segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Terro(tu)ristas

Na Agência, o analista Anyone agradece ao Facebook por ter inventado um sistema tão perfeito: a informação que antes eles tinham de se matar para conseguir agora as pessoas postam felizes, por vontade própria

28 de dezembro de 2013 | 16h 00

Juan Pablo Villalobos
Esta história começa quando A olha uma foto da montanha K2 no Facebook. Usamos A em vez do nome verdadeiro, para respeitar, pelo menos, esse pequeníssimo detalhe de sua privacidade. Com a foto, uma frase: "As montanhas não são justas ou injustas, são simplesmente perigosas".
Alerta! Estaria ocorrendo um complô gay-latino-americano-magrebino? - Tiago Queiroz/Estadão
Tiago Queiroz/Estadão
Alerta! Estaria ocorrendo um complô gay-latino-americano-magrebino?
Foto e frase foram postadas por B, que, pelo visto, aprecia as montanhas, mas não a propriedade intelectual: ele não diz quem é o autor da frase. Alguns dos seus "amigos" no Facebook, os que não o conhecem na "vida real" poderiam pensar que a frase é de B e que B, na vida real, escalou a K2 e, quando chegou ao pico, foi inspirado por esse pensamento.
Contudo, B é um tipo sedentário, não escalou a K2 nem saiu de sua cidade nos últimos três anos. O que faz soar o alarme em Algum Lugar do Império. E também o fato de A, que gostou muito da foto e da frase, ter feito um clique no "Curtir" do Facebook. Na verdade, ele foi o único a curtir a foto.
Tudo parece tremendamente suspeito. Para começar, porque A e B vivem em cidades diferentes e, segundo os registros armazenados no Sistema em Algum Lugar do Império, há dez anos não se viam. Há três questões gravíssimas que podem resultar numa Ameaça à Segurança Nacional. A Segurança Nacional do Império, claro, a única que importa.
Primeira questão, A e B se conheceram em Porto Alegre (são brasileiros), no Fórum Social Mundial, esse covil de rebeldes de diversas espécies. Segunda, a montanha K2 está localizada na fronteira entre Paquistão, Caxemira e China. Nas chamadas "Áreas do Norte" do Paquistão, Gilgit-Baltistan, um barril de pólvora cercado por montanhas cheias de neve. Aliás, só há duas coisas por ali: turistas e terroristas. O terceiro problema é retórico: o uso da dicotomia justiça/injustiça. A clássica retórica anti-imperialista.
Os alarmes disparam em Algum Lugar do Império. A e B são turistas potenciais ou terroristas reais? Seja qual for a resposta, é urgente fazer alguma coisa. Ou detê-los imediatamente para torturá-los e extrair informações sobre seus planos terroristas ou começar um ataque em massa de propaganda de pacotes de viagem "tudo incluído" à Cordilheira do Himalaia.
Quem vai decidir? Um analista do Sistema, que chamaremos de Anyone. A e B são latino-americanos e isso deixa Anyone na defensiva: ele conhece muito bem o rancor terceiro-mundista acumulado nesses países. Um rancor que tem como alvo os mesmos países visados pelos terroristas. Anyone é especialista em rancores latino-americanos, por isso o alerta foi passado a ele e não a outro dos milhares de Anyones que administram o Sistema. É a pessoa perfeita para o caso: não pode esquecer quando, no 11 de Setembro, estudante de intercâmbio num país da América Latina, viu as Torres Gêmeas tombarem entre as risadas e aplausos de muitos estudantes universitários. A aliança do rancor entre a América Latina e os terroristas lhe parece perfeitamente possível. E mais: está esperando por ela há anos. Assim, Anyone suspende o que estava fazendo (seguindo a pista de uma jovem na Guatemala que tem visitado, obsessivamente, websites de artesanato nepalês, um deles pertencente a uma ONG financiada por um obscuro emir do Catar, e o de um ancião na Venezuela. Oh! Venezuela! E ela ainda tuitou uma frase de Yasser Arafat de 1963). Ele começa a nova investigação.
Não foram trocados e-mails entre A e B. A usa o Twitter, B não. B usa o Google +, A, não. O rastreamento do restante dos subsistemas (YouTube, Flickr, Instagram, Candy Crush, Match, Ashley Madison, etc.) não informa nada interessante. No momento, o único vínculo entre ambos é o Facebook. Anyone volta a pensar, e pensa nisso sempre, que o Sistema não conseguiu inventar nada mais perfeito que o subsistema do Facebook: a informação que antes tinham que se matar para conseguir agora as pessoas postam felizes, pela própria vontade.
Anyone constrói o perfil de A com o método multiplataformas, ou seja, com informações obtidas em todos os subsistemas: A tem 31 anos, é mestiço, heterossexual, casado, um filho de 2 anos, formado em comunicação, trabalha em uma agência de publicidade. E seguem todos os dados de contato, marcas favoritas de chocolate e de xampu, etc.
O perfil de B: 32 anos, branco, homossexual (alerta!), solteiro, sem filhos, formado em jornalismo, doutor em antropologia social (alerta!) viveu cinco anos em cidades diferentes de dois continentes (alerta!), trabalha como freelancer para diferentes revistas e jornais (alerta!), etc.
A e B são amigos do Facebook há apenas 11 meses. Por quê? Por que retomaram o contato agora, se se conhecem há dez anos? Isso sim é interessante: se algo deve ocorrer, algum plano do qual participam, esse plano está em curso. Vejamos. Amigos em comum... Bingo! Entra em cena W. H., um tunisiano que vive... no México! Numa cidade da fronteira! Mas que diabos faz um tunisiano no México? Quantos tunisianos há no México? Quantos tunisianos podem estar no México por razões normais?
Anyone envia o alarme para o nível seguinte. Um tunisiano que vive na fronteira do México conectado com brasileiros "interessados" no Paquistão é algo que ultrapassa suas funções. Mas não vamos deixar de lado uma informação importantíssima: Anyone acaba de ser premiado por localizar um caso com coincidências suficientes para ser passado para o nível seguinte.
O alerta chega então a outro analista, mais qualificado. Digamos que se chame Somebody.
Humm... A análise do mural no Facebook de W. H. revela que ele teve uma atitude ambivalente com relação à Primavera Árabe. Às vezes estava a favor, às vezes contra, de vez em quando se mostrava moderado, ou então conservador; outras vezes, radical... Parecia querer aparentar ser uma pessoa normal! Terrivelmente suspeito. E o que foi fazer no México? Ah! W. H. queria viver em liberdade sua preferência sexual (tem um namorado mexicano que conheceu na Europa).
A grande pergunta é: onde A, B e W. H. se conheceram?
Somebody inicia o programa que cruza informações de geolocalização histórica. Eureka! Be W. H. fizeram juntos o seminário "Memória e Holocausto" na Universidade Autônoma de Barcelona há sete anos. Somebody se pergunta se isso justificaria convocar seu contato no Mossad, serviço secreto israelense (uma maneira de ganhar um dinheirinho extra, mas ninguém precisa saber).
Aparentemente, A e W. H. não se conhecem pessoalmente e são amigos no Facebook por intermédio de B, o amigo comum.
Pois bem, quem é W. H.? Somebody lê o perfil preparado por Anyone: 29 anos, magrebino (alerta!) homossexual (alerta!), etc. W. H. esteve no Paquistão há um ano.
Será um complô gay-terrorista-latino-americano-magrebino?
Esse assunto não se insere na área de Somebody, pois a confluência de mais de duas marginalidades como origem de uma conspiração é uma questão de alto nível. O caso terá de ser enviado para uma esfera superior, onde outro analista, digamos... Someone, será o responsável.
Somebody, claro, acaba de ganhar também uma bonificação (paga, adivinhem, com o dinheiro dos contribuintes).
Quando Someone recebe o dossiê, os acontecimentos se precipitam: agora é A que posta no Facebook a foto de uma montanha no Paquistão. Dessa vez ela não está acompanhada de uma frase, somente a imagem da montanha com neve. Bonita, não? Someone espera, com os nervos à flor da pele, um sinal para interpretar o significado dessa atividade. Não precisa esperar muito: B clica em "Curtir" e, 20 minutos depois, W. H. clica também!
Someone monta uma pasta com todas as informações, comprime-a, codifica e a envia ao diretor do Sistema, que a envia imediatamente ao diretor da Agência, o Secretário da Defesa. No dia seguinte ela chega às mãos do Presidente do Império.
Há uma agitação sobrenatural, como se tivesse aparecido um fantasma, não o fantasma do comunismo, mas a temida aliança do rancor terceiro-mundista latino-americano com o terrorismo árabe e a vingança de gênero! Os criptógrafos não descansam até desentranhar o malévolo plano oculto atrás desse jogo complicadíssimo de postar fotos e "curtir".
O Secretário da Defesa não tem dúvida quanto ao que é preciso fazer e o Presidente o apoia: enviar de imediato três drones para sobrevoar as cabeças dos terroristas, três drones que seguem o sinal de GPS dos iPhones dos três desgraçados.
Agora tudo depende do Presidente do Império: uma ordem sua e A, B e W. H serão liquidados.
O Presidente do Império pensa nas consequências diplomáticas. Não gostaria de ter de usar seus queridos drones em países amigos. Como ele gosta de seus drones! Quanta afeição tem pelos bichinhos voadores! Mas nesse caso a dúvida persiste: que incômodo vai ser para a presidenta brasileira! E faria tudo para não ter de falar por telefone com o presidente mexicano, que o deixa tão nervoso com seu blá-blá-blá incompreensível!
Senhor Presidente, temos uma janela de cinco minutos, diz o Secretário da Defesa como se fosse um ator de Homeland.
Alto!, grita outro Someone, alto! Observamos uma atividade significativa na rede: B acaba de entrar na internet, no website de uma agência de turismo especializada em viagens ao Himalaia. O Facebook anuncia que B está navegando ali e A o contatou imediatamente pelo bate-papo: "Está pretendendo ir? Eu também! Estou economizando há anos". W. H. posta uma mensagem no mural de B: "Fui no ano passado, não perca essa oportunidade".
Não eram terroristas, eram turistas!
O Presidente ordena que os drones voltem para casa (ele sente falta de seus pequeninos). O Secretário da Defesa olha para o diretor da Agência como se acabassem de ter um coitus interruptus.
Antes de sair da sala de comando, o Presidente quer saber em que estado está o PUIIFC (Protocolo de Uso de Informação Irrelevante com Fins Comerciais). Cem por cento em andamento, senhor Presidente, responde o diretor do Sistema. Prove que é verdade, retruca o Presidente, não perca de vista esses indivíduos. O Presidente faz menção de sair, mas retorna e acrescenta: não gosto desse tunisiano no México, pobrezinho! Se quer realmente viver em liberdade, tragam-no para cá. Como queira, senhor Presidente, responde o Diretor da Agência.
Para sua surpresa e deleite, nos dias seguintes A e B começam a ver banners por toda a internet com ótimas ofertas para viajar ao Himalaia. Recebem e-mails personalizados de agências de viagens e empresas aéreas. O banco os avisa que ampliou o limite de seus cartões de crédito.
Semanas depois, A e B partem de férias para o Paquistão (férias felizes, vigiados em segredo por agentes do Mossad).
W. H. recebe uma oferta de trabalho em São Francisco.
Anyone, Somebody e Someone cobram suas bonificações.
O orçamento do Sistema, da Agência e da Secretaria da Defesa aumenta graças aos magníficos resultados do PUIIFC.
O Presidente ordena a compra de mais drones (um para entregar pizza na Casa Presidencial).
E todos foram felizes para sempre.
JUAN PABLO VILLALOBOS, ESCRITOR MEXICANO, É AUTOR DE FESTA NO COVIL E SE VIVÊSSEMOS EM UM LUGAR NORMAL (COMPANHIA DAS LETRAS)

TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
 

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