FOLHA DE SP - 23/12
Como cético que sou, estou seguro de que se deve desconfiar de pessoas com bons sentimentos
Sei que a esta altura do ano nada mais se quer além de esperar que, no calor de nosso verão, se vá este ano velho e surrado. Mas, como filósofo que sou, mesmo na preguiça, penso, senão, não existo. E levo você, meu companheiro de leitura, comigo às profundezas dessa filosofia de fim dos tempos.
Quando quero falar a sério com meus alunos --agora em férias-- sobre nosso tempo contemporâneo, digo a eles que imaginem do que rirão nossos descendentes em mil anos. Não conheço ciência profética mais científica do que pensar o ridículo que encontrarão em nossas seriedades contemporâneas.
Sou homem sem causa, como sabe bem meu ilustre leitor, e, mais, duvido de todos que alguma causa defendam. Espero que recuperem a capacidade de serem canalhas honestos, e não como nós, que travestimos nossas vaidades em causas pela humanidade.
Pouco sei com segurança, depois de alguns anos e alguns poucos livros, mas, com certeza, como cético que sou, estou seguro de que se deve desconfiar de pessoas com bons sentimentos.
Rimos de nossos antepassados. Se, antes, nossos avós os consideravam dignos de reverência, agora, nós, contemporâneos, os julgamos ridículos por terem vivido antes dos tablets e do direito ao voto.
Rimos de suas crenças em deuses cabeludos, em apocalipses vindouros, em mundos imateriais. Mas, temo, rirão mais ainda de nós, esses nossos descendentes.
Rirão de nossa inútil obsessão pelo povo e sua soberania. Rirão de nossa ciência política e sua consciência histórica. Rirão de nossa certeza sobre o aquecimento dos polos e voltarão à astrologia por ser ela uma ciência mais modesta do que a do clima.
Para eles, nossos descendentes, ideias como as nossas soarão como hoje nos soa alguém crer que trovões seriam os deuses arrastando suas pedras no infinito.
Rirão de nossa obsessão em buscar pureza em civilizações mais pobres como as dos índios, que seriam mais honestos simplesmente porque nunca tiveram opção de sofisticar suas mentiras, como nós temos.
Quando pensarem em nós, esquecerão nossa tecnologia neolítica e farão seus alunos lerem livros sobre como éramos covardes e infantis. E sentirão vergonha, preferindo os gregos e os romanos, por serem mais lúcidos sobre a cegueira do destino.
Tentarão inutilmente acessar a razoabilidade de crermos que inventamos a nós mesmos e de que exista algo como "construção social do sujeito", ideia interessante, se não engraçada, mas que sustenta outra ainda mais engraçada, que é aquela que afirma a existência de uma construção social planejada de novos sujeitos.
Tendo passado por sofrimentos atrozes que os esperam, sofrimentos esses criados por nós e nossas manias de luxo, saúde, direitos e democracia dos idiotas, os coitados dos nossos descendentes serão forçados a redescobrir que a vida tem dono, e que não somos nós os donos, mas sim algum espírito que, no fundo, não nos tem em alta conta, por isso, quando muito, revela sua indiferença preguiçosa para com nossa dor.
Reescreverão passagens bíblicas, porque chegarão à conclusão de que são mais certeiras do que nossa vã sociologia de macacos sem pelos.
Sua cosmologia e antropologia serão mais parecidas com aquela que afirma ser a vida uma ópera.
Sim, uma ópera, cujo libreto foi escrito por Deus e a música pelo Satanás, segundo o que nos diz Dom Casmurro, personagem atormentado pela incapacidade de determinar a verdade última acerca da fidelidade de sua mulher (talvez um dos problemas filosóficos mais sérios, muito mais do que o suicídio).
O Satanás, atormentado pela inveja de seus colegas Gabriel, Miguel e Rafael, se revoltou. Deus deixou, por preguiça, que ele levasse consigo, às profundezas do inferno, seu libreto.
Lá, tendo composto a música, criou a ópera. Voltou ao Pai Eterno, como criança escrava neurótica de seu senhor, e pediu a Deus que a executasse em seu conservatório.
Tendo negado inúmeras vezes o pedido de seu anjo angustiado, Deus acaba por autorizar a execução, mas o proíbe de fazê-lo nos céus.
Para esta tarefa, cria nosso mundo, e o dá ao nosso triste maestro.
Como cético que sou, estou seguro de que se deve desconfiar de pessoas com bons sentimentos
Sei que a esta altura do ano nada mais se quer além de esperar que, no calor de nosso verão, se vá este ano velho e surrado. Mas, como filósofo que sou, mesmo na preguiça, penso, senão, não existo. E levo você, meu companheiro de leitura, comigo às profundezas dessa filosofia de fim dos tempos.
Quando quero falar a sério com meus alunos --agora em férias-- sobre nosso tempo contemporâneo, digo a eles que imaginem do que rirão nossos descendentes em mil anos. Não conheço ciência profética mais científica do que pensar o ridículo que encontrarão em nossas seriedades contemporâneas.
Sou homem sem causa, como sabe bem meu ilustre leitor, e, mais, duvido de todos que alguma causa defendam. Espero que recuperem a capacidade de serem canalhas honestos, e não como nós, que travestimos nossas vaidades em causas pela humanidade.
Pouco sei com segurança, depois de alguns anos e alguns poucos livros, mas, com certeza, como cético que sou, estou seguro de que se deve desconfiar de pessoas com bons sentimentos.
Rimos de nossos antepassados. Se, antes, nossos avós os consideravam dignos de reverência, agora, nós, contemporâneos, os julgamos ridículos por terem vivido antes dos tablets e do direito ao voto.
Rimos de suas crenças em deuses cabeludos, em apocalipses vindouros, em mundos imateriais. Mas, temo, rirão mais ainda de nós, esses nossos descendentes.
Rirão de nossa inútil obsessão pelo povo e sua soberania. Rirão de nossa ciência política e sua consciência histórica. Rirão de nossa certeza sobre o aquecimento dos polos e voltarão à astrologia por ser ela uma ciência mais modesta do que a do clima.
Para eles, nossos descendentes, ideias como as nossas soarão como hoje nos soa alguém crer que trovões seriam os deuses arrastando suas pedras no infinito.
Rirão de nossa obsessão em buscar pureza em civilizações mais pobres como as dos índios, que seriam mais honestos simplesmente porque nunca tiveram opção de sofisticar suas mentiras, como nós temos.
Quando pensarem em nós, esquecerão nossa tecnologia neolítica e farão seus alunos lerem livros sobre como éramos covardes e infantis. E sentirão vergonha, preferindo os gregos e os romanos, por serem mais lúcidos sobre a cegueira do destino.
Tentarão inutilmente acessar a razoabilidade de crermos que inventamos a nós mesmos e de que exista algo como "construção social do sujeito", ideia interessante, se não engraçada, mas que sustenta outra ainda mais engraçada, que é aquela que afirma a existência de uma construção social planejada de novos sujeitos.
Tendo passado por sofrimentos atrozes que os esperam, sofrimentos esses criados por nós e nossas manias de luxo, saúde, direitos e democracia dos idiotas, os coitados dos nossos descendentes serão forçados a redescobrir que a vida tem dono, e que não somos nós os donos, mas sim algum espírito que, no fundo, não nos tem em alta conta, por isso, quando muito, revela sua indiferença preguiçosa para com nossa dor.
Reescreverão passagens bíblicas, porque chegarão à conclusão de que são mais certeiras do que nossa vã sociologia de macacos sem pelos.
Sua cosmologia e antropologia serão mais parecidas com aquela que afirma ser a vida uma ópera.
Sim, uma ópera, cujo libreto foi escrito por Deus e a música pelo Satanás, segundo o que nos diz Dom Casmurro, personagem atormentado pela incapacidade de determinar a verdade última acerca da fidelidade de sua mulher (talvez um dos problemas filosóficos mais sérios, muito mais do que o suicídio).
O Satanás, atormentado pela inveja de seus colegas Gabriel, Miguel e Rafael, se revoltou. Deus deixou, por preguiça, que ele levasse consigo, às profundezas do inferno, seu libreto.
Lá, tendo composto a música, criou a ópera. Voltou ao Pai Eterno, como criança escrava neurótica de seu senhor, e pediu a Deus que a executasse em seu conservatório.
Tendo negado inúmeras vezes o pedido de seu anjo angustiado, Deus acaba por autorizar a execução, mas o proíbe de fazê-lo nos céus.
Para esta tarefa, cria nosso mundo, e o dá ao nosso triste maestro.
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