Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo
13 Junho 2018 | 02h00
Apenas cinco anos passados e nossa memória já perde os fatos em névoas. No mês de junho de 2013, o Brasil assistia, entre medo e entusiasmo, às manifestações que espocavam em todos os lados. Era um fenômeno novo e com contornos imprecisos. Não havia uma liderança clara, inexistia uma pauta unificada, nada de lemas como “Igualdade, Liberdade e Fraternidade” ou “Todo Poder aos Soviets”. O elemento detonador eram os 20 centavos do aumento das passagens de ônibus. Havia representantes da alta classe média, anarcopunks, direita, esquerda, grupos sindicais (alguns hostilizados pelos manifestantes) e um amálgama amorfo impossível de ser compreendido em bloco.
Anunciava-se que haveria uma manifestação na Paulista, por exemplo. A notícia voava pelas redes sociais e as concentrações humanas aumentavam de forma rápida. Reproduziam parte do movimento que foi às ruas pela deposição do ex-presidente Collor, porém, naquela ocasião, havia uma meta muito definida (e vitoriosa). Sim, houve os 20 centavos, mas era claro que muitos manifestantes não estavam ali por esse motivo. Eram dias de profunda insatisfação, porém o inimigo não estava tão claro.
O movimento tinha dado mostras de algo novo nas prévias ocorridas no início do ano em Porto Alegre e Natal. Na primeira semana de junho a maior cidade do País tinha vivido uma onda crescente de protestos. A repressão violenta conseguiu o efeito oposto: os manifestantes aumentaram muito e o Brasil inteiro passou a se pronunciar nas ruas. Variaram as faces da insatisfação: em Fortaleza aparecia a pauta da explosão da violência urbana; depois surgiu a luta contra os gastos da Copa, contra a PEC 37 e contra a “cura gay”.
Cartazes erguidos mostravam a percepção dos jovens: “Saímos da internet”. Era a transformação, do ativismo de sofá pela luta real nas ruas. Analistas estavam atônitos e, sem ideias claras sobre o processo, falavam muito mais do que o normal. Para mim, o momento mais simbólico foi a tomada do prédio do Congresso Nacional pela multidão. Impossível não pensar nas jornadas de outubro de 1789: o povo de Paris invadindo Versalhes, retomando o que tinha sido construído com seu sacrifício. A semelhança era mais romântica do que real.
Junto à pauta variada e sem muito foco, emergia a violência. Mascarados, encapuzados e outros espalhavam o terror quebrando vitrines, depredando transportes públicos. Excessos aumentavam também do lado dos mantenedores da ordem pública. O jornalista Piero Locatelli foi detido pelo crime quase “hediondo” (mas não previsto em nenhum código) de portar uma embalagem com vinagre. Como o líquido pode ser usado para atenuar os efeitos do gás lacrimogêneo, o porte da embalagem suspeita foi suficiente para o ato policial.
O medo aumentava. Bastava uma manifestação ser anunciada para o comércio fechar, deixando a área quase como um cenário pós-guerra nuclear. Provocadas por ativistas autônomos ou estimuladas por pessoas que desejavam o fim do movimento, as violências afastaram a classe média do movimento. A imprensa cobrou o fim da violência e, tão rapidamente como tinham iniciado, as manifestações encerraram. “O gigante acordou”, anunciaram muitos cartazes. Aparentemente, o colosso voltara a deitar no berço esplêndido, plácido e por toda a eternidade. Como o historiador Christopher Hill transcrevera dos documentos da Inglaterra do século 17, a ilha da Grã-Loucura voltava a ser a ilha da Grã-Bretanha. O mundo voltou aos trilhos, os políticos a suas práticas e a Copa ocorreu com todas as previsíveis roubalheiras. Vieram mais manifestações em 2015, desta feita com uma cara mais definida: uma onda amarela pedindo o fim da corrupção e o impeachment de Dilma. O resto é história... em curso.
O que resta de uma grande mobilização? Se formos pessimistas ou mesmo conservadores, quase toda revolução é seguida de uma enorme repressão e de governos ainda piores do que aqueles derrubados. O czar era um tirano? Sim, mas Stalin tornou os Romanov quase vaquinhas de presépio. Caiu a Bastilha em nome da liberdade e, com muita luta, os franceses conseguiram 16 anos de tirania completa de Napoleão, seguida da restauração Bourbônica. A opressão francesa sobre Saint-Domingue (atual Haiti) era terrível. A revolução negra que pôs fim ao controle de Paris sobre a ilha não inaugurou uma era dourada de paz e de prosperidade. Reina aqui o julgamento de Edmund Burke: a ruptura de uma ordem mediante a violência quebra o pacto de todo o presente entre o legado recebido e o futuro compromissado. Revoluções seriam danosas a longo prazo, pensava o autor de Reflexões sobre a Revolução na França, em 1790.
As percepções de Burke são muito instigantes, todavia parecem conduzir a uma crença mágica na transformação do mundo como se fosse um processo vitorioso por osmose ou decurso de prazo. Os homens fazem história, porém não a fazem do jeito que querem, pensava um alemão nascido há 200 anos. O que derivou, historicamente, das jornadas de junho de 2013? A resposta é complexa.
O Brasil que emergiu daquela data continua corrupto, politicamente desorientado, sem uma grande crença popular nos caminhos da democracia pelo voto e uma desesperança em 2018 que, talvez, seja maior do que a de 2013. Envelhecemos cinco anos e experimentamos a corrupção da esquerda e da direita. Os vinte centavos foram eclipsados por bilhões de dólares. Os valores explodiram e a ideia de futuro esgarçou-se. Caminhões pararam e muitos pediram intervenção militar. Creio que nos aproximamos do príncipe de Lampedusa: “É preciso mudar alguma coisa para que tudo permaneça como sempre esteve”. Como curar o cinismo fruto de experiência real e concreta da repetição? Boa semana para todos os esperançosos e para os desiludidos.
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