segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Impressões


Entrevista com o fotógrafo Claudio Edinger, autor do livro 'De Bom Jesus a Milagres'

01 de fevereiro de 2014 | 17h 10

Christian Carvalho Cruz - O Estado de S. Paulo
No livro De Bom Jesus a Milagres, o fotógrafo Claudio Edinger se resume: "Sou filho de alemão com russo, judeu que cresceu cercado de amigos católicos, economista apaixonado por fotografia, carioca que viveu a vida toda em São Paulo e, a partir de 1976, passou 20 anos em Nova York – sempre o estrangeiro!" Em 2001, ao voltar da temporada americana, quis fotografar o Rio para "redescobrir o que é ser brasileiro" e onde – aqui – é o seu lugar. Ali estaria a base das imagens com foco seletivo que o alçariam ao cume do mercado brasileiro de fotografia autoral. Uma obra de Edinger hoje pode valer R$ 45 mil.
 - Claudio Edinger
Claudio Edinger
Nesse caminho de procuras, ele foi se despindo do estilo documental (os judeus ortodoxos do Brooklyn, os loucos do Juqueri, os doidões do Chelsea Hotel...), dos trabalhos editoriais e publicitários, para se cobrir com o que sempre sonhou: a fotografia como arte. O sentimento de estrangeiro ajuda a iluminar o caminho percorrido. Se não havia um mundo pra ele no mundo, ele inventou um mundo – desfocado, poético, aconchegante. Primeiro usou uma câmera que produz negativos de 10 cm por 12,5 cm. Agora obtém o mesmo efeito fotografando com câmera digital e manipulando as imagens no computador, reconstruindo-as. É disso que ele trata na entrevista a seguir.
Você me dizia que a fotografia é a nova pintura e o fotógrafo, o novo pintor, se referindo à grande arte dos séculos passados. Polêmico.
A fotografia foi inventada por pintores (Daguerre, Niepce, Fox-Talbot, Bayard e Florence) para auxiliá-los em seu trabalho. Ela é filha da câmera obscura, utilizada por Rembrandt, Caravaggio, Ingres. Edgar Degas era também fotógrafo. Pois o que foi inventado para auxiliar, a partir do meio do século 19, com gênios como Matthew Brady, Muybridge, Julia Margaret Cameron, Disderi e Nadar, foi se tornando protagonista. Hoje não existe um grande museu que não tenha um importante departamento de fotografia, sem falar nos mais de cem museus de fotografia no mundo todo. Fotos de US$ 1 milhão hoje são lugar-comum. A cada dia aparecem trabalhos fotográficos autorais extraordinários, como em nenhuma outra arte. E estamos apenas começando.
Para alguns, a fotografia se distingue da pintura por ser mais fiel à realidade.
Mas que realidade? A do fotógrafo? A do fotografado? A do espectador? Realidade não existe. Pelo menos não uma só. Susan Sontag escreveu que a realidade de uma foto é mais real que a própria realidade. Ou, como disse o (filósofo inglês) Francis Bacon, a função do artista é aprofundar o mistério. O real não é real.
O alemão Andreas Gursky é o autor da foto mais cara da história: um panorama do Rio Reno vendido por US$ 4,3 milhões. Como em outros trabalhos dele, essa imagem foi inteirinha montada, juntada, manipulada, criada no computador. Aí já não é demais?
A fotografia autoral, que é a que figura nas maiores galerias, bienais, museus e leilões, divide-se em duas partes. A capturada e a construída. As duas caminham lado a lado criando múltiplas subdivisões, mais ou menos como aconteceu com a pintura depois do impressionismo, com o aparecimento das diversas escolas modernas como a abstrata, a cubista, a expressionista, etc. A utilização ou não de tratamentos digitais é só uma das técnicas utilizadas nas muitas escolas de imagem que temos hoje. Manipulada toda foto sempre foi. O filme fotográfico, e agora o chip, não vê as coisas como vemos, ou como sonhamos. Então temos que adequar o meio ao nosso olhar ou à nossa imaginação.
Um lado curioso é que, nesse caso, a tecnologia não democratiza a fotografia. A torna, isso sim, para deleite de poucos.
Como a pintura, ou a literatura, a fotografia nunca foi e nem será democratizada. Só por que você tem o Word no computador não significa que possa escrever um romance. Vale o que dizia Degas: "Se você não sabe pintar, pintura é a coisa mais fácil que existe (é só pegar uma tela, um pincel e tinta e pintar). Mas se você sabe, pintura é praticamente impossível".

Uivos da desigualdade

Sérgio Augusto - O Estado de S. Paulo
Os dados são estarrecedores. Ano passado, a riqueza mundial bateu um recorde: US$ 241 trilhões. Se dividida igualitariamente, daria US$ 51.600 por pessoa. Essa partilha sempre foi injusta, mas não na escala atual, com 86% da riqueza nas mãos dos 10% mais ricos do planeta, razão pela qual tanto se tem falado ultimamente na questão da desigualdade social. E, ressuscitando Thornstein Veblen, no consumo conspícuo da classe ociosa e dos crupiês do cassino financeiro, onipresentes na mídia, na ficção e nas telas.
Di Caprio como Belfort, flagrado no seu hobby favorito: jogar dinheiro fora - Divulgação
Divulgação
Di Caprio como Belfort, flagrado no seu hobby favorito: jogar dinheiro fora
Gordon Gekko e seu deletério mantra ("A cobiça é saudável"), Jordan Belfort, o lobo de Wall Street, rasgando dinheiro e financiando a miséria alheia – perto desses, Jay Gatsby, que aliás viveu mais próximo da idade de ouro econômica escrutinada por Veblen, não passava de um romântico e inofensivo playboy, de um ocioso do bem. Às vezes desconfio que até (ou sobretudo) em ostentação ele perderia para os super-ricos do capitalismo globalizado. Com seu estilo de vida obscenamente perdulário, gastando a rodo, comprando à la louca bens e serviços supérfluos e hiperinflacionados, a nova safra de estroinas zilionários (emergentes russos, chineses e africanos, petroarcas do Oriente Médio, socialites, herdeiros e empresários deslumbrados, celebridades do esporte e do show business) tem sempre um espetáculo deprimente a nos oferecer. E uma plateia cativa de panacas para incentivá-la com sua atenção e inveja.
Iates transatlânticos, Lamborghinis folheados a ouro (pela bagatela de US$ 7,5 milhões), relógios de pulso cravejados de diamantes que dariam para comprar uma ou duas Mercedes, apartamentos de US$ 90 milhões em Manhattan, despesas de hotéis astronômicas (sai por $ 15 mil dormir uma noite na cobertura do Fairmont de São Francisco em que JFK faturou MM), festas extravagantes (brasileiros já gastaram US$ 30 mil com aniversários de criança no Plaza de Nova York) – uma desfaçatez atrás da outra, entusiasticamente cobertas e atualizadas pelo canal de notícias sobre negócios CNBC, que, não satisfeito em abrigar em seu blog um "editor de riqueza", Robert Frank, lançou há dez dias uma série bajuladora sobre "a vida secreta dos super-ricos", cujo prefixo musical é uma exaltação ao dinheiro e ao poder.
A desigualdade social foi tema recorrente no recente Fórum Econômico de Davos, nas exortações do papa Francisco e no último discurso sobre o Estado da Nação de Obama. Frequentemente o encontramos inflamando discussões de economistas, analistas e políticos mundo afora. Seu corolário, a redistribuição da riqueza, arrematou a mensagem do papa à elite econômica reunida em Davos ("que a humanidade seja mais servida pela riqueza, não dominada por ela") e vive indispondo Obama com o mumificato republicano no Congresso e seus papagaios na mídia, que, ou desconversam, erguendo a bandeira da "mobilidade social", ou apelam para a ignorância, acusando o presidente de socialista, de incitar uma "guerra de classes", só porque ele acredita que os podres de ricos (1% da população, os chamados one-percenters) devem ser taxados para facilitar a mobilidade dos milhões de americanos que já vivem abaixo da linha de pobreza.
Com as disparidades de renda existentes, priorizar a mobilidade social não chega a ser uma utopia conservadora; é, na melhor das hipóteses, um insulto à inteligência, um perverso faz de conta, um repelente ideológico-partidário para manter intocado o bem-bom de uma plutocracia obcecada pelo crescimento econômico a qualquer preço, que aceita o PIB como a métrica que determina o progresso social. Como é dessa plutocracia que vem o grosso da grana para as campanhas eleitorais de republicanos e democratas, afora outras benesses, esse nó não desata.
Em sua edição de 24 de janeiro, o Wall Street Journal estampou uma carta indignada do financista Thomas Perkins, em que o nababo do Vale do Silício comparava a taxação progressiva dos ricaços aventada pelo governo Obama à "Noite dos Cristais" (quando nazistas alemães e austríacos depredaram sinagogas e lojas de judeus, em 1938) e acusava o presidente de demonizar e perseguir quem tem muito dinheiro, uma repetição da atoarda de outro prócer do "dinheiro organizado", Stephen Schwarzman, que há quatro anos comparou as propostas para eliminar as brechas fiscais que haviam facilitado o colapso financeiro de 2008 (custo para cada americano: U$ 120 mil) à invasão da Polônia pela Alemanha nazista.
Sem se dar ao trabalho de esclarecer que Obama não é Hitler, nem Lenin, o Nobel de Economia e colunista do New York Times Paul Krugman caiu na pele de Perkins e suas paranoias. Livrou a cara dos que outrora chamavam de "capitães da indústria", pois afinal movem a economia, descarregando sua ira sobre os "wheeler-dealers", os especuladores, a súcia do dinheiro-que-só-produz-dinheiro, cujo cinismo Tom Toro tão bem retratou dia desses num cartum para a revista New Yorker, em que um ricaço propõe a outros dois que tomem uma dose de champanhe Clos de Vougeot Grand Cru ’88 toda vez que Obama se referir à "desigualdade de renda" no discurso sobre o Estado da Nação.
Não deu nem para esvaziar metade da garrafa de champanhe. Obama, infelizmente, tampouco é Franklin Roosevelt.

No fio da navalha ( sobre a polícia brasileira)


'Problema maior da polícia brasileira é a mentalidade militar de reagir à violência com violência', diz estudioso americano

01 de fevereiro de 2014 | 16h 46

Lúcia Guimarães - O Estado de S. Paulo
A conduta do Departamento de Polícia de Nova York, o NYPD, foi um tema central da campanha política de 2013 e ajudou a eleger o prefeito Bill de Blasio. Não foi, portanto, surpresa a decisão que De Blasio anunciou na quinta-feira: a cidade vai indicar um monitor para o NYPD e dar fim à disputa judicial de 14 anos sobre a prática de stop and frisk, deter e revistar, que uma juíza considerou altamente discriminatória contra minorias. O novo prefeito cumpriu uma promessa de campanha e espera autorização judicial para chegar a um acordo com os nova-iorquinos que processaram a cidade por se sentir intimidados pela polícia.
Nos EUA, o erro mais frequente é o motivado por discriminação - Jason Redmond/Reuters
Jason Redmond/Reuters
Nos EUA, o erro mais frequente é o motivado por discriminação
Desde o 11 de Setembro, a questão do policiamento em Nova York pode se confunde com o terrorismo e serve de licença para suspender críticas aos excessos. "Terrorismo é a palavra mágica", diz Paul Chevigny, professor emérito da Escola de Direito da New York University. Ele é autor, entre outros, do clássico Poder da Polícia, Abusos Policiais em Nova York (1969). A pedido da organização Human Rights Watch, Chevigny produziu o estudo Abusos Policiais no Brasil (1990) e, em 1995, publicou O Fio da Navalha - Violência Policial nas Américas, em que dedica um capítulo à polícia de São Paulo. Chevigny acha que a polícia de Nova York, embora cometa erros e injustiças, é competente para lidar com multidões, uma experiência que acumulou a partir dos protestos contra a Guerra do Vietnã, na década de 1960. "Quando querem", diz ele, "agem com eficiência e correção." Na entrevista a seguir ele faz também uma avaliação das polícias brasileiras, que conhece de perto.
O sr. está surpreso com as manifestações no Brasil, já que não visita o País desde os anos 1990?
Não. O que temos é a clássica revolução das expectativas elevadas. O PT fez um bom trabalho, aumentando o grau de consciência dos brasileiros sobre seu direito de protestar contra o governo e eles não esperam ser reprimidos. O público está se comportando diante da desigualdade como se esperava. O motivo dos protestos do ano passado, contra o preço das passagens de ônibus, é típico. São pequenas questões econômicas como essas que servem de impulso para grandes protestos. Eu li que agentes da polícia teriam se infiltrado nas manifestações. Considero isso grave. Mas se o Fabrício Chaves, baleado na semana passada, enfrentou policiais com um canivete, a polícia não cometeu crime ao atirar nele, ainda que possa ter agido de maneira incompetente.
Como se policia multidões sem violência?
Sou um libertário, defensor dos direitos civis. Acredito que a polícia deva ser mais competente na coleta de informações, na inteligência. Monitorar uma multidão, tirar fotos, se forem autorizadas, identificar quem está se misturando a um protesto para se aproveitar e começar um quebra-quebra. E, da próxima vez, a polícia pode isolar os violentos. Mas isso é trabalho intenso. Não dá para policiar uma manifestação, se surpreender com a violência e sair prendendo indiscriminadamente. O protesto seguinte vai ser pior, os manifestantes vão ter mais raiva da polícia e se tornar alvo da violência.
Seria mais fácil municipalizar a polícia?
Não acho que a questão mais importante seja a polícia ser ou não controlada pelo governo do Estado. É ser militar. É a mentalidade militar, de reagir à violência com violência, ou como eu tanto ouvia, "acabar com os vagabundos". Lembro das manifestações contra o presidente Collor, as primeiras em larga escala desde o fim da ditadura. Foram pacíficas. Eu estava acompanhado de um ex-oficial da polícia numa delas e ele ficou de queixo caído: "Nunca vi nada parecido no Brasil". Havia um clima de festa e unidade contra o presidente.
O sr. testemunhou tolerância social à violência da polícia de São Paulo?
Esse é o problema. Parte da população espera que o controle social seja feito através da violência. Quando fazia pesquisa no Brasil, perguntava: "E o problema da violência policial?" Cientistas sociais respondiam: "Ninguém se importa". Violência policial não é um tema de protesto social no Brasil. Quantas vezes ouvi "ladrão tem que morrer". Apesar da democracia, a noção da sociedade liberal não parece se estender ao policiamento. Então, quando a polícia mata a sociedade encara isso como um preço a pagar. É absurdo. O dever da polícia é proteger e salvar vidas, não ser dura. E junte-se a isso a desconfiança de que a lei não se aplica a todos. Quando trabalhei no Brasil, a polícia sabia que eu era adversário dela, estava lá para investigar seu trabalho e eles me tratavam muito bem. Afinal, eu era um "doutor."
Por que os americanos querem bem, de maneira geral, às suas polícias?
Os casos de violência grave não são tão comuns. O fato de que são polícias municipais faz com que a população pense mais no policial como "um de nós", não um agente de um Estado distante. Mas aqui há divisões. A polícia de Nova York é bem mais apreciada do que a de Los Angeles. Você vê um policial nova-iorquino falando com uma criança, ele é afetuoso. Eu não acho que policiais americanos, a não ser o desequilibrado, uma exceção, acreditem que cabe a eles matar um bandido só porque ele é bandido. Eles acreditam que seu papel seja proteger a população e só atirar sob ameaça. A cultura policial que vi no Brasil, a do "pode atirar, esse cara não vale nada", não prevalece aqui. A polícia nos Estados Unidos mata porque a ação é justificada ou porque cometeu um erro sério de avaliação: o negro estava ameaçando a mulher branca. E depois descobrem que o sujeito nem estava armado. É o erro motivado por discriminação. Isso acontece, sim, com frequência.