quarta-feira, 26 de junho de 2019

Facebook entra em águas perigosas com criptomoeda 'libra', FSP

FINANCIAL TIMES
Na semana passada, o Banco da Inglaterra divulgou o resultado de uma revisão independente sobre o futuro das finanças, e sua resposta ao estudo. Como se para provar a importância dessas questões, o Facebook e 27 parceiros anunciaram um plano para uma moeda digital mundial chamada libra, e um sistema de pagamentos online associado. Como se deve avaliar a importância, promessa e risco desses desdobramentos? Como as autoridades regulatórias deveriam reagir? A resposta é: com cautela.
A revolução da informação, agora aumentada pela inteligência artificial, certamente revolucionará as finanças. Tem benefícios enormes a oferecer, na forma de serviços de pagamentos mais rápidos e mais baratos, serviços financeiros de qualidade superior, e uma melhor administração de riscos. Já estamos diante de um grande declínio no uso de dinheiro em espécie e de crescimento explosivo nos pagamentos digitais. Na China, a revolução na tecnologia de pagamentos, liderada pela Alipay (agora parte da Ant Financial) já é extraordinária., O Facebook está tentando criar um rival. Nota: essa é uma área na qual os Estados Unidos estão defasados com relação à China.
Mark Zuckerberg, CEO do Facebook - Amy Osborne - 30.abr.19/AFP
Mas a infraestrutura financeira também é crítica. Uma pane no sistema financeiro provavelmente causaria séria crise econômica. Inovações mal compreendidas muitas vezes servem de origem a calamidades desse tipo. Portanto, é vital garantir que as implicações de grandes inovações, como a libra, sejam bem compreendidas. Mark Carney, presidente do Banco da Inglaterra, argumentou na semana passada, em um discurso na Mansion House, que o banco "está abordando a libra de mente aberta, mas não com as portas abertas". E a mente mesma não deve estar completamente aberta.
Uma primeira questão deve ser se podemos confiar no proponente de uma inovação tão sensível. O Facebook se comportou de maneira grosseiramente irresponsável com relação ao seu impacto sobre as nossas democracias. Não há motivo óbvio para que mereça confiança quanto aos nossos sistemas de pagamento. O Facebook tem uma resposta: a companhia conta com apenas um voto na Libra Association, que terá um sistema de governança independente, sediado em Genebra. A ideia é que a associação conte com 100 membros, quando do lançamento da moeda, em 2020. Mas parece provável que o Facebook domine o desenvolvimento técnico da libra. E isso certamente conferirá à empresa uma influência dominante.
Randal Quarles, presidente do Conselho de Estabilidade Financeira - uma organização internacional de fiscalização - está certo ao dizer aos países do G20, em sua reunião no Japão, que "um uso mais amplo de novos tipos de criptoativos para propósitos de pagamentos de varejo mereceria escrutínio severo por parte das autoridades, para garantir que estejam sujeitos a padrões severo de regulamentação".
Assim, além das dúvidas sobre a entidade proponente, um novo sistema mundial de pagamentos precisará ser avaliado também em termos de estabilidade técnica, impacto sobre a estabilidade financeira (especialmente nos países em desenvolvimento) e exposição a fraudes, criminosos e terroristas. Também haverá grandes questões sobre concentração de poder, caso o empreendimento encontre sucesso.
O plano de hoje envolve apenas um sistema de pagamento. A moeda em si, nas palavras do documento distribuído sobre a libra, será "lastreada integralmente por uma reserva de ativos reais. Uma cesta de depósitos bancários e títulos governamentais de curto prazo será retida na reserva da libra, para cada libra criada, o que gerará confiança sobre seu valor intrínseco". Mas esse valor ficará vulnerável a flutuações cambiais e choques financeiros (entre os quais controles de câmbio). O movimento da libra com relação a outras moedas pode incomodar os usuários. As autoridades regulatórias teriam de avaliar as instabilidades associadas a um sistema como esse.
Não estou apto a julgar a estabilidade técnica do sistema proposto. A afirmação de que o sistema terá por base a tecnologia "blockchain" parece bastante questionável. Mas apenas os partidários intransigentes dos sistemas "não permissivos" precisam se preocupar com isso. O que mais importa é que o sistema seja robusto, resistente a violações e que proteja a privacidade dos usuários, enquanto autoriza o acesso regulatório, das autoridades judiciais e de outras partes com interesse legítimo sobre quem o esteja usando.
Uma questão crucial é como a libra interagiria com os bancos tradicionais. Poderia privá-los de grande proporção de seus clientes, na ponta dos pagamentos. Ou em lugar disso o sistema libra poderia deter grandes depósitos nos bancos, equiparados, na ponta oposta de seu balanço, pelas posições dos clientes em libras.
Alternativamente, como disse Carney, "à medida que novos provedores de pagamentos e sistemas emergem, o acesso à infraestrutura central [do Banco da Inglaterra] deve mudar e faz sentido considerar se eles também deteriam fundos overnight no balanço do banco.[central]. Na medida em que bancos centrais criam essas reservas (decisão que lhes cabe exclusivamente), um sistema como o da libra poderia contornar completamente o sistema tradicional de pagamentos centrado nos bancos. A vantagem histórica dos bancos como detentores de informações para concessão de créditos poderia desaparecer.
Uma possibilidade muito mais significativa emerge: o sistema libra, com seu conhecimento dos clientes, poderia se tornar origem de empréstimos, usurpando a função dos bancos tradicionais na ponta dos ativos em seus balanços. Se o pior acontecer, o mundo poderia se ver diante de um monobanco dominado pelo Facebook. Os riscos associados a isso são imensos: potencial instabilidade monetária e financeira, concentração de poder político e econômico, falta de privacidade e muitas outras questões. Uma moeda mundial, criada por empréstimos de bancos mundiais (porque bancos criam dinheiro como subproduto de seus empréstimos), em uma moeda (a libra) que não é garantida por qualquer banco central e não conta com uma autoridade regulatória dominante, parece criar um risco exagerado de instabilidade.
Existe de fato o potencial para sistemas de pagamento muito melhorados. Mas o surgimento de um sistema de pagamento em uma rede com a escala do Facebook despertaria questões sérias. Caso a libra se torne um sistema bancário verdadeiro, com a capacidade de criar uma moeda, as questões se tornariam ainda mais prementes. Mesmo que seja descartada a hipótese de empréstimos pelo sistema libra, as autoridades regulatórias não deveriam permitir que esse plano vá adiante sem compreender plenamente as implicações. Esse deveria ser o caso mesmo que principal proponente da ideia não fosse o Facebook. Mas é. Por isso, cuidado.
 
Financial Times, tradução de Paulo ​Migliacci
Martin Wolf
Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

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