terça-feira, 14 de outubro de 2025

Jerson Kelman - O Congresso Nacional e a reforma do setor elétrico, FSP

 Mostrei na coluna anterior que o setor elétrico caminha por uma rota insustentável, que provavelmente resultará em apagões recorrentes, elétricos e/ou econômicos.

Embora as soluções técnicas sejam conhecidas há muito tempo, o Congresso insiste em aprovar leis que mantêm, e às vezes expandem, subsídios desnecessários, que só agravam o problema. O entrave para a solução não é de natureza técnica, mas política. A reforma do setor exige um pacto político que resgate a governança técnica, esvaziando o poder de lobbies atuantes no Congresso.

Terminei a coluna de forma pessimista, afirmando que só um milagre fará com que o Congresso deixe voluntariamente o exercício do poder do "varejo regulatório", abstendo-se de tratar de assuntos da alçada legal da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), sem a contrapartida de ser responsabilizado pelas consequências de decisões equivocadas. Disse também temer que o milagre só ocorrerá depois de um colapso. Mas que torço para estar errado.

Barragem de concreto com várias comportas verticais e grandes tubulações metálicas inclinadas na parte inferior. Estruturas de andaimes e guindastes indicam obras ou manutenção em andamento. Vegetação e construções pequenas aparecem em primeiro plano.
A Usina Hidrelétrica (UHE) Belo Monte, no rio Xingu, no Pará - Joédson Alves - 8.jan.25/Agência Brasil

Como é preciso indicar o que fazer, não apenas anunciar a proximidade do desastre, apresento telegraficamente dez providências que a meu juízo deveriam constar da reforma, sem a pretensão de que a lista seja exaustiva e consensual.

1) Extinguir ou vetar subsídios que não foram determinantes para a decisão de investir (por exemplo, a extensão de prazo do Proinfa).

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2) Transformar encargos de "custos de energia" em "custos de conexão à rede", cobrados de forma justa e transparente de todos os consumidores, livres ou cativos, com ou sem geração distribuída (GD).

3) Encurtar os prazos para redução dos benefícios da GD, estabelecidos na lei 14.300/2022.

4) Adotar leilões tecnologicamente agnósticos para a "compra" de atributos (energia, potência, flexibilidade, inércia...) necessários à confiabilidade do sistema elétrico, em substituição aos leilões fragmentados por fontes.

5) Criar as condições para que o despacho resulte de ofertas de venda de energia (quantidade e preço) para cada hora (ou fração), feitas por consórcios de geradores.

6) Reforçar os sinais locacionais para atrair consumo onde sobra energia e atrair geração onde falta.

7) Criar tarifa de energia quase nula com duração predefinida (por exemplo, cinco anos) para novas megacargas cujo consumo ocorra apenas nas horas com sobra de energia (mineração de bitcoins?).

8) Fazer com que os custos sistêmicos causados por novas megacargas que necessitem suprimento 24x7 (por exemplo, data centers) sejam arcados por elas mesmas.

9) Expandir os programas de gestão da demanda.

10) Diminuir a influência política na seleção de diretores da Aneel, submetendo os candidatos ao escrutínio de comissão técnica de seleção, formada por profissionais de notória experiência.

A medida provisória 1.304 e suas 245 emendas tangenciam alguns desses assuntos, inegavelmente complexos. O parlamentar que desejar votar alinhado com o interesse público deveria conhecer o quanto antes a opinião de instituições técnicas, isentas de influências lobistas.

No mesmo diapasão, o eleitor que quiser votar mais conscientemente nas próximas eleições deveria conhecer o posicionamento sobre esse tema do parlamentar que mereceu o seu voto na última eleição.

Hélio Schwartsman - Ideias sagradas, FSP

 O Uruguai está a um passo de aprovar uma lei de eutanásia. Um dos argumentos usados pelos que se opõem à proposta, notadamente os religiosos, é que a autorização legal para antecipar a morte erode a ideia de que a vida é valiosa e deve ser preservada. Haveria um prejuízo social nessa desvalorização da vida.

Essa família de argumentos não é exclusividade do pensamento conservador. A esquerda recorre a eles com frequência quando defende proibições a fim de evitar a "normalização" de alguma conduta que ela julga reprovável.

A imagem mostra a bandeira do Uruguai em primeiro plano, com suas listras brancas e azuis e o sol radiante. Ao fundo, destaca-se um edifício icônico de Montevidéu, que é o Palacio Salvo, com sua arquitetura distinta e torre. O céu está parcialmente nublado, criando um contraste com os elementos da cidade.
Câmara do Uruguai aprovou eutanásia com regra que prevê revisão médica em caso de divergência; Senado avaliará texto nesta quarta (15) - Eitan Abramovich /AFP

Um exemplo? Parte dos progressistas considera que piadas preconceituosas devem ser proibidas mesmo que contadas num auditório fechado e só para quem queira ouvi-las. Apesar de, nesse cenário, as piadas não produzirem vítimas diretas, o simples fato de elas serem contadas contribuiria para normalizar o preconceito. Não vou negar que tais efeitos existam. Nós vemos como aceitável justamente aquilo que pensamos que todo mundo faz. Não é uma coincidência que as palavras "ética" e "moral" sejam formadas a partir das raízes grega e latina para o termo "costume".

Reluto, porém, em comprar a conclusão de que ideias que consideramos importantes, seja a do valor da vida humana, seja a da necessidade de combater o preconceito, devam ser protegidas de contestação, erosão ou mesmo ataques.

Como bom liberal, penso que ideias são sempre "fair game" (alvo legítimo). O Estado e a polícia só devem intervir quando uma disputa entre duas ou mais pessoas sai do campo das ideias e das palavras e ganha contornos físicos. Ok. Ameaças, incitações e manipulações claras também podem exigir repressão legal.

O ponto é que, se admitirmos a canonização de ideias, tudo passa a ser sagrado. Qualquer grupo poderá cobrar estatuto de inatacabilidade a suas ideias favoritas. E, quando isso acontece, a evolução social fica mais difícil. Um bom exemplo disso é a dificuldade para legalizar a eutanásia, a meu ver o mais líquido, certo e logicamente incontestável dos direitos individuais.

Não é voto, é veto: país vai de novo votar para impedir o outro lado, Wilson Gomes, FSP

 É cada vez mais provável que a eleição de 2026 repita o padrão das duas últimas eleições presidenciais: um plebiscito em que cada eleitor decide qual lado deseja impedir que esteja no poder.

Em toda pesquisa, eleitores declaram-se fartos de tanta polarização; em todas elas, sinalizam que, no fim das contas, acabarão votando para evitar o que lhes parece o mal mais danoso. Vota-se, enfim, não para resolver problemas, mas para evitar o problema político que o lado preterido representa. Não é voto, é veto.

De um lado, quem quer impedir a volta do bolsonarismo —ainda que venha em pele de cordeiro, isto é, de Tarcísio. De outro, quem vê o lulismo como a encarnação persistente de tudo o que há de errado na política e quer afastá-lo do centro do poder.

A ilustração mostra duas figuras humanas vestidas com roupas formais, desenhadas em estilo de traço fino e cores quentes. O personagem à frente tem a cabeça substituída por uma porta de madeira com cadeado e ferrolho, simbolizando o fechamento e a desconfiança. De dentro dessa porta, quebrando parte do marco da porta, um braço verde de papel dobrado como sanfona, estende-se para fora, segurando um envelope amarelo — uma referência ao voto.  Atrás dele, outra figura observa em silêncio; no seu rosto a boca é uma fenda em forma de fechadura, reforçando a ideia de bloqueio e de segredo. A cena traduz visualmente o ato de votar não por convicção ou esperança, mas para impedir o outro lado — um voto como veto, guiado pelo medo e pela desconfiança política
Ariel Severino/Folhapress

Nisso, as grandes urgências nacionais —segurança pública, crescimento, educação, pobreza, meio ambiente— cedem lugar àquilo que hoje enche nossos olhos e monopoliza nossos afetos: evitar que "o outro lado" ameace nossa existência ou a ordem institucional.

O país merecia mais que isso? Certamente. Mas é esta a situação em que nos colocamos desde meados da década de 2010: a política, que deveria ser o instrumento para resolver problemas, passou a ser considerada o principal problema a ser reparado. Quando a política passa a se ocupar de si mesma, dificilmente se ocupa de outra coisa.

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A teoria da agenda setting ajuda a entender o mecanismo: eleições se decidem quando uma narrativa vence a disputa sobre qual é o problema mais importante do país. A partir daí, os eleitores escolhem quem parece mais capaz de enfrentá-lo. Há uma disputa para definir a agenda e outra para parecer adequado ao papel que ela exige. Em outras palavras, partidos e candidatos precisam incorporar essa agenda, oferecer perfis que pareçam talhados para enfrentá-la e convencer a maioria de que têm credenciais e histórico que os qualificam para a missão.

Nossa história eleitoral desde a redemocratização alterna dois ciclos. No ciclo material, elegemos quem parece mais apto a resolver problemas concretos. No ciclo político, votamos para neutralizar um risco trazido pela própria política.

Exemplos ajudam. Em 1989, Collor encarnou a promessa de resolver por fora o que a política não conseguia: cortar "marajás", modernizar o Estado, varrer privilégios. Era a política como vilã e o "não político" como remédio. Já em 1994 (e 1998), a agenda foi material e nítida —controle da inflação e responsabilidade fiscal—, e FHC parecia o personagem certo para a missão.

Diplomação de Fernando Henrique Cardoso e Marco Maciel, eleitos em 1998

Em 2002 e 2006, a "questão social" organizou as prioridades nacionais, e Lula ofereceu biografia e discurso ajustados à missão de enfrentar miséria, desigualdade e desemprego. Em 2010, Dilma vendeu competência de gestão e continuidade das políticas sociais. Em 2016, com o impeachment e a posse de Temer, a expectativa pública majoritária recaiu sobre reformas ("as reformas de que o Brasil precisa", dizia-se) —um retorno clássico ao ciclo material, ainda que por via do que foi, de fato, uma eleição indireta.

A inflexão vem em 2018. A antipolítica e o antipetismo dominam a pauta; vende-se um político inexpressivo como "antissistema" para, supostamente, corrigir a política por choque. A política entrou no roteiro não como solução, mas como vilã. A agenda material deu lugar à política: o problema passou a ser o próprio sistema político, seus atores e seus modos de operar. O voto deixou de responder à pergunta "quais problemas a política resolverá?" e passou a responder "como impedir que eles governem?". A política do PT era o mal maior a ser afastado.

Em 2022, o plebiscito girou o tabuleiro: votou-se para conter o estilo autoritário e inepto do bolsonarismo e restaurar alguma normalidade institucional. Em ambos os casos, decidiu-se contra alguém, não por um caminho —é o voto preventivo.

E nada indica que 2026 fugirá dessa armadilha. O que se desenha é mais um plebiscito defensivo —o medo do outro lado—, não uma escolha sobre como enfrentar os problemas que aguardam, na fila, sua vez de serem resolvidos politicamente.

O curioso é que os ciclos em que elegemos quem parece mais capaz de enfrentar problemas reais —inflação, desemprego, desigualdade, crise fiscal— costumam gerar governos de resultados. Já os ciclos em que elegemos para punir a política ou nos proteger de determinados políticos terminam, invariavelmente, em frustração e retrocesso.

Enquanto a política continuar sendo considerada o principal problema nacional, nenhuma eleição servirá para resolvê-lo.