O discurso fanatizado inverteu o teor ideológico, mas mantém a mesma estrutura de revolta adolescente
Discutir o governo Bolsonaro nas redes sociais tem sido instrutivo. Há, claro, apoiadores do governo dispostos a argumentar com razão e serenidade. Mas o que mais chama a atenção é a torrente ininterrupta de ódio dirigida a quem ousa divergir do governo. Um dos ataques que mais vejo direcionados a mim é que sou "da imprensa", e "nós" não toleramos a perda da hegemonia desde que Bolsonaro venceu.
Isso me lembrou das discussões dos tempos de colégio, em que "a mídia" também era a vilã suprema. A questão é que lá, no início dos anos 2000, ela era vista como sendo de direita, promotora do neoliberalismo e da publicidade capitalista. O discurso fanatizado de hoje inverteu o teor ideológico, mas mantém a mesma estrutura de revolta adolescente.
Duas coisas me chamam a atenção nessa revolta contra a imprensa. A primeira é o coletivismo. Escrevo colunas de opinião, faço comentários políticos no rádio; estou, portanto, na imprensa. Mas sou só uma voz em meio a muitas outras, não raro discordantes. Não há sentido em incluir a mim, os demais colunistas de jornal, os jornalistas e funcionários das redações, os diferentes jornais, os âncoras de TV e os atores de novela num mesmo "a imprensa", organizada para um mesmo fim.
A segunda é a amnésia histórica. Na narrativa anti-imprensa, até as eleições do ano passado a imprensa reinava inconteste, monopolista das informações e das opiniões, fazendo e desfazendo presidentes a seu bel-prazer e promovendo a esquerda. Isso é simplesmente falso. Basta lembrar que os blogs do petismo já viam a imprensa como inimiga. O "Partido da Imprensa Golpista" deles cumpria o mesmo papel que o termo "extrema imprensa" cumpre hoje no discurso da direita radical pró-governo.
Os diversos órgãos de imprensa que compõem a grande mídia no Brasil jamais foram uniformemente de esquerda. No passado recente, podemos citar a campanha quase aberta contra Dilma da revista Veja. A própria Folha era acusada de ser contra a gestão de Fernando Haddad. E não custa lembrar o esforço das organizações Globo para derrubar Michel Temer. Nesse caso, malsucedido. A mídia não é, nem nunca foi, onipotente.
A internet (com sites independentes e blogs) e as redes sociais democratizaram a informação. Um resultado foi o aumento na variedade de opiniões, análises e pontos de vista. Isso é um grande ganho. Também temos acesso quase imediato a fatos do mundo todo.
Por outro lado, algumas ilusões foram desfeitas. O argumento era que as empresas de mídia tinham interesses que podiam interferir na informação. E têm mesmo. Descobrimos, contudo, que grupos amadores e militantes têm os mesmos interesses; eles apenas carecem de profissionalismo. A manipulação, o erro crasso e mesmo a mentira se tornaram mais --e não menos-- comuns com as redes sociais. A geração de informação se pulverizou e a qualidade média caiu.
"A mídia" tem uma série de defeitos. Criticá-los e corrigi-los é de interesse da sociedade. Mas os que investem numa cruzada contra o jornalismo profissional não querem informação mais objetiva e imparcial; querem que toda a informação esteja a serviço de seu projeto de poder. Para isso, se utilizam do discurso fácil --contra a mídia e contra a política-- que sempre imperou no senso comum. Não são os vícios e sim as virtudes da imprensa o que eles querem destruir.
Joel Pinheiro da Fonseca
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