No dia em que a guerra começou, um dos pilotos mais condecorados da Ucrânia saiu para a sacada de casa para assistir à batalha travada num aeroporto próximo. De onde estava, Oleksandr Halunenko podia ver as explosões e sentir os abalos.
Os russos invadiam seu país, e ele estava preocupado com algo que lhe era muito caro. Mria. O avião.
Num hangar a alguns quilômetros de distância estava o maior avião do mundo, tão especial que só um deles foi construído. Seu nome é Mria (pronuncia-se Mería), que em ucraniano significa "o sonho". Com seis motores a jato, estabilizadores verticais duplos e uma envergadura quase da largura de um campo de futebol, ele transportava cargas gigantescas pelo mundo, atraindo multidões por onde pousava.
Entusiastas da aviação dizem que era um avião-celebridade, amado por muitos. E era um símbolo muito querido da Ucrânia.
Halunenko foi o primeiro piloto do avião e o amava como a um filho. Ele converteu sua casa num altar: fotos, pinturas e maquetes do avião adornam todos os cômodos. Mas naquela manhã ele teve um pressentimento terrível. "Vi muitas bombas, muita fumaça. Entendi que Mria não poderia sobreviver."
Em dois meses a Guerra da Ucrânia já destruiu muito: milhares de vidas, famílias inteiras, a felicidade e a segurança de incontáveis pessoas. E também objetos materiais que significam muito. Casas queimadas até o chão; supermercados que alimentavam comunidades atingidos por bombas; pertences chamuscados até ficarem irreconhecíveis.
No caso do Mria, atingido diretamente durante aquela batalha no aeroporto, a destruição desencadeou uma enxurrada de emoção que só pode ser descrita como tristeza profunda. Com corações partidos, fãs de aviação estão se tatuando com a imagem dele. Mas talvez não haja ninguém tão arrasado quanto Halunenko, membro de uma geração que não compartilha emoções facilmente.
"Se eu não fosse homem, choraria", diz.
Halunenko tem 76 anos e é filho da Guerra Fria. Seu pai era capitão do Exército russo, e sua mãe, uma camponesa ucraniana. Ambos morreram quando ele era adolescente.
No colégio interno no sudeste da Ucrânia, ele fez aulas de pilotagem e descobriu que tinha um dom. Tornou-se piloto de caças MiG-21 e depois piloto de testes soviético de elite. Foi comandante de aeronaves de todos os tipos, de caças-bombardeiros novos e sofisticados até aviões de carga potentes —mas nada tão grandioso quanto o que acabaria por comandar.
Na década de 1980, a liderança soviética estava ansiosa por voltar a participar da corrida espacial. Engenheiros projetaram uma nave reutilizável chamada Buran que parecia o ônibus espacial americano. Mas seus componentes estavam espalhados: o ônibus espacial foi construído em Moscou, os foguetes a centenas de quilômetros e a plataforma de lançamento ficava no Cazaquistão. A única maneira viável de levar tudo para o mesmo local era usar um avião —um realmente grande.
Assim nasceu o Mria, na fábrica da Antonov, em Kiev. O avião fez seu primeiro voo em 1988, com Halunenko nos controles. Com 84 metros de comprimento e seis andares de altura, o AN-225 era maior que qualquer outro. Ostentava 32 rodas de pouso e tinha 88 metros de envergadura. Seu peso máximo ao decolar chegou a espantosos 635 mil quilos, muito mais que um 747 totalmente carregado. O cone do nariz era virado para cima, para permitir que objetos de grande porte, como lâminas de turbina ou até mesmo jatos menores, fossem empurrados para dentro do ventre cavernoso.
Há maneiras diferentes de medir tamanho, mas especialistas disseram que o Mria era mais comprido e pesado que outras aeronaves gigantes. "O AN-225 foi sem dúvida o maior avião já construído, de qualquer tipo, para qualquer uso", diz o historiador da aviação Shea Oakley.
Ele não era fácil de pilotar, especialmente quando transportava um ônibus espacial: descrevia arcos largos ao virar —para demonstrar, Halunenko estendeu os braços lateralmente como asas e balançou-se de um lado a outro. Em terra, era difícil estacioná-lo num hangar.
Quando a União Soviética caiu, em 1991, o ônibus espacial caiu junto, e o Mria passou a ser usado como um gigantesco avião de carga: geradores, pedaços de vidro, quantidades estupendas de materiais médicos e até tanques de batalha.
E os ucranianos não pararam de trabalhar sobre ele. Em 2001, Halunenko quebrou recordes, incluindo o de carga mais pesada (253,8 toneladas) já carregada num avião. O Mria também é dono do recorde de transporte do objeto mais comprido já levado num avião (uma lâmina de turbina de 42 metros) e por sediar uma exposição de arte na maior altitude.
Halunenko recebeu a aclamada medalha de Herói da Ucrânia. Em 2004, aposentou-se como piloto, mas o Mria continuou em ação: nos últimos dois anos fez centenas de voos, carregando suprimentos médicos para o combate à Covid-19. Numa viagem à Polônia, 80 mil pessoas assistiram ao pouso transmitido numa live. Repintado no amarelo e azul da bandeira, era o embaixador alado da Ucrânia.
Sua derradeira missão foi em 2 de fevereiro, segundo Dmitro Antonov, um de seus últimos pilotos: transportou kits de testes de Covid da China para a Europa e voltou para a base em Hostomel. "Ele estava em ótima forma operacional", diz. "Prevíamos que continuasse em atividade por mais 15 a 25 anos."
Com a guerra se aproximando, os serviços de inteligência americanos avisaram a Ucrânia que os russos pretendiam tomar o aeroporto de Hostomel e sua pista de pouso extensa. Os donos do Mria discutiram a possibilidade de transferi-lo para um local mais seguro, conta Antonov, mas isso não chegou a ser feito. Funcionários da empresa se negaram a comentar a decisão.
Às 6h30 de 24 de fevereiro, mísseis russos atingiram uma base da guarda nacional perto do terminal. Horas mais tarde, helicópteros bombardearam o aeroporto, com mísseis que atingiram os hangares onde o Mria e outros aviões estavam guardados, segundo os ucranianos. "Não sabíamos que ele ainda estava ali", diz o sargento Stanislav Petriakov. "Pensávamos que tivesse sido transferido."
Foi travada uma batalha feroz, mas a munição dos ucranianos acabou logo, e eles se retiraram para uma floresta. Não está claro como o Mria foi destruído.
Forças de Kiev dizem ter bombardeado a pista intencionalmente para impedir os russos de usá-la, mas afirmam que não foram seus projéteis a atingir o avião, cujo hangar fica a 700 metros da pista. Quando questionado sobre quem pensa que atingiu o avião, Antonov responde: "Ninguém sabe".
Nos 30 dias seguintes, enquanto os russos ocupavam e semeavam o terror em Butcha, onde Halunenko vive há mais de 20 anos, o velho piloto resistiu com firmeza, mas não conseguia parar de pensar no Mria. "Ele é como meu filho", diz. "Eu o ensinei a voar."
No final de março, quando os russos finalmente partiram, Halunenko manteve distância do aeroporto. Até a noite do último dia 17. Ele passou por caminhões incendiados e atravessou um campo de batalha de detritos para chegar até o avião, caminhando sobre pedaços de vidro e metal.
Aproximando-se devagar, viu uma fuselagem destroçada, com um rombo enorme no meio, o cone do nariz cortado ao meio por estilhaços, uma asa rasgada e seu assento de comandante perdido no meio de um emaranhado de metal enegrecido e cinzas. Halunenko ficou parado, sem expressão.
Sua esposa, Olha, que o acompanhara para dar apoio, sussurrou: "Oleksandr é piloto. Nesse momento ele está apenas processando as informações. Mais tarde as emoções vão lhe bater em cheio".
Halunenko andou em volta, pôs a mão sobre um motor queimado e baixou a cabeça. "Estávamos torcendo para que desse para consertá-lo. Mas agora entendemos que estamos dizendo adeus."
Mas é possível que nem tudo esteja perdido. Ciente do poder do simbolismo do Mria, o governo ucraniano prometeu reconstruir o avião com as reparações de guerra que espera arrancar da Rússia.
E há algo que muitos desconhecem, uma segunda fuselagem de Mria semiacabada. Iuri Husiev, executivo-chefe da Ubroboronprom, estatal que administra a Antonov, disse que o plano é usá-la, com as partes do velho que puderem ser resgatadas, para "construir um novo sonho".
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