quinta-feira, 3 de abril de 2025

A bússola e a tempestade Alexandre Marcos Pereira, APMP


 Esforço com investimento que não se controla é o maior erro.


 Talvez essa seja a frase que deveria estar escrita em letras douradas na porta de entrada de muitas empresas, lares e corações. Mas não está. Preferimos pendurar quadros com mensagens positivas, frases motivacionais como “acredite nos seus sonhos” ou “o universo conspira a favor de quem tenta”. Tudo bonito, tudo poético — mas, às vezes, perigosamente ingênuo. Sim, há um tipo de romantismo trágico nessa ideia de que tudo que se faz com amor e esforço trará frutos. Como se o destino fosse um jardineiro zeloso, recompensando quem se suja de terra. Mas a verdade é que o solo pode estar infértil, a estação errada, ou o jardineiro distraído com outra plantação. Lembro de um homem que conheci certa vez — chamemo-lo de Paulo. Tinha ele uma loja de antiguidades no centro velho da cidade. A cada peça que vendia (e isso era raro), comprava duas novas. Insistia em restaurar móveis que ninguém mais queria, em guardar cristaleiras do século XIX em um mundo que valoriza muito mais a leveza do MDF. Seu esforço era comovente. Seu amor pelo que fazia, genuíno. Mas o investimento era desgovernado, como um rio transbordando fora da margem. E, inevitavelmente, naufragou. Paulo não falhou por preguiça. Falhou por não fazer as contas. Por ignorar os sinais. Por acreditar que só o esforço bastava. E quantos de nós não somos um pouco como Paulo? Aplicamos energia em relações que já naufragaram há muito tempo, mas seguimos insistindo. Investimos tempo em projetos que nos esvaziam, mas que se tornaram parte do nosso orgulho — ou da nossa teimosia. E o mais curioso: chamamos tudo isso de persistência. Confundimos resiliência com cegueira. Existe uma beleza secreta em saber parar. Em reconhecer que o investimento está fugindo ao controle. Que o esforço, por mais nobre que seja, se transformou num sacrifício inútil. Não há vergonha alguma em recuar. Ao contrário: há sabedoria. Mas o mundo não ensina isso. Prefere os heróis que lutam até a última gota, até o último centavo, até o último suspiro. Como se a grandeza estivesse apenas na insistência. Como se só valesse a pena viver no modo épico, e não no modo lúcido. Hoje, quando vejo alguém exausto, perdido em suas tentativas, costumo perguntar: o quanto disso é real necessidade e o quanto é vaidade? Às vezes, o esforço é só um modo elegante de fugir do medo de recomeçar. De admitir o erro. De dizer: “isso não deu certo e tudo bem”. No fundo, o que nos falta não é esforço. É direção. É controle. É a capacidade de medir, de recalcular, de redirecionar. É a coragem de admitir que a energia é preciosa demais para ser gasta sem critério. Portanto, da próxima vez que você suar por algo, pare um segundo. Observe o mapa. Sinta o vento. Veja se a bússola ainda aponta para onde você queria ir. Porque remar com fervor numa direção errada só nos leva mais rápido ao abismo. E o universo, esse velho sábio distraído, talvez esteja apenas esperando você aprender a diferença entre persistência e prudência. 

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Deirdre Nansen McCloskey - Os homens do sistema não sabem, FSP

 Um otimismo maluco sobre a "política industrial" parece nunca deixar a humanidade em paz.

Nos anos 1700, o soberano inglês e o Parlamento tinham esse otimismo. Aplicaram impostos para proteger seus navios e as perturbações ligadas ao açúcar nas Índias Ocidentais. Adam Smith chamou aquilo de "sistema comercial", também conhecido como imperialismo, e escreveu longo livro em 1776, atacando-o.

Em um livro anterior, ele já havia desdenhado com razão da ideia de que a política industrial funciona para o bem. O "homem do sistema", encarregado da política, escreveu, "parece imaginar que pode organizar os diversos membros de uma grande sociedade com a mesma facilidade com que a mão organiza as diferentes peças em um tabuleiro de xadrez".

Os brasileiros infelizmente estão familiarizados com a política industrial. Mas está por toda parte essa suposição de que o "homem do sistema" sabe.

Mark Carney, por exemplo, primeiro-ministro interino do Canadá, que provavelmente terá o mandato completo após as eleições, propõe uma política industrial para alcançar a "autonomia" contra as agressões bizarras de Trump. Ele quer mover as peças de xadrez para proteger o aço e o alumínio canadenses, a fabricação de carros, a extração de madeira e vários outros produtos "estratégicos".

Carney é, ao menos na superfície, plausível, como o "homem do sistema", capaz de fazer esse trabalho. Ele presidiu o Banco do Canadá e depois o Banco da Inglaterra. Mas altos cargos na política não tornam a política industrial sensata.

Mark Carney em pub em Ontário, Canadá - Cole Burston/Getty Images via AFP

Peter Navarro, conselheiro de Trump em comércio exterior, é Ph.D. em economia por Harvard. O doutor Navarro, porém, acredita que o comércio de autopeças EUA-Canadá é ruim para os dois países.

Ele acha que o déficit da "balança comercial" que uma pessoa tem com o mercadinho do seu bairro é ruim para ela e que o papel importado do Canadá é ruim para os EUA. Ele não estudou "Introdução à Economia". Estou tentando reunir outros economistas com Ph.D. em Harvard para devolver seus diplomas em protesto contra ele.

Meu único encontro com Carney foi quando me pediram, anos atrás, para comentar uma tese sua. Fiquei surpresa com seu pequeno entendimento de economia, apesar do doutorado em filosofia em Oxford e do bacharelado no Harvard College (ele era o goleiro do time de hóquei no gelo de Harvard). Mas ele é muito bom ao articular a afirmação dos "homens do sistema" quando estes dizem saber, melhor que você, o que você deve comprar no mercadinho. As pessoas comuns têm uma fé comovente na sabedoria dos mestres. É como a fé das crianças em seus pais —até elas se tornarem adolescentes.

Brasil, Canadá, EUA, qualquer país, de Mianmar à Suécia, não se livrará das más políticas até que seus cidadãos percebam que os "homens do sistema", e mesmo a maioria das mulheres, não sabem. Por razões profundas, uma economia é imprevisível e não pode ser dirigida. Se não pode ser dirigida, uma política de direção nos levará para fora da estrada.

A melhor política é tirar o "homem do sistema" do volante. É o que Javier Milei tenta fazer aí ao vosso lado e o que o Canadá deveria fazer aqui ao meu lado.

Carta aos bispos católicos do Brasil, por Frei Betto

 O catolicismo era, no Brasil, a confissão religiosa majoritária na década de 1950, abraçada por 93,5% da população (IBGE). No censo de 2010, declararam-se católicos 64,6% da população. Os evangélicos, 30%. Em 2030, segundo prognósticos, os católicos serão de 35 a 40% da população e os evangélicos, de 38 a 40%. Enquanto os católicos declinam 1 ponto percentual ao ano, os evangélicos crescem na mesma proporção.

Por que o catolicismo retrocede? São várias as razões. A hierarquia católica cometeu dois pecados capitais nos últimos 60 anos: fragilizou o apoio às comunidades eclesiais de base  o movimento eclesial mais expressivo da história da Igreja no Brasil e de maior capilaridade nacional.

Mas o primeiro pecado foi, após o golpe militar de 1964, levar a Ação Católica à agonia e morte. Onde se encontra, hoje, o laicato participativo, crítico, apostolicamente ativo entre operários, universitários e intelectuais? Aliás, nossas universidades católicas evangelizam? Em muitas delas se formaram notórios políticos corruptos e legitimadores da opressão social.

De fato, o clero sempre temeu o protagonismo dos leigos. Devem ser apenas cordeiros cuja lã serve para ser tosquiada pelos pastores, como declarou o papa Inocêncio III.

Por que, em nossas missas dominicais em paróquias de classe média, os patrões comparecem, mas seus empregados (cozinheiras, faxineiras, porteiros de prédios etc.) vão para a igreja evangélica? Diz-se que a Igreja Católica fez opção pelos pobres, e os pobres, pelas igrejas evangélicas...

Aponto algumas causas da redução de nossa grei. Uma delas, com frequência denunciada pelo papa Francisco, é o clericalismo. Vide uma missa dominical. Tudo centrado na figura do sacerdote. Quando muito, um leigo ou leiga lê um dos textos litúrgicos. Os fiéis ignoram uns aos outros. No “abraço da paz” saúdam os vizinhos de banco sem nem sequer perguntar pelos nomes deles. Na hora da homilia, por vezes suportam a pregação aborrecida de um celebrante que nunca fez curso de oratória, não tem conteúdo (não lê e teve formação medíocre em filosofia e teologia), adota um discurso moralista. Procura se salvar com evocações emotivas porque não sabe como abastecer “as razões de nossa esperança”.

Sei que a maioria dos senhores jamais participou de um culto evangélico. Nosso ecumenismo não ultrapassa os limites de algumas igrejas protestantes históricas. O que é uma lástima. Os seminaristas não são incentivados a abraçar o diálogo inter-religioso e, em geral, têm visão preconceituosa das outras confissões religiosas. O que sabem de nossas religiões indígenas? Alguma vez foram a um terreiro de candomblé ou umbanda? Ou a um centro espírita? A maioria ignora as matrizes da religiosidade brasileira.

Se os senhores bispos fossem a um culto evangélico veriam os motivos do crescimento exponencial desse segmento cristão. Há cultos que duram duas ou três horas sem aborrecer os fiéis, ao contrário de muitas de nossas missas. Sabem por quê? Porque os fiéis têm participação ativa. Dão testemunhos de vida, vídeos atrativos são exibidos, os músicos e cantores aprimoram seus talentos, há escolas bíblicas. Os fiéis se conhecem pelo nome, o aniversário de cada um é comemorado em comunidade, há forte corrente de entreajuda (um dentista ou médico atende irmãos e irmãs). Ali as pessoas não são anônimas; ganham autoestima. Um cuida de arrumar emprego para o outro. Há entre eles forte vínculo afetivo. E a pauta de costumes leva-os a conhecer a prosperidade, pois abandonam os vícios e, assim, aumentam a poupança familiar.

Não me sinto afinado com a teologia da maioria das igrejas evangélicas, porque enfatizam mais o Antigo que o Novo Testamento; o diabo mais que Deus; o Deus da punição mais que o Deus do amor; o pecado mais que a graça. E muitas igrejas estão politicamente alinhadas ao conservadorismo, à naturalização da desigualdade social, à exaltação das riquezas. Incutem nos fiéis a “servidão voluntária”. Fazem uma leitura equivocada da Bíblia ao retirar o texto do contexto, como também acontece entre nós, católicos. Porém, conseguem criar forte senso de pertença e comunidade, imprimindo sentido à vida de todos.

Não escrevo aos senhores para suscitar espírito de competição entre igrejas. Temos muito a aprender com nossos irmãos evangélicos. Escrevo porque me inquieta o retrocesso da Igreja Católica, a perda do profetismo de nossos pastores, o esvaziamento de nossas paróquias, essa nova geração de seminaristas e padres apegada à batina, aos símbolos religiosos, às imagens sacras. Sacerdotes próximos às classes média e rica, e distante dos excluídos e vulneráveis, apegados ao conforto e à acumulação de bens. Escrevo porque sinto que Francisco, como João Batista, é um papa que clama no deserto...

Será que dentro da Igreja Católica ainda há salvação para o Evangelho de Jesus?

Deus nos encoraje e ilumine!