Benefícios oficiais ajudam a evitar que a política seja dominada por ricos ou corruptos
[RESUMO] Em contraponto ao senso comum, cientista político argumenta que a combinação de alta remuneração e benefícios oficiais bem calibrados é importante para favorecer uma representação mais democrática dos interesses da sociedade e evitar que a atividade política seja dominada por ricos ou corruptos.
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Na polêmica que se instaura em torno de qualquer debate sobre a Previdência, talvez haja apenas uma inclinação que pareça unânime: a hostilidade contra os regimes especiais de aposentadoria para políticos. De fato, deve haver muitos excessos nessa seara —e é preciso contê-los—, mas eles não são, em princípio, injustificáveis. Neste texto tentarei elaborar um contraponto ao quase consenso a respeito desse tema.
De saída, quero sublinhar que não tenho qualquer pretensão de competência em gestão previdenciária; não venho endossar ou contestar qualquer medida específica. No entanto, bem mais que mero abuso ou privilégio, um repertório bem calibrado de incentivos pecuniários sustentados pelo erário são ingrediente fundamental de qualquer esperança quanto a uma representação minimamente equânime dos interesses dispersos na população.
A ambição de um bom sistema de representação que se pretenda democrático é prover iguais oportunidades para os interesses de todas as pessoas que componham o eleitorado, de todas as classes sociais. Se quisermos alimentar qualquer esperança de que o catador de papel ou o boia-fria se vejam representados por um dos seus, e não apenas por banqueiros aposentados ou testas de ferro do tráfico, será preciso desenhar com cuidado não apenas as regras de financiamento das campanhas, mas também a rede de proteção provida pelo Estado ao representante eleito.
Apenas quem já tenha a vida ganha (ou garantida por terceiros de forma corrupta) pode se dar ao luxo de entrar na política sem se profissionalizar. Se não houver algum sistema de pecúlio e/ou Previdência para políticos que respeite as características da carreira, o trabalhador comum não poderá sequer cogitar de se meter nesse meio —e a política se tornará esporte exclusivo de milionários, ainda mais do que já é.
Estaremos realmente dispostos a desistir da busca por uma representação democrática para nos resignarmos a uma representação barata? Também aqui se trata do famoso “barato que sai caro”.
Contra a intuição dominante, entendo que a atividade política deva ser muito mais bem remunerada que as carreiras regulares do Estado. Num país como o Brasil, com dimensões continentais e infraestrutura deficiente, custa muito dinheiro exercer um bom mandato.
Um cidadão eleito deputado, por exemplo, terá sua despesa pessoal multiplicada, mesmo que atue de forma bastante burocrática —somente vote nas sessões e retorne para casa no fim de semana. Caso queira cultivar contato com sua base eleitoral, como a maioria dos deputados faz, e todos deveriam fazer, os gastos aumentarão ainda mais.
Representação política é serviço prestado ao país. Exercê-la bem é uma tarefa exigente. Ao fixarmos as regras, temos de presumir que os representantes trabalhem a sério, caso queiramos ter qualquer esperança de que o façam. Se desenharmos regras que presumam negligência e corrupção, obteremos negligência e corrupção —e apenas os que tiverem outras fontes de renda se interessarão pela política.
Precisamos encarar um paradoxo: em países como Suíça ou Suécia, pode-se economizar na representação, pois ela tenderá, de todo modo, a funcionar razoavelmente. Nesses casos, o parlamentar se deslocará para qualquer canto do país em duas horas de trem —e não encontrará população intimidada por miliciano ou traficantes. Num lugar com as dimensões, as desigualdades, as fragilidades e a violência do Brasil , gasta-se muito mais no esforço de blindar os deputados.
Não se nega a existência de distorções e excessos. Ninguém precisa de 20 ou 50 assessores pessoais para exercer seu trabalho: entulhar o gabinete é, sobretudo, uma forma de viabilizar a roubalheira da “rachadinha”. É preciso, porém, estimar com cuidado os custos. Prerrogativas e regalos variados têm sido subtraídos, com controles crescentes ao longo das últimas décadas.
Políticos não ficam ricos com os benefícios oficiais. Os que ficam valem-se de recursos de origem escusa, o que deve ser combatido com vigor. Mais importante é cuidar da regulação eleitoral, na busca por um sistema representativo do eleitorado, mais que dos financiadores.
Assim, por exemplo, o modelo de lista aberta adotado no Brasil aumenta o custo da representação não apenas por produzir campanhas mais caras, mas também por tornar cada representante uma espécie de empreendedor da própria carreira, orientado à composição de uma assessoria pessoal numerosa.
Temos muito a aprender sobre a interação entre sistema eleitoral e atuação parlamentar. Se, porém, tentarmos reformar o sistema pela mera remoção das proteções, reforçaremos a posição do financiador e daremos vantagem ao corrupto. Nosso problema hoje é antes a falta de uma elite parlamentar tarimbada do que o excesso dela. Os poucos que estão lá há mais tempo resultam de um ambiente vicioso de financiamento das campanhas e não contam com o respeito da opinião pública.
Podemos e devemos discutir com minúcia a devida calibragem do repertório de prerrogativas para a representação política. Nesse esforço, porém, é importante evitar, de maneira obstinada, um processo de esvaziamento desses benefícios em nome da contenção de gastos. Abolir esses direitos favoreceria o poder de quem já tem dinheiro ou é bem financiado pelo poder econômico.
A atividade política decorre da existência de uma disputa legítima pelo poder. Como representantes, políticos travam disputa entre si, em nome de terceiros. Representantes ricos (ou com patrocinadores ricos), por definição, terão muito mais recursos próprios com que contar no exercício do mandato. Quanto mais desigual um país, mais esforço ele tem de fazer, pagando bem aos políticos, para nivelar o campo da disputa. Caso contrário, iremos conceder uma vantagem ainda maior ao representante do poder econômico.
A um parlamentar corrupto, que esconde em paraísos fiscais o dinheiro que recebe do miliciano ou da empreiteira, tanto faz o salário, a aposentadoria, a verba de gabinete ou a cota de passagens ou gasolina que vai receber. Ele atende a quem o financia e espera viver com a grana ilegal quando sair do jogo.
Já um operário ou um professor de ensino médio eleito parlamentar, que tenha intenção de realmente se dedicar ao mandato, precisará de um ótimo salário, de verba razoável para contratar uma boa assessoria e bancar demais despesas em seu gabinete. Também carecerá de um regime de aposentadoria cuidadosamente desenhado para compensar os riscos de licenciar-se de seu emprego de origem e afastar-se do mercado de trabalho por vários anos.
Um deputado milionário banca a si mesmo; um corrupto é bancado por um corruptor. Um trabalhador comum, sem proteção razoável à atividade parlamentar, vai pensar um milhão de vezes antes de entrar para a política. Gastar dinheiro público com esses benefícios é bem menos ruim do que deixar o campo livre para candidatos ricos e interditado a candidatos pobres.
Se presumirmos que todos são corruptos e não vale a pena esse gasto, então todos serão corruptos (ou muito ricos), porque os outros não vão nem tentar.
Sempre haverá políticos propensos a abrir mão desses auxílios. Alguns de fato não precisam deles, mas há os que deles abdicam com sacrifícios, e isso deve ser respeitado. Mas meu ponto geral é que o fim dessas provisões não ajudaria a nivelar o campo da luta política. É certo que são raros os deputados verdadeiramente pobres. Queremos diminuir ainda mais a presença deles?
Existe, é verdade, o caso uruguaio de Pepe Mujica, que não apenas escolheu a pobreza como parece nela viver mais feliz e pleno do que qualquer pessoa. Mas será que montaremos uma estrutura de incentivos adequada à representação equânime dos variados interesses dispersos pelo eleitorado se presumirmos que todos os nossos potenciais representantes são pepes mujicas?
Ou antes, ao recusarmos a provisão de um colchão confortável à velhice de nossos representantes, não os abandonamos ainda mais vulneráveis ao assédio pelo poder econômico —e, portanto, à corrupção?
Sou menos receptivo aos privilégios pecuniários das carreiras de Estado, onde a vitaliciedade e a estabilidade fazem parte do pacote de proteções para o desempenho de funções que devem se subordinar a rotinas.
Preocupa-me, no caso dos políticos eleitos, dada a natureza competitiva da função e a plena absorção exigida no bom exercício de um mandato popular, uma desigualdade muito forte das condições entre os representantes de diferentes grupos (ou classes). O caráter desigual da disputa tenderá a concentrar renda e a onerar os orçamentos bem mais que os gastos com a remuneração dos representantes.
O espetáculo cotidiano das relações promíscuas de representantes políticos e interesses privados alimenta no público uma compreensível raiva dos políticos, que passam a ser percebidos, de maneira ingênua, como “classe política” a explorar uma pobre sociedade, presumivelmente virtuosa, que paga as contas e os privilégios.
Ora, o cenário é bem mais complexo. Nossa sociedade é brutal em si mesma, e a tarefa de propiciar-lhe um sistema democrático de tomada de decisões políticas é uma penosa construção, que será tanto mais cara quanto mais desiguais forem as condições econômicas que se busca contrabalançar pela imposição a sério do princípio de igualdade política que inspira o liberalismo de nosso Estado democrático de Direito.
O noticiário dos últimos anos tem exposto com clareza suficiente a vulnerabilidade do sistema político frente ao assédio por interesses econômicos privados. Se vamos reagir à exposição de práticas corruptas removendo prerrogativas e enfraquecendo ainda mais o sistema político brasileiro em sua interação com esses interesses, só aumentaremos a corrupção.
Bruno P. W. Reis é professor de ciência política na Universidade Federal de Minas Gerais
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