domingo, 24 de março de 2019

Em briga por petróleo, Monteiro Lobato vê burrada imensa no país, FSP


Kátia Chiaradia
[RESUMO] Pesquisadora que descobriu documentos de Monteiro Lobato sobre o petróleo descreve as batalhas do escritor contra a política de exploração mineral praticada no Brasil sob Getúlio Vargas.
Neste ano, muito já se falou e mais ainda se falará de Monteiro Lobato, em especial porque sua obra entrou em domínio público, o que significa mais acessibilidade e, espera-se, mais leitura. Além disso, 2019 é especial também por outra efeméride, indiretamente lobatiana: os 80 anos da descoberta do primeiro poço de petróleo brasileiro, no bairro de Lobato, em Salvador (Bahia). 

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O nome da cidade nada tem a ver com o criador do Sítio do Pica-Pau-Amarelo, mas é interessante pensar como o destino pode, de fato, ser sábio: Monteiro Lobato foi um dos maiores nomes da luta pelo petróleo de solo brasileiro. Liberal, dedicou-se a criticar dura e abertamente o Código de Minas de 1934. Já sem a herança do avô e sem sua editora, apostava na descoberta do petróleo todas as suas forças —que pareciam mais numerosas que suas moedas.
No mesmo ano do novo Código de Minas, Lobato se envolveu mais ativamente na pesquisa e na prospecção do petróleo. Boa parte dessa empreitada está documentada numa intensa troca de cartas, ao longo de três anos, entre ele e o engenheiro de perfuração Charles Frankie, imigrado da Suíça em 1920. Os documentos estão depositados no Cedae (Centro de Documentação Alexandre Eulalio), da Unicamp.
Na correspondência, Lobato fazia críticas contundentes à legislação que acabara de entrar em vigor e ao “atraso brasileiro”. Destacava nas cartas a história das primeiras companhias petrolíferas no país. Em outras mensagens, entraram em discussão questões acerca da parceria na tradução e na redação do prefácio de “A Luta pelo Petróleo” (1935), de Essad Bey. Mais à frente, esse conjunto de cartas também teria papel definitivo na composição de seu best-seller “O Escândalo do Petróleo” (1936) e no infantil “O Poço do Visconde” (1937).
Entre 1934 e 1936, Lobato empreendeu diversas missões em busca de petróleo, todas frustradas. Seguia criticando a legislação e chegou a apelar para autoridades, na tentativa de alterar o Código de Minas, para que fosse “o mais liberal possível”.
Na visão dele, havia pelo menos dois grupos estrangeiros interessados no petróleo brasileiro, mencionados em muitas das cartas: os norte-americanos —que teriam “interesses ocultos”, representados por Vitor Oppenheim e pela Standard Oil—, e os alemães, representados por Frankie e pela empresa Piepmeyer, entre outros.
Supondo que poderia levar o Brasil a um tipo de desenvolvimento semelhante ao observado nos EUA e ainda se firmar como empresário e empreendedor, Lobato iniciou a Campanha do Petróleo.
Nos anos 1930, o mundo ainda não se reerguera da Primeira Guerra Mundial, mas já sofria os efeitos do colapso da Bolsa de Nova York. Nesse cenário, o petróleo passava a ser um valioso e disputado produto. O Brasil, por muito tempo monoexportador de café, sentia as consequências da crise econômica e via sua demanda pelo “ouro negro” dos subsolos crescer fortemente. Em 1932, o país consumia cerca de 12 mil barris por dia; em 1938, exigia a importação de 38 mil barris diários —hoje, o consumo brasileiro gira em torno de 2 milhões de barris por dia.
Naquele período, o governo federal, buscando fortalecimento estatal, passou a legislar sobre a exploração das riquezas minerais em nome dos interesses da União. Chamou para si o planejamento e a execução dos serviços correspondentes. Em decorrência disso, em 1932 passou a funcionar legalmente no Brasil a Companhia Brasileira de Petróleo, associada à americana Royal Dutch & Shell, referência mundial na extração.
Lobato, que chegara havia pouco de uma temporada de quatro anos como adido comercial nos EUA e que já havia escrito seu livro “Ferro”, entendia o que se passava nessa associação.
Assim, entre 1932 e 1935, outras duas companhias passaram a atuar no Brasil: a Companhia Petróleo Nacional, incorporada por Monteiro Lobato, Lino Moreira e Edson de Carvalho, que funcionava legalmente em Riacho Doce, Alagoas; e a Companhia Petróleos do Brasil, presidida por Lobato, instalada legalmente no campo de Araquá, hoje Águas de São Pedro, no interior de São Paulo.
Ainda assim, não se extraía petróleo do subsolo brasileiro. Ao menos não oficialmente. Em 1933, o Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil, braço do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, que marcara a entrada do Estado no setor petrolífero, foi extinto. O órgão atuara de 1919 até aquele momento, realizando pouquíssimas perfurações (cerca de 50) e em apenas sete estados: Alagoas, Bahia, Pará, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.
Nesse mesmo ano, o Ministério da Agricultura contratou o técnico americano Victor Oppenheim, conhecido e renomado geólogo da época vinculado à Standard Oil, o maior truste petrolífero norte-americano, para operar pesquisas em solo brasileiro. Lobato, então, começou a criticar publicamente a associação entre o governo brasileiro e a estrutura empresarial dos EUA.
Em paralelo, Juarez Távora, na pasta da Agricultura, solicitava oficialmente ao Itamaraty uma organização do exterior para estudos geofísicos no Brasil. O órgão indicou-lhe a firma alemã Piepmeyer & Co.
Em março de 1934, o DNPM (Departamento Nacional da Produção Mineral) foi criado —extinto em dezembro de 2018, foi substituído pela Agência Nacional de Mineração—, e sua presidência ficou com Fleury da Rocha, contra quem Lobato travaria longa batalha. O órgão passou a comandar as iniciativas de pesquisa de petróleo em território brasileiro.
Pouco depois disso, Victor Oppenheim começou a divulgar os primeiros resultados de sua pesquisa. Em boletim ao DNPM, afirmava: “A região de S. Pedro, no estado de S. Paulo [poço São João do Araquá, cuja exploração se dava pela Companhia Petróleos do Brasil, de Monteiro Lobato] é, do ponto de vista geológico-estratigráfico, francamente negativa para futuras pesquisas de petróleo nessa região”.
Em Alagoas, em um poço da Companhia Petróleo Nacional, outra empresa de Lobato, o estudo de Oppenheim também contrariava a crença no petróleo litorâneo. Mais tarde, isso viria a ser desmentido por técnicos alemães próximos ao escritor. Era claro o esforço de Oppenheim, representante do Estado, em negar a existência de petróleo onde Lobato bradava o oposto de forma visceral.
No “Boletim de Agricultura”, Oppenheim publicara, também, trechos de seu relatório sobre a região de Lobato, “A Questão do Petróleo da Bahia”. Na página 93, afirmava: “Esta localidade [Lobato, BA], do ponto de vista da geologia de petróleo, é positivamente desfavorável à presença de hidrocarbonetos. O conjunto geotectônico desse local é absolutamente negativo. Os elementos técnicos atestam de um modo formal a não existência de jazidas petrolíferas [...]. Está provada à sociedade a inexistência de depósitos petrolíferos no lugar denominado Lobato na Bahia”.
Em janeiro de 1939, contudo, o oposto ficaria provado à sociedade, com o anúncio oficial da descoberta do primeiro poço de petróleo brasileiro nessa mesma região.
Com o objetivo de “remover obstáculos e embaraços ao racional aproveitamento das riquezas do subsolo” e de assegurar “as iniciativas privadas nos trabalhos de pesquisa e lavra”, em 1934 o governo federal promulgou o novo Código de Minas, que regulava a propriedade das jazidas do subsolo.
Com ele, a posse das riquezas minerais tornou-se independente da posse do solo: aquelas se tornaram propriedade da União, e sua exploração passou a demandar concessão especial do governo federal. Tal dispositivo estava alinhado à Constituição de 1934, promulgada seis dias depois.
A nova legislação também estabelecia “a nacionalização das jazidas e minas julgadas básicas ou essenciais à defesa econômica ou militar do país” e “a exigência de nacionalidade brasileira ou de constituição de uma empresa nacional para atuar no setor de mineração” —medidas nitidamente nacionalistas.
Lobato, como já dito, combateria extensivamente, como escritor e empresário, o Código de Minas. Irritado em especial com a exigência de nacionalidade brasileira para a pesquisa e para a lavra das jazidas minerais, apelidou-o de “lei cipó”.

Ilustração de Alex Kidd para a Ilustríssima
Ilustração - Alex Kidd
A legislação, porém, ao definir empresas nacionais como “sociedades organizadas no Brasil”, sem restrição de nacionalidade dos acionistas, possibilitava que companhias estrangeiras fossem até proprietárias de empresas nacionais.
Lobato usou essa brecha para organizar no Brasil sociedades com capital estrangeiro, como foi o caso da Amep (Aliança Mineração e Petróleos), que consolidou a união entre o autor-empresário e os alemães. Ele não permitiria que o petróleo brasileiro ficasse exclusivamente com o truste americano Standard Oil-Royal Dutch , que o escritor imaginava estar por trás do imbróglio, sem oferecer uma concorrência mínima.
Crítico da exclusividade da pesquisa e da lavra das jazidas de petróleo por empresas brasileiras, Lobato avaliava, simultaneamente, que empresas americanas buscavam abarcar terras no Brasil com o propósito de garantir prioridade no futuro (Isso não aconteceu, uma vez que, em 1953, todas as atividades de pesquisa, exploração, refino e transporte de petróleo no Brasil tornaram-se monopólio da União, o que vigorou até 1997.)
Lobato julgava necessária a diferenciação entre acordo e entreguismo. Ele cobrava que Getúlio Vargas priorizasse os interesses do Estado brasileiro, inclusive em longo prazo.
O escritor era um cidadão inconformado que não desistia de exercer seus direitos políticos, um intelectual apaixonado que caminhava rumo a seu propósito, atuando nas mais diversas áreas: alimentava debates na imprensa, discursava acerca da importância dos empreendimentos nacionais, realizava prospecção de petróleo, escrevia artigos e livros sobre o tema e dedicava-se visceralmente aos “bastidores do petróleo”, pela intensa troca de cartas, buscando os mais diversos arranjos políticos e comerciais.
Mais que um escritor, Monteiro Lobato era um intelectual apaixonado e devoto do poder da literatura e dos livros. Cabe aqui uma reflexão sobre o essencial papel que o verdadeiro pensador desempenha no processo de desenvolvimento de uma população. O intelectual que fala com todos é essencial em tempos obscuros.
Homens e mulheres como Monteiro Lobato, Sérgio Buarque de Holanda, Rachel de Queiroz, Anísio Teixeira, Bertha Lutz, Antonio Candido, Paulo Freire, Conceição Evaristo, Milton Santos, entre tantos pensadores, são, antes de mais nada, cidadãos brasileiros inconformados com o que viam como injustiças, diante do que canalizaram suas angústias na desafiadora tarefa de colocar seus contemporâneos a pensar a respeito de dimensões fundamentais da existência humana em uma sociedade política.
Uma dessas incursões de Lobato é narrada em uma comovente carta de 1º de maio de 1935 a Frankie. Ao lamentar a ignorância de deputados e senadores sobre a questão do petróleo e abrir mão de seus direitos autorais para distribuir livros sobre o tema no Congresso, afirma convicto, ainda que magoado, que apenas o livro seria capaz de levar lucidez à cena: “O livro [‘A Luta pelo Petróleo’] é que vai abrir os olhos dessa gente, mostrando a significação do petróleo. Ninguém sabe. Este país é uma burrada imensa...”.
Em 1937, com uma nova Constituição, as regras para a pesquisa e a lavra das jazidas minerais ficaram ainda mais enrijecidas em relação à nacionalidade das empresas. Fechou-se a brecha da lei de 1934, estabelecendo-se claramente que apenas brasileiros ou empresas constituídas no Brasil, com sócios brasileiros, poderiam participar das atividades mineradoras.
Era um “balde de água fria” nas pretensões de Lobato de se associar à empresa alemã Piepmeyer & Co. para ter a chance de, como empresário, explorar o subsolo de seu país.
Meses à frente, porém, o decreto-lei 366, de 1938, incluiu no Código de Minas um capítulo específico, declarando que “todas as jazidas de petróleo e gases naturais acaso existentes no território nacional pertencem aos Estados ou à União, a título de domínio privado imprescritível”. Tratava-se do primeiro documento federal abordando especificamente o petróleo que, contudo, segundo o governo, ainda “não existia”.
Mas em 1939, há 80 anos, num rompante de deboche aos laudos do DNPM, o petróleo brotou no bairro de Lobato, em Salvador, na Bahia. No ano seguinte, o novo Código de Minas manteve o dispositivo de 1934.
A incansável atuação na Campanha do Petróleo colocou Monteiro Lobato em choque com o governo de Getúlio Vargas, o que levou à prisão do escritor de janeiro a junho de 1941.
Ironicamente, enquanto Lobato estava preso, foi publicada a primeira legislação específica para o petróleo, o decreto-lei 3.236, de 7 de maio de 1941.
Em 1946, nova Constituição restabelecia a brecha para que estrangeiros pudessem atuar como sócios em empresas de mineração, nos moldes do que vigorava em 1934. No entanto, o Código de Minas de 1940 não foi modificado, mantendo a restrição a estrangeiros. O artigo que continha tal limitação foi somente revogado pelo Senado em 1964, após acórdão do STF, liberando empresas estrangeiras como acionistas de empresas de mineração no Brasil.
O tempo da vida, contudo, nem sempre é o tempo da política. Na madrugada de 4 de julho de 1948, vítima de um derrame, Monteiro Lobato morreu em São Paulo, sob comoção de todo o país.
Quase duas décadas mais tarde, em 1967, foi promulgado o Código de Minas que vigora até hoje, com algumas modificações implementadas por meio de leis específicas. A lei estabeleceu que a pesquisa e a lavra de jazidas podem ser realizadas por brasileiro ou por sociedade organizada no país como empresa de mineração. Esta é definida como firma ou sociedade constituída e domiciliada no país, cujos componentes podem ser pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras.
Desta forma, o código de 1967 oficializou a abertura das atividades de mineração no Brasil a empresas estrangeiras, o que já vigorava desde 1964. Hoje, de acordo com dados do extinto DNPM, operam no Brasil cerca de 9.000 empresas de mineração.
Em 2015, a legislação de lavra voltou a ganhar notoriedade no cenário brasileiro. Um crime ambiental comprometeu para sempre o distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, Minas Gerais: a barragem de rejeitos da mineradora Samarco (que tem como sócias a brasileira Vale e a anglo-australiana BHP Billiton) rompeu, matando o rio Doce, soterrando famílias e animais, levando doenças e impregnando de barro os olhos de um país inteiro, que assistia incrédulo à tragédia.
Vieram à baila, desde então, discussões sobre a responsabilidade das mineradoras na lavra das jazidas minerais. Em 2017, por meio da medida provisória 790, o governo federal tentou introduzir modificações ao Código de Minas, como a inclusão de “responsabilidade do minerador pela recuperação ambiental das áreas impactadas” e a obrigação do titular da concessão de “observar o disposto na Política Nacional de Segurança de Barragens”.
Após meses de discussão no Congresso, a MP recebeu 250 emendas e se transformou em um projeto de lei de conversão (PLV 39), que, depois de várias sessões sem ser apreciado, foi retirado de pauta, fazendo com que a MP caducasse. Mesmo após a tragédia, a burocracia tornou inerte o primeiro movimento positivo, em anos, na legislação de lavra.
Na esteira dos fatos, no final de 2018, o decreto 9.406 foi publicado, regulamentando a lei do Código de Minas de 1967. Parte do decreto é uma reedição de artigos da MP 790, já que o PLV 39 ainda não foi apreciado pelo Congresso Nacional. Tudo foi parar em alguma gaveta.
Para a desolação do país, 2019 ainda não completou seu primeiro trimestre e já acumula uma sequência de tragédias, inaugurada pela quase inacreditável catástrofe de Brumadinho, pouco mais de três anos após Mariana. As notícias dão conta de centenas de mortos e desaparecidos, mas sabemos que, na verdade, são milhares de vidas humanas e não humanas interrompidas ou impactadas pelo mar de rejeitos e descaso da mineradora Vale.
A sensação de entreguismo do Brasil também marca nossos dias. Estamos inertes? Estamos já nos esquecendo? Quase um século se passou desde que Monteiro Lobato usou de todas as suas armas para se opor à burocracia institucional que opera na máquina política brasileira. De lá para cá, pouco ou nada mudou: medidas provisórias caducam, projetos de lei são engavetados e boa parte dos governantes ainda ignoram os assuntos sobre os quais legislam.
O texto, a luta, a persistência e a indignação de Monteiro Lobato escaparam aos clichês de sua época, e a originalidade de sua obra ainda hoje continua a nos falar. É este também o papel da literatura: ao nos envolver em um mundo que não parece nossa realidade, leva-nos a reavaliar o mundo em que vivemos.
Talvez nos falte essa indignação visceral.

Kátia Chiaradia, doutora em teoria e história literária pela Unicamp, e pós-doutoranda na Uerj.
Ilustração de Alex Kidd, artista gráfico.

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