Ao longo das últimas décadas, o Brasil foi se dando conta da tragédia em torno dos números da segurança pública no país. Crimes em uma espiral crescente de casos, relatos cada vez mais frequentes de mortes violentas e cenas de medo e terror foram se tornando banais no cotidiano. Fomos nos acostumando com números superiores aos de guerras abertas e conflitos étnicos no mundo afora. A violência foi se transformando em uma das principais preocupações da população brasileira e um dos principais motores políticos da atualidade.
E, não à toa, em um momento de profunda crise de legitimidade das instituições democráticas, nos tornamos presas fáceis de grupos que exploram o fato de que os brasileiros estão sedentos por uma perspectiva de ordem que sinalize um projeto de mudança efetiva para uma vida melhor e tentam vender sua fé na violência como forma de governar e de impor ordem ao “caos” que se transformou o Brasil.
O problema é que, como tenho destacando em vários espaços, convivemos faz anos com uma espécie de vendeta moral e política que nunca tem fim e que parece ganhar cada vez mais adeptos ao reverberar ódios, preconceitos e intolerância. A violência é, se olharmos por trás dos números do medo e da violência, uma permanente marca societária do país e é um dos principais entraves para um novo e virtuoso modelo de desenvolvimento para o Brasil.
E como chegamos até aqui? Com décadas e décadas relegando o tema à terceira divisão das prioridades políticas e institucionais ou, pior, lidando com ele como uma pauta quase que exclusivamente policial. Nesta seara, por sua vez, pouco fizemos para ajustarmos as polícias, em termos normativos e de doutrina, à ordem social democrática inaugurada pela Constituição de 1988 (a legislação que organiza a estrutura das Polícias Militares, por exemplo, ainda é do começo dos anos 1980).
Com isso, em meio à “guerra às drogas” inaugurada na década de 1970 e à caça aos “delinquentes”, nossas políticas criminais e penitenciárias obsoletas não priorizam a prisão de matadores e outros autores de graves e violentos crimes e transformam prisões em celeiros descontrolados de facções. O país pouco fez nos últimos anos para mudar os padrões operacionais das polícias baseados na lógica do enfrentamento ao criminoso e do cartório burocrático que rege os inquéritos policiais.
Contraditoriamente, o Poder Público gasta energias, recursos e esforços, mas não chegamos a lugar algum. Há muito sendo feito, porém com baixa eficiência e efetividade. Cada instituição da área vai tocando suas ações na esperança de que, em algum momento, as coisas se resolvam. No máximo, quando surgem episódios agudos de crises penitenciárias, de greves de policiais ou de fortes confrontos entre gangues/organizações criminosas por controle de territórios, recorremos às Forças Armadas como bálsamo caro e tópico.
É fato que vários têm sido os programas e iniciativas de redução dos crimes violentos tentados pelas Unidades da Federação que, em um primeiro momento, conseguem frear a escalada de mortalidade violenta. Porém, basta uma nova crise ou uma mudança política, tudo volta sempre ao ponto do nosso eterno recomeço. Falta-nos capacidade coordenação federativa e republicana da área e, por esta razão, não temos nenhuma governança sobre as respostas públicas frente ao crime, à violência e ao medo.
Enquanto vemos atônitos o crescimento do movimento em defesa de uma intervenção militar e o percentual de intenções de votos do pré-candidato Jair Bolsonaro, que se esforça para ser o “salvador da pátria” de plantão, a segurança pública não é reconhecida como agenda prioritária no debate político brasileiro. Ficamos surpresos a nos dar conta que chocando o ovo da serpente do autoritarismo.
Tudo isso para dizer que, se o Brasil não encarar de frente o drama da violência e não construir um novo projeto político e institucional para a segurança pública do país, não só veremos as tentações autoritárias crescerem, como correremos sérios e reais riscos de retrocessos civis, políticos, sociais. Nas próximas postagens, a ideia é tentar apresentar e analisar muitas das propostas cidadãs de mudanças. Há outras opções e soluções. Precisamos acreditar e nos mobilizar, sem inocência mas com base em evidências e na agenda de direitos civis, humanos e sociais.
E, para concluir, ao falar de propostas cidadãs de transformação, eu queria de iniciar o blog fazendo um tributo a Paulo de Mesquita Neto, cujo falecimento completou 10 anos no final de março último. Paulo Mesquita foi pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência, da USP, e, junto comigo, José Marcelo Zacchi, Elizabeth Leeds e Josephine Bourgois, ajudou a fundar o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Mas o ponto mais importante da trajetória pública de Paulo Mesquita é que ele foi um dos mais ativos defensores da ideia de modernização cidadã da segurança pública brasileira, pela qual não há nenhuma oposição entre defender enfaticamente direitos humanos e valorizar políticas públicas efetivas e transparentes de prevenção da violência e controle do crime. Em uma era de ódio, polarizações e ressentimentos, Paulo e sua serenidade faz muita falta!
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