quinta-feira, 14 de março de 2019

Socialismo versus subir na vida sem ajuda, Paul Krugman, FSP

O que Ivanka Trump não sabe sobre mobilidade social

Se você é como eu, deixar de falar sobre Donald Trump por algum tempo cairia bem. Por que não falar de Ivanka Trump, em lugar disso? O fato é que recentemente ela disse algo que pareceria notável vindo de qualquer político republicano, mas pareceu realmente espantoso, vindo da primeira filha.
O assunto em discussão era uma proposta, parte do Green New Deal, de que o governo ofereça uma garantia de emprego aos trabalhadores dos Estados Unidos. Ivanka Trump desancou a ideia, afirmando que os americanos "querem trabalhar pelo que têm", que eles desejam viver em um país "onde exista o potencial de subir na vida".
É claro que a declaração de Ivanka foi um caso gritante de falta de autocrítica: poucas coisas são mais absurdas do que ouvir um sermão sobre a importância da autonomia vindo de uma herdeira cuja estratégia de negócios consiste de mercadejar o nome de seu pai. Mas deixemos de lado o aspecto pessoal. Sabemos muita coisa sobre mobilidade social, em diversos países, e os fatos não são aqueles que os republicanos gostariam de ouvir.
Ivanka Trump, filha do presidente dos EUA, Donald Trump
Ivanka Trump, filha do presidente dos EUA, Donald Trump - Leah Millis /Reuters
A observação crucial, baseada em quantidade cada vez maior de pesquisas, é que, em termos de mobilidade social, os Estados Unidos são uma verdadeira exceção –ou seja, se saem excepcionalmente mal. Os americanos cujos pais têm renda baixa apresentam probabilidade maior de ter renda baixa, e sua probabilidade de chegar à classe média ou à classe alta é inferior à encontrada entre pessoas na mesma situação em outros países ricos. E as pessoas que nascem afluentes também apresentam probabilidade maior de manter seu status.
É claro que essa não é a forma pela qual gostamos de nos ver. Na verdade, existe uma desconexão clara entre a realidade e a percepção: a probabilidade de que um americano considere que sua sociedade é caracterizada por grande mobilidade social é muito mais alta do que a probabilidade de que um europeu pense o mesmo sobre a sociedade de seu país. Mas a realidade é que os Estados Unidos mostram menos mobilidade social positiva do que os países europeus.
Boa parte dessa interpretação parecer ter por base esforços sistemáticos de desinformação. Em alguns lugares, os membros da elite se vangloriam de sua linhagem, mas nos Estados Unidos eles gostam de fingir que se fizeram por esforço próprio. Por exemplo, grande número de americanos aparentemente acredita que Donald Trump é um "self-made man".
De qualquer forma, a mobilidade social excepcionalmente baixa dos Estados Unidos se distingue de sua desigualdade de renda excepcionalmente alta, ainda que as duas coisas certamente sejam correlatas. Nos países avançados, existe uma forte correlação negativa entre desigualdade e mobilidade, às vezes descrita como a "curva Grande Gatsby". Isso faz sentido. Afinal, grandes disparidades nas rendas dos pais tendem a se traduzir em grandes disparidades nas oportunidades de que seus filhos desfrutam.
E, aliás, as pessoas parecem compreender esse ponto. Muitos americanos não sabem o quanto nossa sociedade é realmente desigual; diante dos fatos da desigualdade, a probabilidade de que eles associem o sucesso pessoal a vir de uma família rica aumenta muito.
De volta ao "potencial de ascensão social": onde as pessoas de origens pobres ou modestas têm mais oportunidade de avançar? A resposta é que a Escandinávia lidera os rankings, embora o Canadá também se dê bem. E veja só: os países nórdicos não só têm baixa desigualdade como também têm governos muito maiores, e redes de seguridade social muito mais extensas, do que os nossos. Em outras palavras, eles têm o que os republicanos denunciam como "socialismo" (o que não é verdade, mas isso pouco importa).
E a associação entre "socialismo" e mobilidade social não acontece por acidente. Pelo contrário: ela é exatamente o que seria de esperar.
Para entender o motivo, coloque a situação no contexto americano e se pergunte o que aconteceria caso ou a ala direita do Partido Republicano ou a ala progressista do Partido Democrata pudesse implementar sua plataforma na íntegra.
Se o pessoal do Tea Party conseguisse o que quer, veríamos cortes drásticos no programa federal de saúde Medicaid, na assistência alimentar e em outros programas que ajudam os americanos de baixa renda –o que, em muitos casos, deixaria as crianças de baixa renda com nutrição e serviços médicos inadequados. Também veríamos cortes nas verbas de educação pública. E na ponta oposta da escala, veríamos cortes de impostos que elevariam a renda dos ricos, e a eliminação do imposto sobre heranças, o que permitiria que os ricos transmitissem suas fortunas integralmente aos seus filhos.
Em contraste, os democratas progressistas apelam por um sistema universal de saúde, assistência ampliada aos pobres, e programas que ofereçam ensino superior gratuito ou no mínimo subsidiado. Eles apelam por programas que ajudem os pais de renda baixa e média a obter serviços de qualidade para seus filhos. E propõem bancar esses benefícios com impostos mais altos sobre as altas rendas e as grandes fortunas.
Assim, qual dessas duas agendas tenderia a perpetuar nosso atual sistema de classes, facilitando que os filhos dos ricos preservem sua riqueza e dificultando que os filhos dos pobres escapem da pobreza? Qual delas nos levaria para mais perto do sonho americano –criar uma sociedade na qual jovens ambiciosos e dispostos a trabalhar teriam uma chance decente de transcender suas origens?
Veja só, Ivanka Trump provavelmente está certa ao afirmar que a maioria de nós deseja um país em que exista o potencial de subir na vida. Mas as coisas que precisamos fazer para garantir que sejamos o país que queremos  –as políticas associadas a um nível elevado de mobilidade social positiva, em todo o mundo– são exatamente as coisas que os republicanos denunciam como socialismo.
 
The New York Times, tradução de Paulo Migliacci
Paul Krugman
Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

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