domingo, 24 de junho de 2018

Recalibrando o superego, FSP (sobre a russa)

Recalibrando o superego

Diferentemente dos tempos pré-big brother, hoje tudo é gravado e a ofensa ganha gravidade

Especula-se que a megafauna nas Américas foi extinta porque os bichos não souberam adaptar-se à mudança ambiental que ocorreu com a chegada do homem ao continente. Por não ter desenvolvido medo de humanos, os animais se tornaram presas fáceis e acabaram caçados até a extinção.
Algo parecido, ainda que com consequências menos dramáticas, acontece agora com humanos que não conseguem adaptar-se à chegada de celulares e redes sociais. Numa era em que tudo é registrado para sempre e divulgado “urbe et orbi”, as pessoas continuam se comportando como se estivessem frequentando ambientes de semiconfidencialidade em que as palavras são efêmeras.
O caso da garota assediada por brasileiros na Rússia é um bom exemplo. Estou certo de que, em Copas do século passado, alguns de nossos compatriotas fizeram essas mesmas brincadeiras idiotas. Mas, como esses eram tempos pré-big brother, tudo morria ali mesmo.
Hoje, como tudo é gravado, a própria ofensa ganha gravidade, pois não dá mais para esquecer o ocorrido, que pode ganhar audiência global. Pior, ficou fácil para as vítimas descobrir o que foram levadas a dizer, de modo que o assédio, que talvez não se configurasse enquanto elas ignoravam o sentido das palavras, se materializa de modo mais inequívoco.
A situação dos algozes não é muito melhor. Em muitos casos, eles se expõem voluntariamente à sanha vingadora que irá sujeitá-los a sanções sociais, quando não penais, por vezes mais gravosas que o erro cometido. A visibilidade desses casos é tamanha que a própria sociedade fica com a percepção, não necessariamente correta, de que vivemos tempos de completa barbárie.
Para não terminar como a megafauna americana, as pessoas precisam ajustar seus superegos à nova realidade em que a maior parte das nossas palavras e ações são públicas. Ou, alternativamente, podem, como eu, dispensar o celular e as redes sociais.
Hélio Schwartsman
É bacharel em filosofia e jornalista. Na Folha, ocupou diferentes funções. É articulista e 

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