"Leis" Autorizativas
1. Introdução
Em 17 de março de 1982 – ainda sob a Constituição (Emenda Constitucional nº 1/69) anterior à atual – o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou representação (nº 993-9) por inconstitucionalidade de uma lei estadual (Lei nº 174, de 8/12/77, do Estado do Rio de Janeiro) que autorizava o Chefe do Poder Executivo a praticar ato que já era de sua competência constitucional privativa. Nesse julgamento, decidiu textualmente: O só fato de ser autorizativa a lei não modifica o juízo de sua invalidade por falta de legítima iniciativa. Não obstante a clareza do acórdão (Diário da Justiça de 8/10/82, p. 10187, Ementário nº 1.270-1, RTJ 104/46), persistiu por toda a Federação brasileira, nos níveis estadual e municipal, a prática de "leis" autorizativas – e com tal intensidade, que sufocou aquela irrepreensível decisão do guardião supremo do ordenamento constitucional, a ponto de ser esquecida por Tribunais inferiores, que não raro têm julgado em contrário, dando por válida essa inconstitucionalidade patente. Daí, a conveniência de revisitar o tema.
2. A função legislativa liberal clássica
A função legislativa típica do Estado Liberal de Direito, não intervencionista, instaurado pelas revoluções liberais do fim do século 18, é estritamente vinculada à clássica separação de poderes, cuja matriz se acha na teoria de Montesquieu, no capítulo VI do livro XI em "Do espírito das leis". Esse modelo de separação, que se tornou o clássico, correspondeu a um sistema de equilíbrio inercial, decorrente da divisão do poder estatal em três partes, ditas poderes, separadas rigorosamente em três funções distintas – a legislativa, a executiva e a judicial – mas dispostas de forma tal, que um poder controle os outros e, todos se controlando entre si, por um mecanismo de equilíbrio mútuo, dotado de freios e contrapesos recíprocos, no fim resulte o poder controlado pelo próprio poder. Dessa divisão funcional, o objetivo principal era político: não tanto aprimorar o funcionamento do poder, mas limitar a sua expansão, para garantir o valor maior a defender ante o absolutismo do rei: a liberdade do indivíduo. Atende a esse fim o rigor com que Montesquieu fez a separação dos poderes, inspirado no que se passara na Inglaterra no curso da Revolução Gloriosa, iniciada em dezembro de 1688, com a deposição de Jaime II, o último dos monarcas absolutos no reino inglês.
3. O advento do intervencionismo
As revoluções operadas na superestrutura político-jurídica pelo liberalismo se conjugaram com as revoluções industriais na infra-estrutura econômico-social. Dessa conjuntura resultou o capitalismo selvagem, que gerou a Questão Social, termo com que a encíclica "Rerum Novarum" designa a convulsão social desencadeada nas cidades industriais do Ocidente, a partir de meados do século 19. Para a Questão Social, duas linhas de solução se desenvolveram: a radical e a moderada. De um lado, socialistas, comunistas, anarquistas, em grau de radicalismo crescente. Dessa linha radical, o toque de alvorada foi o "Manifesto Comunista" de Marx e Engels em 1848. De outro lado, a linha moderada. Aqui se perfilaram doutrinas reformadoras do liberalismo, a criticar a exploração dos operários, entre as quais pontificou a Doutrina Social da Igreja, antecipada nos sermões do clero, mas inaugurada oficialmente pelo Vaticano com a "Rerum Novarum", editada pelo Papa Leão XIII em 15 de maio de 1891. Todos os moderados, ainda que por trilhas variantes, chegavam à mesma conclusão, oposta aos radicais: a causa da Questão Social não era a propriedade privada, mas o descontrole dos instrumentos de trabalho e meios de produção. Por isso, a solução não era coletivizar a propriedade, mas controlar a ordem econômica, para assegurar – muito além de uma liberdade individual meramente formal – a igualdade social efetiva, material. Como Rui equacionou na Oração aos Moços: a verdadeira igualdade não consiste em tratar igualmente os desiguais, mas em tratar desigualmente os desiguais na proporção em que se desigualam. Em ambas as linhas doutrinárias, o Estado foi chamado a intervir na ordem econômica e social, ou para substituir a ordem capitalista pela socialista, ou para moderar o capitalismo. Repele-se o ideal do laissez faire, laissez passer, que le monde va de lui même, com o qual o liberalismo repelira o absolutismo. No Brasil, a primeira constituição a cuidar da intervenção do Estado na ordem econômica e social foi a de 1934.
4. A função legislativa intervencionista social
Essa evolução implicou nova funcionalidade para a legislação. Ao lado dos códigos liberais clássicos (civil, comercial, criminal), em que os indivíduos são tratados de igual forma, sem ponderar diferenças econômico-sociais, surge a legislação social. Concede-se especial proteção jurídica às partes sociais mais fracas nas suas relações com as partes mais fortes, buscando equilíbrio, justiça, igualdade sociais. É a função legislativa social. Por ela se abriram legalmente as portas para o intervencionismo social, que não raro degenera para intervencionismo estatal despido de função social que o justifique. Ao passar, no conteúdo, de liberal para social, de absenteísta para intervencionista, o Estado se manteve na forma de direito. De estado liberal de direito, evoluiu para estado social de direito. Pelo que, a intervenção só pode ser feita com fundamento em lei: na forma de direito. O Poder que intervém é o Executivo. Doutro lado, o Legislativo, por suas proporções colegiadas e procedimentos complexos, não revelou agilidade para prover a cobertura legal de que o Executivo necessitava para intervir. A solução foi assumir este a função de legislar. Ou revolucionariamente, como no Brasil em 1930, ou constitucionalmente, como no Brasil posterior, a função legislativa é transferida em certas condições para o Chefe do Executivo, o qual veio a legislar, ou por decretos revolucionários, ou por leis delegadas, ou decretos-lei, ou medidas provisórias. Essa transferência é justificável e inevitável no estado social de direito, para a consecução dos fins sociais por ele perseguidos, mormente em casos de urgência e relevância sociais, ou de grande complexidade técnico-administrativa. Pelo que, deve ser comedida por delegação legislativa capaz de evitar abusos. Mas sobrevieram excessos e desvios. Graves, em países repletos de problemas econômicos e sociais, que aliam instabilidade política com necessidade legislativa, como o Brasil. Aqui – necessidade gerando facilidade – o cume foi atingido com o desenfreio das medidas provisórias, cuja regulamentação moderadora tem sido obstruída por sucessivos Presidentes da República. Porém, na função legislativa, não só o Executivo desgarra e abusa da ordem constitucional. Também, o próprio Legislativo. Uma das distorções, que se alastrou pelas casas legislativas brasileiras, é a "lei" de caráter meramente autorizativo.
5. O que é "lei" autorizativa
Insistente na prática legislativa brasileira, a "lei" autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de "leis" passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu "lei" autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente. Autorizativa é a "lei" que – por não poder determinar – limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da "lei" começa por uma expressão que se tornou padrão: "Fica o Poder Executivo autorizado a...". O objeto da autorização – por já ser de competência constitucional do Executivo – não poderia ser "determinado", mas é apenas "autorizado" pelo Legislativo. Tais "leis", óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente.
6. Origem da "lei" autorizativa
Desde a Constituição de 1934, o constitucionalismo brasileiro nega aos parlamentares a faculdade de propor leis que, recaindo em matérias privativas do Poder Executivo, são de iniciativa reservada ao Presidente da República. Existe relação entre essa reserva de iniciativa e o intervencionismo estatal. Com efeito, o constitucionalismo liberal clássico jamais concebeu a hipótese – então, simplesmente absurda – de subtrair ao legislador a iniciativa da lei. Ao contrário. Porque faz parte do processo legislativo, do qual é o princípio, a iniciativa era reservada exclusivamente aos membros do Legislativo e negada aos demais Poderes. Assim foi a proposta de Montesquieu. Assim é a Constituição norte-americana, fiel a essa proposta, há mais de duzentos anos. O Presidente dos Estados Unidos, carente de iniciativa, propõe leis por meio de deputados ou senadores, em geral os líderes do governo. No entanto, as constituições intervencionistas mudaram esse quadro original. Abriram as portas para outorgar ao Executivo a iniciativa de leis de seu interesse, entre elas as leis intervencionistas. Retirou-se dos legisladores nesses casos a exclusividade e, na seqüência, a própria faculdade de propor leis. Hoje a Constituição reserva ao Presidente da República a iniciativa privativa nas matérias previstas no § 1o do art. 61, para as quais o art. 63 veda aumentar despesa, reduzindo enormemente a competência parlamentar. Essa redução é, patentemente, abusiva. Reagindo a tal capitis diminutio, os parlamentares buscam meios de contorná-la. Contra o abuso, outro abuso: um desses meios é a "lei" autorizativa.
7. Inconstitucionalidade da "lei" autorizativa
Como ocorre na federação para os entes federativos, igualmente na separação de poderes a competência básica de cada Poder é fixada pela ordem constitucional, integrada pelas constituições federal e estaduais e leis orgânicas municipais. Aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, compete o que a ordem constitucional lhes determina ou autoriza. Fixar competência dos Poderes constituídos, determinando-os ou autorizando-os, cabe ao Poder Constituinte no texto da constituição por ele elaborada. A ordem constitucional é que fixa as competências legislativa, executiva e judiciária. Pelo que, se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei é inconstitucional. Não é só inócua ou rebarbativa. É inconstitucional, porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir, ferindo a Constituição por ele estatuída. O fato de ser mera autorização não elide o efeito de dispor, ainda que de forma não determinativa, sobre matéria de iniciativa alheia aos parlamentares. Vale dizer, a natureza teleológica da lei – o fim: seja determinar, seja autorizar – não inibe o vício de iniciativa. A inocuidade da lei não lhe retira a inconstitucionalidade. A iniciativa da lei, mesmo sendo só para autorizar, invade competência constitucional privativa.
8. Os disparates
De mais a mais, a inconstitucionalidade aqui se traduz em verdadeiros disparates. Veja-se. O poder de autorizar implica o de não autorizar. Ambos são frente e verso da mesma competência. Exemplo: se ex vi do inc. I do art. 51 da Constituição a Câmara dos Deputados pode autorizar o impeachment, óbvio que também pode não autorizar. Do mesmo modo, autorizar convive necessariamente com não-autorizar no art. 49, II, III, IV in fine, XV, XVI, no art. 52, V, e noutros dispositivos da Constituição Federal. Em suma, toda competência de autorizar implica a de não autorizar. Assim, se a "lei" pudesse "autorizar", também poderia "não autorizar" o Executivo a agir dentro de sua competência constitucional, o que seria disparate: uma absurda inconstitucionalidade. O disparate cresce quando se pondera que, para o agente público, a autorização constitui um poder-dever, cujo descumprimento o sujeita a penas. Autorizado a tomar providência de interesse público, se não a toma, o agente incorre em falta administrativa e, conforme o caso, em crime de responsabilidade, passível de acarretar perda do cargo. No caso, o cargo de Chefe do Poder Executivo, no qual participou, pela sanção ou veto, da elaboração da "lei" em que se fundou a sua própria perda. Isso abre válvulas para que, ao fim de uma gestão, surjam "leis" autorizativas para prejudicar ou "preparar" a seguinte. Tais dislates, com visíveis invasões de competência, ferem frontalmente a separação de poderes estatuída pela Constituição. Note-se: a afronta à separação de poderes só não existiria se a própria Constituição – como faz nos incisos II e III do art. 49 – expressamente arrolasse na competência de um Poder, o Legislativo, o poder de autorizar o outro Poder, o Executivo, a praticar tais ou quais atos determinados. Mas aí a autorização – por ser competência exclusiva do Legislativo – seria editada por decreto legislativo. Nunca, por lei, pois esta passa pela sanção ou veto do Chefe do Executivo e não faz o menor sentido este consentir ou vetar uma autorização a si mesmo, agindo em causa própria. Realmente disparatadas são tais "leis". Não é para isso que existem o Legislativo e o Executivo como Poderes do Estado, nem muito menos a lei como ato complexo cuja produção envolve a manifestação de vontade desses dois Poderes. Cumpre ao Judiciário, se requerida a sua manifestação, proscrever essa inconstitucionalidade flagrante, a dita "lei autorizativa".
9. Resumo da inconstitucionalidade
Em suma, as "leis" autorizativas são inconstitucionais:
10. Proposta de solução
Abuso inserido na Constituição não torna aceitável abuso praticado contra a Constituição. Na verdade, sob o véu da simples autorização legislativa, disfarça-se a ingerência em iniciativas constitucionalmente privativas do Executivo. O véu não é espesso o bastante para ocultar a inconstitucionalidade. É transparente que as "leis" autorizativas são viciosas. Não constituem solução do problema. Uma solução seria alterar a Constituição para reduzir ao mínimo a iniciativa legislativa privativa do Executivo. Mas não é a melhor solução, porque persistiria a mutilação do Legislativo: a iniciativa das leis é parte essencial do processo legislativo e nada justifica afastar dela os próprios legisladores. A real solução – que evita essa mutilação – é extinguir tal iniciativa privativa e, em contrapeso, especificamente nas matérias em que a decisão do Executivo tenha realmente primordial importância, elevar o quórum de rejeição do veto para 4/5 (quatro quintos), 80% (oitenta por cento) dos membros da casa parlamentar. Essa maioria altamente qualificada exigiria do Legislativo, para derrubar o veto, uma prudência compacta arrimando uma convicção inabalável de que a lei é necessária. Frise-se: envolvendo a situação e a oposição. Exigiria a adesão de expressivo número de parlamentares alinhados com o Governo. Teria, assim, o condão de preservar a harmonia entre o Executivo e o Legislativo. Manteria cada Poder em sua típica função própria. Não desviaria a competência natural de um para outro em detrimento da representação popular e da democracia representativa.
11. Conclusão
Quem legisla são os legisladores. O povo os elegeu para essa função específica. Pode-se exigir deles a máxima prudência e forçá-la por um alto quórum de decisão. Mas não se lhes pode amputar a iniciativa de legislar sem aleijar o processo legislativo e a democracia representativa, de que são os atores principais, por determinação das próprias bases sociais. Pensar o contrário é pensar autoritariamente, como vem pensando o constitucionalismo brasileiro, neste e noutros pontos, desde as constituições feitas sob a égide de Vargas. Se o autoritarismo vindo com Getúlio foi historicamente necessário, ou não, para fazer reformas sociais inadiáveis, que a Primeira República não faria, por estar dominada pelas oligarquias rurais e urbanas, isso é outra questão. Aqui, a questão é a edificação do Estado Democrático de Direito, em boa hora posto como princípio constitucional (art. 1o) pela Constituição de 88. Efetivar esse princípio implica retirar da própria Constituição heranças do autoritarismo recente e do tradicional. Péssima herança é a possibilidade de o Executivo legislar desbragadamente, antes por decretos-lei, hoje por medidas provisórias, estas piores que aqueles. Outra herança, pouco menos grave, é privar da iniciativa de legislar o legislador eleito pelo povo para esse fim. A essa herança, reagiu a "lei" autorizativa. Mas foi "emenda" que saiu tão ruim quanto o "soneto". A verdadeira emenda, que efetivamente resolveria a distorção, está nas mãos dos próprios membros do Congresso Nacional: uma emenda à Constituição para revogar toda e qualquer exclusividade que impeça a iniciativa legislativa dos legisladores e, em contrapeso, elevar o quórum de rejeição do veto em matérias em que, especificamente, as razões de veto devam ser objeto de excepcional prudência e convicção dos parlamentares. Com isso se superaria não só a inconstitucionalidade dita "leis autorizativas", mas sobretudo o vezo autoritário ao qual – explicável mas inaceitavelmente – elas reagem.
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segunda-feira, 17 de junho de 2019
Direito Constitucional "Leis" Autorizativas, Sergio Resende de Barros
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