PEDRO DORIA
Caso vá adiante, a libra do Facebook pode mudar radicalmente a estrutura monetária global
21/06/2019 | 05h00
Por Pedro Doria - O Estado de S. Paulo
Libra, moeda do Facebook, deve circular em 2020
Enquanto o Brasil se perde no redemoinho de uma polarização que só piora, com intransigências mil e voltado para seu próprio umbigo, o Facebook fez, esta semana, o mais ousado anúncio jamais realizado por uma companhia do Vale do Silício. Pretende lançar, já no ano que vem, sua própria moeda. Vai se chamar libra — sim, mesmo em inglês o nome é este, libra. A moeda inglesa, em inglês, se chama pound.
Tanto na Europa quanto nos EUA, políticos e gente na direção de bancos centrais de presto se pôs em pé. Caso o projeto vá adiante, pode desbancar o dólar do mercado internacional, substituir a moeda corrente de alguns países, e mudar radicalmente a estrutura monetária do mundo.
O fato de que a iniciativa parte da empresa de tecnologia mais acusada de desleixo com privacidade não colabora.
Privacidade, o Facebook garante, não será problema. Afinal, libra será gerenciada por uma organização sem fins lucrativos com sede em Genebra e da qual a gigante do Vale não é a única acionista. Têm assento no board, também, Visa, MasterCard e PayPal; Uber e Lyft, sua principal concorrente americana; Spotify, eBay e uma conhecida dos brasileiros — Mercado Pago. Entre outras.
O problema da promessa é que o Facebook já a rompeu antes. À União Europeia, prometeu que jamais misturaria os dados de WhatsApp com os de sua própria rede. Era uma das condições para que lhe fosse permitido fazer a aquisição da empresa de mensagens. No início deste ano, anunciou que Facebook, WhatsApp e Instagram serão integrados numa só plataforma.
Nos EUA, a legislação proíbe que bancos tenham sociedade em empreendimentos comerciais. A separação é exigida porque, afinal, varejistas precisam ter conta no banco e, por isso, bancos sabem tudo sobre suas contas. Não é o tipo de informação que se deseja ver nas mãos da concorrência. Os negócios devem ser separados.
Libra rompe este limite.
O público alvo do Facebook são as mais de um bilhão de pessoas em sua rede que não têm conta bancária. São pobres. Muitos destes, que vivem no exterior, mandam dinheiro para suas famílias em dólar ou euros. Para países pequenos de África e Américas, faz diferença no PIB esta remessa constante. Libra será tão simples de usar, dentro mesmo dos apps, que possivelmente o comércio local vai adotá-la. E não é difícil de imaginar países com moedas fracas, aos poucos, trocando seu dinheiro por este mais forte.
As criptomoedas populares como o bitcoin flutuam loucamente e exigem um certo conforto técnico. Cada dólar ou euro convertido em libra será armazenado num fundo que vai ancorar a criptomoeda. O dinheiro deve ser investido, no primeiro momento, em títulos da dívida de países — e pode se tornar um fundo pesado, capaz de, por sua entrada ou saída em países ou empresas, decidir o destino econômico de muita gente.
Daí para imaginar a possibilidade de esta moeda virtual começar a ser usada no mercado internacional é um pulo. Um navio de soja aqui, uns barris de petróleo ali, a cotação da libra começa a ser apresentada ao lado de outras moedas. Uma moeda independente das ordens de qualquer governo, livre dum banco central. Uma moeda privada tocada por uma companhia cujos produtos são utilizados, diariamente, por 2,5 bilhão de pessoas. Transferências com taxas baixas ou inexistentes, imediatas, sem intermediários, para qualquer lugar do mundo.
Se libra começa mesmo a circular no ano que vem, esta mudança pode ocorrer toda muito rápido. Mas é inevitável que os donos do dólar, do euro e até da libra original tenham ligado o alerta vermelho.
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