Em novo livro, o filósofo húngaro István Mészáros descreve a ‘produção destrutiva’ de nossos dias
21 de dezembro de 2013 | 16h 01
Ricardo Antunes
Um olhar cuidadoso neste século, que também inaugurou um novo milênio, mostra um cenário tenso, turbulento, atormentado, em que os levantes, as revoltas e as rebeliões, mais ou menos contingentes ou duradouros, estão em todos os quadrantes do mundo.
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Lukács: Pensador marxista ressurge para decifrar o ser social na vida cotidiana
A destruição da vida cotidiana, o desmonte do que é público, a "comoditização (palavra que está sendo dicionarizada em muitos cantos) de tudo que pode virar mercadoria, pouco importando se é material ou imaterial, desde que seja lucrativo, tudo isso tem constituído o solo social onde florescem as manifestações multitudinárias e plebiscitárias que povoam as praças públicas.
O trabalho, por exemplo, que nasceu com a humanidade para possibilitar a reprodução societal, evapora-se. Num movimento em que até o reino da irracionalidade fica embasbacado, muitos trabalham como loucos, sem serem capazes de distinguir onde está o espaço público e o privado. Os que continuam no labor diário não têm hora para começar e nunca sabem se vão findar o dia com trabalho garantido amanhã. Para não parecer exagero, basta olhar a Europa de nossos dias, Grécia, Espanha, Portugal, Itália, puxando o trem da tragédia. Somam-se, então, às centenas de milhões que perambulam como catadores de qualquer trabalho, lutando para não engrossar as fileiras dos desempregados globais.
A destruição monumental da natureza, o aquecimento global, amplificado pelo pré-sal, tudo é muito diferente do que Schumpeter chamou de destruição produtiva, assemelhando-se ao que o filósofo István Mészáros (cujo livro O Conceito de Dialética em Lukács acaba de ser publicado pela Boitempo2) rebatizou, há décadas, como produção destrutiva.
No universo da reprodução societal, onde se desenvolvem as possibilidades mais intersubjetivas, próprias do convencimento, da interação (como a educação, a comunicação, o direito, entre tantos outros momentos da esfera reprodutiva), essas se tornam cada vez mais vilipendiadas. O que era - ou deveria ser - comum, de uso livre das comunidades, privatiza-se.
Dizem também que as ideologias desapareceram, mas uma análise com um mínimo de atenção demonstra que a denominada tese do fim das ideologias é a expressão mais viva de como o verossímil é capaz de se tornar escandalosamente falso.
E se isso já não bastasse, acrescentaram que o mundo maquínico, da era informacional-digital com seu "admirável mundo do não trabalho, da plenitude e da felicidade", faria evaporar as alienações e os estranhamentos originados no mundo industrial.
Pois bem, essa nossa digressão inicial vem a propósito da recente publicação do segundo volume de Para uma Ontologia do Ser Social (Boitempo), obra de maturidade do filósofo marxista György Lukács. Depois de exercitar sua crítica lógico-ontológica ao neopositivismo, ao existencialismo e de apresentar sua verdadeira (re)descoberta da ontologia materialista de Marx (presentes no primeiro volume), Lukács parece ressurgir das cinzas, ajudando a decifrar os complexos categoriais decisivos do ser social em sua vida cotidiana: o trabalho, a reprodução, o momento ideal (e a ideologia) e o estranhamento. Se a elaboração tem a marca do filósofo, sua lupa filosófica olha o mundo real, descortinando seus pontos cardeais.
O filósofo húngaro recuperou a dialética do trabalho, contra as unilateralizações que reduziram o trabalho estritamente a sua dimensão alienada, típica do capitalismo; mostrou, entretanto, que a atividade humana efetivada pelo trabalho está presente na gênese do ser social, no seu ir-sendo e no vir-a-ser. O reino eurocêntrico de uma sociedade sem trabalho fica reduzido a um conto da carochinha.
Na primorosa linhagem aberta por Marx - junto com Hegel e distante de Weber, com quem Lukács conviveu intelectualmente em sua juventude - Lukács pode demonstrar que, mesmo quando assume a forma alienada, o trabalho não consegue eliminar cabalmente sua dimensão de atividade vital, uma vez que o trabalho abstrato subordina o trabalho concreto, mas não pode extingui-lo. Mas nosso filósofo nunca deixou de assinalar que um trabalho autônomo e livre, dotado de sentido humano-societal, é ontologicamente incompatível com a vigência do capital.
Depois de oferecer um desenho analítico denso para uma melhor compreensão do fenômeno social da reprodução e da ideologia, Lukács volta suas baterias para compreender o intrincado fenômeno social do estranhamento e da alienação. Com a vigência do mundo da mercadoria em sua espectral objetividade, as alienações se complexificam, apresentando-se ora como coisificações inocentes, ora como coisificações estranhadas: aquelas sendo anteriores à vigência da forma-mercadoria e essas vigorando na fase em que domina o fetichismo da mercadoria. Para se pensar as alienações e os estranhamentos de nossos dias, as pistas não poderiam ser mais seminais.
Não foi por poucos motivos, então, que István Mészáros caracterizou Para Uma Ontologia do Ser Social como a "última obra magistral de Lukács". E, no livro acima indicado - O Conceito de Dialética em Lukács, acrescentou, referindo-se ao mestre: "Independente dos limites de adaptabilidade do filósofo individual, o fato é que ele não aprende nos livros as questões importantes de sua época, mas as vive (...) se for um homem significativo. As influências, portanto, devem ser tratadas com o maior cuidado. Pois o filósofo significativo segue o conselho de Molière, colhendo "seu bem onde o encontra", e molda tudo que colheu - e não apenas encontrou - em um todo coerente que lhe é próprio". Síntese primorosa, válida para os dois mestres.
RICARDO ANTUNES É PROFESSOR TITULAR DE SOCIOLOGIA DO IFCH/UNICAMP, AUTOR DE OS SENTIDOS DO TRABALHO E COORGANIZADOR DE LUKÁCS: UM GALILEU NO SÉCULO 20 (AMBOS DA BOITEMPO)
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