sábado, 15 de junho de 2019

Dias de ira em Eldorado, FSP

Da degringolada ao impasse, o Brasil de 'Democracia em Vertigem'

Petra Costa, que dirige e narra "Democracia em Vertigem", lá pelo meio do filme diz: "Não sei como isso deve ser contado". A insegurança tem razão de ser. Ela narra o pandemônio político desde a crise de Dilma até a posse de Bolsonaro e, ainda por cima, busca o seu lugar naqueles dias.
Foram dias de ira na República das Famílias —é assim que o documentário nomeia a casta de clãs que detêm o cimento e o ferro, o crédito e o capital, a matéria-prima e as máquinas, a mão de obra e o mercado, o Supremo, o Congresso, o Planalto.
Elas têm tanto, as famílias de posses, que podem vir a prescindir da democracia. O filme defende que o processo hoje em marcha é justamente esse, de erosão do poder popular. Ao terminar, ele pergunta: há energia para começar de novo?
Elegíaco, "Democracia em Vertigem" prova que energia há. Feito em cima da bucha, ele é criativo e incisivo, vive. Não se destina a quem tem certezas, e sim a quem quer aprender. Pena que só passe na Netflix (a partir da próxima quarta, dia 19). Cinema de primeira, deveria ser visto como tal.
Ilustração
Bruna Barros
A câmera desce de drone do céu da praça dos Três Poderes e cai na chapa quente da Esplanada, onde a PM baixa o pau na plebe. Na votação do impeachment, não se contempla só a cafonice da Câmara —escancara-se a alma podre de Eldorado. É de vomitar.
Tanto Lula e Dilma como Bolsonaro deram entrevistas reveladoras a Petra, franquearam-lhe suas salas de trabalho e conchavo. O rico material é completado por imagens —inéditas— captadas pelo Velázquez do poder petista, o fotógrafo Ricardo Stuckert.
O filme expõe, pois, semblantes noturnos em dias de estridência pública. Em closes, Lula envelhece ao longo da onda de ódio. Ao se entregar aos meganhas, no Sindicato dos Metalúrgicos, está um caco. A degringolada que lhe amarfanha o rosto deixa Bolsonaro todo pimpão.
No plano político, o documentário não cai na lorota do baixo petismo, que fecha os olhos à evidência que chefes do partido se venderam. O filme critica o amoldamento do PT aos usos e costumes burgueses, mas tenta entender o contexto em que se deu.
Não é só isso que faz de "Vertigem" um rubi. O filme se distingue pela narradora e pelo modo de narrar. Porque Petra integra a República das Famílias; pertence ao clã de herdeiros da Andrade Gutierrez, empreiteira atolada até o pescoço na Lava Jato.
Relembre-se: a Andrade assinou um acordo de leniência e tem de pagar R$ 1,5 bilhão de multa, por ter fraudado 54 contratos com o poder público. A herança por certo afetou o enfoque de Petra. No entanto, não foi esse o único legado de seu sangue.
Neta de um fundador da construtora, seus pais foram presos na ditadura e ficaram dez anos na clandestinidade. Batizaram-lhe de Petra em homenagem a Pedro Pomar, líder do PCdoB fuzilado com 50 tiros por ídolos de Bolsonaro, em 1976, na Chacina da Lapa.
Ela levou a mãe para conhecer Dilma —outra "mulher, mineira e militante"— e as filmou batendo papo. Noutra conexão das Alterosas, a mãe de Aécio Neves, a quem a Andrade fez doações miliardárias, casou-se com um primo do avô de Petra. Aécio a enrolou e não lhe deu entrevista.
O modo como se narra o romance familiar é intrigante. "Vertigem" não o atenua, não lamenta nem se vangloria. Conta-o com melancolia e entrega. Ou seja, a narrativa é lírica, recurso insólito numa cinematografia grave, dada a ministrar lições impessoais. Vejam-se alguns exemplos.
Petra aparece aos 20 anos, num filminho caseiro, vibrando ao votar pela primeira vez. Num intervalo entre filmagens, dança e rodopia na avenida Paulista. São cenas belas. Espantam porque, num ambiente político de papagaios de pirata, a subjetividade real é gratuita, não manipula.
Numa manhã, a câmera percorre o Alvorada deserto. A voz de Petra conta que achou ali duas placas de bronze, e as filma. Uma informa que a Andrade, entre outras empreiteiras, reformou o palácio para Collor. A outra diz o mesmo, mas o beneficiado foi Lula. Os políticos passam e as empreiteiras continuam.
O eu lírico não é autocentrado. Numa sequência tocante, o filme passa a palavra a uma faxineira da Presidência. O que ela achou da derrubada de Dilma? A moça titubeia, é tímida. Como muitos de nós, não entendeu direito o que se passou.
Sentada num degrau de escada, vai se soltando. Diz que desconfia da política e não há democracia. Aí silencia. Como numa tela de Vermeer, aguarda. Serve de retrato para nosso impasse.
Mario Sergio Conti
Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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