regulamentado mais amplamente pela lei 12.850/2013 — a lei do crime organizado —, o instituto da colaboração premiada foi muito criticado no Brasil por seu uso irrestrito na operação Lava Jato, sobretudo pelos setores políticos da sociedade. São também críticos dele, no entanto, alguns juristas que entendem a colaboração como uma forma imoral de persecução criminal ("traição premiada", na expressão de Tourinho Filho), e sua presença no ordenamento jurídico como confissão da incompetência do Estado na luta contra o crime.
Da perspectiva da teoria dos jogos — a teoria matemática da tomada de decisão em situações de conflito de interesses —, contudo, a delação e a colaboração premiadas justificam-se por serem os instrumentos legais para implementar o famoso jogo do dilema do prisioneiro.
O dilema do prisioneiro é um paradoxo da tomada de decisão que exemplifica um conflito no qual indivíduos, se fizerem escolhas perfeitamente racionais, frustrarão seus próprios interesses e chegarão a uma resolução que não é ótima (ou seja, está longe de ser ideal) para qualquer um dos envolvidos. Esse paradoxo foi inicialmente proposto pelos matemáticos M. Flood e M. Dresher em 1950, e sua interpretação moderna elaborada pelo matemático canadense A. W. Tucker.
É de se ressalvar, porém, que já Platão, em sua obra "República" vale-se do que hoje podemos reconhecer como sendo essencialmente a versão desse jogo com um número de jogadores finito qualquer maior ou igual a dois para o argumento de que, em sociedade, é melhor ser injusto que justo.
Na sua forma com apenas dois jogadores, o dilema do prisioneiro consiste na seguinte situação. Dois investigados são suspeitos de ter cometido em conluio um crime grave. As autoridades policiais, todavia, só têm provas suficientes para incriminá-los por um delito menor. É então oferecida a cada um deles, separadamente, a oportunidade de delatar o outro em troca do perdão pelo crime de menor pena.
Se um deles decidir trair o comparsa, mas o outro não, aquele que trair sairá livre, e o outro será processado (e quase certamente condenado) por ambos os crimes. Se decidirem se delatar um ao outro, ambos enfrentarão as acusações pelo delito mais grave. Se, porém, escolherem não colaborar com as autoridades, passarão relativamente pouco tempo na prisão.
O verdadeiro dilema
Apesar do nome pelo qual é conhecido, para os próprios prisioneiros o dilema não é dilema algum, pois, assumindo que cada um deles prefere passar o mínimo de tempo possível na prisão, não há dúvida sobre o que é o melhor fazer: delatar o comparsa é sempre o que lhe garantirá a menor pena possível, tanto no caso de o outro também o delatar, quanto no de não delatar.
O dilema de fato reside em que, se ambos agirem assim racionalmente, então serão com certeza condenados pelo crime mais grave e sofrerão punição mais severa, enquanto, se nenhum deles delatasse, o mais provável é que ficassem pouco tempo encarcerados. Porque o investigado prefere passar o menor tempo possível na prisão, não importa que ação o comparsa escolha, é melhor delatar. Em teoria dos jogos, diz-se que delatar é uma estratégia dominante.
Um importante e muitas vezes mal compreendido aspecto do dilema do prisioneiro é que é irrelevante para a escolha dos acusados que haja entre eles um acordo de não se delatarem uns aos outros. Isto porque eles fazem a escolha de delatar ou não sem saber se os demais de fato cumprirão o prometido, e porque todo acusado encontra na possibilidade de não ser preso, ou de ao menos ter sua pena atenuada, um incentivo para não o cumprir.
Por isso é que, quando bem aplicados, os institutos da delação e da colaboração premiada são eficientes instrumentos de persecução criminal: porque, ao criar situações tais quais a do dilema do prisioneiro, acusados são por esses meios levados a colaborar para o interesse público sem, no entanto, necessariamente ter qualquer intenção disso, mas antes agindo em interesse próprio de forma calculada, por receio de serem eles mesmos traídos por seus comparsas.
Para que a situação do investigado por crime envolvendo organização criminosa seja de fato como a de um dos prisioneiros no dilema, todavia, duas coisas são fundamentais. A primeira é que seja crível a ameaça de condenação por ao menos um crime; a segunda, que a duração do encarceramento esperado, resultante das possíveis condenações, seja longa o suficiente para fazer parecer insignificantes quaisquer benefícios que o investigado creia porventura obter ao não delatar.
Da perspectiva da teoria dos jogos, portanto, a insuficiência das investigações independentes e prévias a quaisquer delações, bem como a morosidade do Judiciário brasileiro e as breves penas que, no pior dos casos, aguardam os condenados por crimes de colarinho branco no Brasil, explicam muito da pouca eficácia observada por alguns no uso desses institutos jurídicos na operação Lava Jato.
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