domingo, 23 de junho de 2019

Deputados em SP discutem se Assembleia deve aprovar projetos inconstitucionais, FSP

Novos membros da Comissão de Constituição e Justiça defendem acabar com tradição de passar tudo

Joelmir Tavares
SÃO PAULO
Um debate sobre linguiça tomou quase 30 minutos de uma sessão de duas horas na Assembleia Legislativa de São Paulo há alguns dias. Não qualquer linguiça, mas a de Bragança Paulista, que um projeto tenta transformar em patrimônio cultural imaterial do estado.
Janaina Paschoal (PSL) chegou a pedir desculpas por rir depois de dizer que cabe aos parlamentares “decidir se a linguiça tem esse papel”. Gargalhadas correram o recinto.
Membros da CCJ da Assembleia de São Paulo, incluindo Janaina Paschoal (à esquerda, de preto) durante sessão para analisar projetos de deputados - Carol Jacob/Alesp
“Eu até não aprecio linguiça, mas os apreciadores gostam muito”, acrescentou Janaina, favorável ao andamento da proposta. Marin a Helou (Rede) reivindicava mais informações para votar. “Na verdade, isso é uma questão pessoal, porque sou vegetariana.”
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Pode até não parecer, mas a discussão é parte de um assunto sério, que divide membros da Casa: a função da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), local onde se deu o enrolado embate.
Uma ala dos integrantes do colegiado indaga: afinal, pode a Assembleia continuar aprovando projetos inconstitucionais, como virou tradição?
 
A nova composição da CCJ quer pôr abaixo a ideia de que lá tudo passa —até texto que contraria a lei, que propõe criar norma que já existe ou que não tem efeito prático.
A adoção de análise criteriosa, porém, enfrenta resistências dentro e fora da comissão, a primeira onde tramitam os projetos apresentados por deputados.
No caso da linguiça, a divergência se deu porque Marina, que pressiona por mais rigidez, propôs que os deputados pedissem um parecer do Condephaat (órgão estadual do patrimônio) sobre o assunto para embasar a decisão.
Colegas questionaram se essa passaria a ser a praxe em situações semelhantes, já que a consulta externa não poderia se restringir a um caso. Foi levantada também a bandeira da autonomia do Legislativo, sob o argumento de que se submeter ao Condephaat seria fragilizar as já limitadas competências da Assembleia.
Por fim, a linguiça triunfou, e o texto de Edmir Chedid (DEM) foi aprovado na CCJ.
O confronto na comissão é mais uma das novidades inseridas pela renovação de 55% das cadeiras na Assembleia paulista. Velhas práticas estão sendo contestadas, em meio à fragmentação recorde de partidos na Casa (24 siglas têm representantes) e à ascensão do PSL como maior bancada (15 deputados).
Diante de tantas transformações, estreantes querem o fim do acordo tácito que prevê aval a tudo. Com 13 membros, o colegiado é presidido por Mauro Bragato (PSDB). O tucano, em seu décimo mandato, tem se mantido neutro na queda de braço interna, mas disse à Folha ser simpático ao endurecimento.
Quando um projeto chega à CCJ, é distribuído para um deputado relator, que pode dar parecer favorável ou contrário.
A segunda situação, porém, se tornou coisa rara nos últimos anos, segundo deputados veteranos. Só agora o cenário começa a mudar. Janaina, por exemplo, já fez relatórios gongando propostas até de colegas de partido.
Uma delas foi a ideia do deputado Coronel Nishikawa (PSL) de destinar para Santas Casas 10% do valor obtido com multas de trânsito. Advogada e professora de direito, Janaina concluiu que a sugestão contraria a legislação, que prevê a aplicação do dinheiro em educação para motoristas.
“Defendo, até pela minha origem e formação, que a comissão tenha rigor técnico”, diz ela. “Não estamos ali para julgar o mérito da proposta, mas o aspecto formal e legal.”
Tanto em comissões quanto no plenário, vigora historicamente a regra do “aprova o meu que eu aprovo o seu”.
“Isso envergonha a Assembleia, só nos diminui”, protesta Roque Barbiere (PTB), que, em seu oitavo mandato, integra a CCJ e concorda com a guinada. “Em vez de olhar a legalidade, passam [projeto] para fazer média com o colega. Quero mudar. Tem que brecar o que for inconstitucional.”
 
Dos 722 projetos que deram entrada no colegiado em 2019, 56 foram deliberados, dos quais 54 receberam sinal verde para prosseguir. A imensa maioria ainda tramita, num processo que pode durar meses, entre escolhas dos relatores, análises de pareceres e centenas de pedidos de vista (quando um membro pede mais tempo para analisar o caso, adiando sua votação).
Um dos pontos que causam mais polêmica são os chamados projetos autorizativos, em que o parlamentar autoriza por iniciativa própria o Executivo a tomar uma medida. Pode ser, por exemplo, permitir a abertura de uma unidade de saúde em um determinado município, sem que antes seja discutida a viabilidade ou a fonte dos recursos.
“Isso é para agradar às bases, mostrar que está fazendo algo”, afirma Barbiere. “Mas é inócuo, despropositado, inútil. Cria falsa esperança nos cidadãos, porque são coisas que não vão acontecer nunca.”
Marina também critica: “É bastante demagógico”. Para a deputada da Rede, propostas do tipo deveriam ser exceção, “só se o Legislativo sentir necessidade de fazer pressão por algo realmente importante, tensionar com o governo”.
Segundo ela, que é vice-presidente da comissão, outros instrumentos legislativos podem ser usados pelos colegas no lugar da autorização, como indicação e requerimento.
“E, quanto às propostas que são flagrantemente inconstitucionais, temos que ser firmes”, diz a novata na Casa.
Damaris Moura (PHS), outra titular da CCJ, assume postura mais flexível. “Se não há proibição para os autorizativos, penso que não podemos cercear os deputados que quiserem apresentá-los. Sou contra proibição, mas acho que a comissão pode rejeitar se houver abuso desse expediente.”
Advogada, Damaris é do grupo para o qual a Casa tem um caráter eminentemente político e, portanto, deve adotar o bom senso. “A CCJ não é um tribunal. A autonomia do deputado para propor um projeto é soberana”, diz ela.
O tom é parecido com o de Emidio de Souza (PT). “Defendo uma solução intermediária. Se tivermos muito rigor, pouca coisa vai sobrar.”
Para ele, uma régua razoável para ser incorporada pode ser barrar automaticamente textos que autorizem aumentos salariais para servidores.
As razões mais comuns para iniciativas da Assembleia serem vetadas pelo Palácio dos Bandeirantes são a interferência em carreiras do funcionalismo e a criação de gastos para os cofres estaduais.
Como só o governo tem direito de enviar projetos que envolvam esses assuntos, textos parlamentares que tocam os dois campos padecem do chamado vício de origem. São fadados a morrer na praia.
Também incorrem em ilegalidade —e deveriam, em tese, ser freadas já na CCJ— propostas que esbarram em áreas nas quais a responsabilidade de legislar cabe à União ou aos municípios. Na prática, contudo, muitas delas são aprovadas.
Depois da rejeição pelo governo, o problema volta para o colo da Assembleia, que é obrigada a apreciar todos os vetos e decidir se os mantém ou derruba. Dos cerca de 350 itens que estão na pauta da Casa à espera de análise imediata, 90% são vetos.
Para Heni Ozi Cukier (Novo), a raiz do imbróglio está em uma questão mais ampla, a competência legal das Assembleias. “Precisamos rediscutir o pacto federativo e alargar nossa margem de atuação”, diz o deputado e cientista político.
O entendimento é o de que, se o risco de invadir atribuições federais ou municipais fosse menor, naturalmente cairia o número de projetos inconstitucionais de deputados estaduais, já que eles teriam maior poder para legislar.
Heni preside na Assembleia uma frente pela revisão do pacto federativo, que quer impulsionar esse debate, mas depende do Congresso para avançar. É discussão que vai longe, mais encaracolada que linguiça de Bragança.

COLEGIADO É O PRIMEIRO A ANALISAR PROJETOS

A CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) recebe os projetos apresentados pelos deputados. Cabe ao presidente do grupo escolher um relator, que fica encarregado de apresentar um relatório a ser votado pelos membros
722
projetos deram entrada na CCJ da Assembleia em 2019
Principais problemas nos projetos
  • Propor a criação de leis que já existem ou apresentar conteúdo muito parecido com o de outras propostas que já tramitam na Casa
  • Sugerir iniciativas que resvalam em ilegalidade ou inconstitucionalidade
  • Invadir competências que são do governo federal ou das prefeituras, ou seja, interferir em temas sobre os quais não cabe à Assembleia legislar
  • Propor mudanças em carreiras do funcionalismo ou sugerir iniciativas que geram custos para os cofres do Estado, dois campos em que só o governador pode indicar projetos

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