domingo, 29 de dezembro de 2013

O exemplo uruguaio - MARIO VARGAS LLOSA


O Estado de S.Paulo - 29/12

Foi muito feliz a revista The Economist ao declarar o Uruguai "o país do ano" e qualificar como admiráveis as duas reformas liberais mais radicais tomadas em 2013 pelo governo do presidente José Mujica: o casamento gay e a legalização e regulamentação da produção, venda e consumo de maconha.

É extraordinário que ambas as medidas, inspiradas na cultura da liberdade, tenham sido adotadas pelo governo de um movimento que, originalmente, não acreditava na democracia, mas na revolução marxista-leninista e no modelo cubano de autoritarismo vertical e de partido único. Desde que subiu ao poder, o presidente Mujica, que em sua juventude foi um guerrilheiro tupamaro, assaltou bancos e passou muitos anos na cadeia, onde foi torturado durante a ditadura militar, tem respeitado escrupulosamente as instituições democráticas - a liberdade da imprensa, a independência dos poderes, a coexistência de partidos políticos e eleições livres - assim como a economia de mercado, a propriedade privada, estimulando os investimentos estrangeiros.

A política desse simpático velhinho estadista, que fala com uma sinceridade insólita num governante, embora isso signifique equivocar-se de vez em quando, vive de maneira muito modesta em sua chácara nos arredores de Montevidéu, e viaja em classe econômica, conferiu ao Uruguai uma imagem de país estável, moderno, livre e seguro, o que lhe permitiu crescer economicamente e avançar na justiça social, estendendo os benefícios da liberdade em todos os campos, e vencendo as pressões de uma minoria recalcitrante da coalizão.

É preciso lembrar que o Uruguai, diferentemente da maior parte dos países latino-americanos, cultiva uma antiga e sólida tradição democrática, a ponto de, quando eu era criança, o pais oriental ser chamado de "a Suíça da América" em razão da força de sua sociedade civil, da firmeza da legalidade e de suas Forças Armadas respeitadoras de governos constitucionais. Além disso, principalmente depois das reformas do "battlismo", que reforçaram o secularismo e criaram uma poderosa classe média, a sociedade uruguaia tinha uma educação de primeiro nível, uma vida cultural muito rica e um civismo equilibrado e harmonioso, invejado por todo o continente.

Lembro de como fiquei impressionado ao conhecer o Uruguai em meados dos anos 60. Um país onde as diferenças econômicas e sociais eram muito menos cruas e extremas do que no restante da América Latina, e no qual a qualidade da imprensa escrita e radiofônica, seus teatros, livrarias, o alto nível do debate político, sua vida universitária, artistas e escritores - e principalmente, o punhado de críticos e a influência que eles exerciam - e a liberdade irrestrita que se respirava em toda parte o aproximavam muito mais aos países europeus mais avançados do que aos seus vizinhos, não parecia um dos nossos. Ali descobri o semanário Marcha, uma das melhores revistas que conheci, e que se tornou para mim desde então uma leitura obrigatória para me pôr a par do que acontecia em toda a América Latina.

Sombras. Entretanto, essa sociedade que dava ao forasteiro a impressão de estar se afastando cada vez mais do Terceiro Mundo e a se aproximar do Primeiro, já naquele tempo começava a deteriorar-se. Porque, apesar de tudo o que de bom acontecia ali, muitos jovens, e alguns não tão jovens, sucumbiam ao fascínio da utopia revolucionária e iniciavam, segundo o modelo cubano, as ações violentas que destruiriam a "democracia burguesa" para substituí-la, não pelo paraíso socialista, mas por uma ditadura militar de direita que lotou os presídios de presos políticos, praticou a tortura e obrigou muitos milhares a se exilar.

A fuga de talentos e dos melhores profissionais, artistas e intelectuais do Uruguai naqueles anos foi proporcionalmente uma das mais cruciais que um país latino-americano jamais experimentou ao longo da história. Entretanto, a tradição democrática e a cultura da legalidade e da liberdade não se eclipsou totalmente naqueles anos de terror. Com a queda da ditadura e o restabelecimento da vida democrática, floresceria novamente, com maior vigor e, diria até, com uma experiência acumulada que educou tanto a direita quanto a esquerda, vacinando-as contra as ilusões de violência do passado.

De outro modo, não teria sido possível que a esquerda radical, que com a Frente Ampla e os tupamaros chegasse ao poder, desse mostras, desde o primeiro momento, de um pragmatismo e espírito realista que permitiu a convivência na diversidade e aprofundou a democracia uruguaia em lugar de pervertê-la. Esse perfil democrático e liberal explica a valentia com que o governo do presidente Mujica autorizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo e converteu o Uruguai no primeiro país do mundo a mudar radicalmente sua política frente ao problema da droga, crucial em toda parte, mas particularmente agudo na América Latina. Trata-se de duas reformas muito profundas e de amplo alcance que, segundo as palavras da Economist, "podem beneficiar o mundo inteiro".

O casamento entre pessoas do mesmo sexo tende a combater um preconceito estúpido e a reparar uma injustiça em razão da qual milhões de pessoas padeceram (e continuam padecendo na atualidade) injustiças e discriminação sistemática, desde a fogueira da inquisição até o cárcere, a perseguição, a marginalização social e violações de toda ordem.

Em relação às drogas, predomina ainda no mundo a ideia de que a repressão é a melhor maneira de enfrentar o problema, embora a experiência tenha demonstrado até o cansaço, que, apesar da enormidade de recursos e esforços investidos em reprimi-la, sua fabricação e consumo continuam aumentando em toda parte, engordando as máfias e a criminalidade associada ao narcotráfico. Nos nossos dias, esse é o principal fator da corrupção que ameaça as novas e antigas democracias e vai enchendo as cidades da América Latina de pistoleiros e cadáveres.

Será bem-sucedida a corajosa experiência uruguaia da legalização da produção e consumo da maconha? Seria muito mais, sem dúvida nenhuma, se a medida não fosse restrita a um único país (e não fosse tão estatista), mas compreendesse um acordo internacional do qual participassem tanto os países produtores como os consumidores. Mas, mesmo assim, a medida afetará os traficantes e portanto a criminalidade derivada do consumo ilegal, e demonstrará com o tempo que a legalização não aumenta notoriamente o consumo, apenas num primeiro momento, embora, desaparecido o tabu que costuma prestigiar a droga junto aos jovens, tenda a reduzi-lo.

O importante é que a legalização seja acompanhada de campanhas educativas - como as que combatem o tabagismo ou explicam os efeitos prejudiciais do álcool - e de reabilitação, de modo que quem fuma maconha o faça com perfeita consciência dos que fazem, como ocorre hoje em dia, os que fumam tabaco ou bebem álcool. A liberdade tem seus riscos, e os que creem nela devem estar dispostos a corrê-los em todos os campos, não apenas no cultural, no religioso e no político. Foi o que entendeu o governo uruguaio, e devemos aplaudi-lo por isto. Esperemos que outros aprendam a lição e sigam seu exemplo. / TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA

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