DEMI GETSCHKO
Por dentro da rede
Mais canela, menos pimenta
Não é necessário nem razoável que todos tenham opinião sobre tudo
04/02/2020 | 05h00
Por Demi Getschko - O Estado de S. Paulo
Cena do filme Politiki Kouzina, traduzido no Brasil como O Tempero da Vida
Há um interessante filme greco-turco de 2003 que em português ganhou o título de O Tempero da Vida, com bela trilha sonora e uma delicada análise de relacionamentos e emoções. O simples fato de ser uma produção greco-turca, conhecendo-se a tensão geopolítica da região, já mostra o clima humano e de otimismo.
A tradução literal do título grego daria algo como “a cozinha política”, mas implicaria num grave erro de interpretação: no caso, “política” remete à raiz “pólis”, cidade. Parte importante do filme passa-se em Istambul, a antiga “Constantinópolis”, que já foi o umbigo do mundo há mil anos. Os gregos se referiam a essa cidade simplesmente como “pólis”, dado que ela era A Cidade, sem mais. Assim, o título em grego refere-se à culinária de Constantinopla.
Há também um jogo de palavras em grego que mantém-se em português: o avô do protagonista explica ao então menino como se deve temperar a vida, e o faz com uma analogia à astronomia: afinal gastronomia tem apenas um “g” a mais... E trata do sal, da pimenta, da canela, das especiarias, associando seus efeitos aos corpos celestes e recomendando ao netinho atentar aos resultados que os temperos produzem em nossa vida e em nossos relacionamentos. Pena que a arte do tempero e virtude da temperança estejam entrando em desuso.
A polarização, que vemos crescente, é sinal dos nossos tempos. A aglutinação em torno de dogmas é rápida e nítida, por ser cada vez mais fácil arrebanhar partidários para qualquer ideia, mesmo as muito mal cozidas. Quando especialistas discutem um tema sabem que há opiniões divergentes e, mesmo quando tudo parece consolidado, nada impede que daqui a alguns anos a teoria suporte venha a cair. Afinal, tudo que nos parece “natural” hoje já foi “estranho” algum dia e poderá vir a ser abandonado num futuro. Muitas vezes uma ideia abandonada no seu nascedouro, depois de alguns séculos volta e se impõe.
O heliocentrismo, por exemplo, inicialmente proposto por Aristarco de Samos 200 antes de Cristo, não conseguiu suplantar o geocentrismo de Aristóteles, mas voltou, mais de mil e quinhentos anos depois, com Galileu, Copérnico e outros. Ter arrogância na certeza é algo que a verdadeira ciência desconhece. Newton, fundamental para a física e para se prever a ação da gravidade nos corpos, foi humilde ponto de dizer que não forjaria uma hipótese sobre a natureza daquela força que ele tão bem equacionou: “hypotheses non fingo”. Talvez seja um sábio conselho a seguir. Há os fatos, há as impressões que temos de fatos, mas sua explicação não deve ser proposta levianamente, nem acolhida apenas por representar reforço a posições momentâneas de interesse.
A pressa em mostrar que temos opinião sobre tudo apenas faz engrossar as fileiras dos que, com algum objetivo, apresentarão explicações ardilosas para o ocorrido. É a origem das “teorias da conspiração” que encontram terreno cada vez mais fértil em nosso ambiente virtual. Usar de qualquer oportunidade ou fato para garimpar neles algo subjacente que possa ser usado a favor de uma posição é polarizar o discurso e abandonar a argumentação racional.
Afinal, não é nem necessário, nem razoável, que todos tenham opinião sobre tudo. Marco Aurélio, imperador e filósofo estoico, recomendava “sempre temos a opção de não formar juízo sobre algo, e não sofrer pelo que não se pode controlar. São coisas que não pedem nosso julgamento. Deixemo-las em paz”.
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