Um militante petista segurava o cartaz com uma palavra de ordem: “Cadeia para o general Belham”. Estava ao lado de um carro do 12.º Batalhão de PM de São Paulo, na calçada da Rua Tutóia, em frente ao prédio do 36.º Distrito Policial, onde funcionou entre 1969 e 1982 o Destacamento de Operações de Informações, o DOI do 2.º Exército. Dali sairia no fim da tarde de domingo, a 5.ª Caminhada do Silêncio, um protesto anual em memória das vítimas da violência estatal.

A 2,5 quilômetros dali, Jair Bolsonaro e sete governadores discursavam para cerca de 45 mil apoiadores na Avenida Paulista. Queriam anistia para os acusados de golpe engendrado no Palácio do Planalto que levou a Procuradoria da República a denunciar o ex-presidente e outros 32 réus, a maioria militares e policiais, e a 1.ª Turma do Supremo Tribunal Federal a abrir a ação penal contra sete deles.
O Belham do cartaz não está entre os acusados cujas condutas foram esmiuçadas pela Polícia Federal sob os olhares do ministro Alexandre de Moraes. Também não fez parte do governo Bolsonaro, mas deve ter seu destino em breve decidido pelo mesmo STF. Trata-se de José Antônio Nogueira Belham, de 89 anos, que, como major, comandara do DOI do 1.º Exército, no Rio, na mesma época em que Carlos Alberto Brilhante Ustra comandava o destacamento paulista.
Em fevereiro, uma semana antes de o filme Ainda Estou Aqui ganhar o Oscar, um grupo de jovens levara faixas até a frente do prédio, no Flamengo, no Rio, onde o general da reserva mora. Era o primeiro “escracho” da vida do militar. “Ainda estamos aqui”, diziam as faixas. Agora, em vez da alusão ao filme, nos cartazes havia o nome de Belham, personagem indissociável da história retratada na tela.
Para você

O jovem com o cartaz sobre Belham fixado em uma placa distribuía panfletos do grupo ligado à vereadora Luna Zarattini (PT), cujo avó Ricardo esteve detido no DOI antes de ser um dos 15 prisioneiros trocados pela ditadura militar pelo embaixador americano Charles Elbrick, sequestrado pela ALN e pelo MR-8. O militante petista não era o único a citar Belham ou expor seu nome no protesto, na tarde de ontem, no Paraíso, zona sul de São Paulo.
Cerca de 400 pessoas se agrupavam no pátio da delegacia, entre eles o ex-deputado federal José Genoíno (PT). “Lá (na Paulista) eles querem anistiar o capitão. Aqui, querem prender os generais.” Belham era o único general citado nominalmente nos cartazes dos manifestantes, embora faixas ao lado de Genoino pregassem “cadeia” para Bolsonaro, assim como para os “generais golpistas”.
“Aqui tem uma denúncia da tortura, da ditadura militar, que era o que os acusados no processo do Supremo queriam que voltasse”, disse o deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP), um dos parlamentares que foi à caminhada. Lá também Sâmia Bomfim (PSOL-SP), bem como o militante Leo Alves, neto do dirigente comunista Mário Alves, preso, torturado, morto e desaparecido no DOI do 1.º Exército.

Foi ali, no mesmo quartel da Rua Barão de Mesquita, que um ano depois de Alves seria igualmente torturado, morto e desaparecido o ex-deputado federal Rubens Paiva, do PTB – a psicóloga Vera Paiva, sua filha, também estava no protesto. É, justamente, aqui que Belham aparece. A denúncia do caso que envolve o militar é a mesma que levou o deputado federal Oscar Pedroso Horta, então presidente do MDB, a ler no Congresso, em junho de 1971, uma carta escrita à mão.
Ela tinha 26 páginas. Sua autora era a Cecília Viveiros de Castro, uma elegante professora de história que trabalhava no Colégio Notre Dame de Sion, no Cosme Velho, onde dava aulas para as filhas do ex-deputado. Cecília foi presa quando desembarcava do Chile, onde fora encontrar o filho Luiz Rodolfo, um militante do MR-8, que lá estava exilado. Trazia mensagens na bagagem, uma delas para Paiva.
Foi o que bastou para prenderem o ex-deputado. Cecília ouviu os gritos de Paiva e foi levada com o amigo à sede do DOI do 1º Exército. Quem estava de plantão era o tenente Antônio Fernando Hughes de Carvalho, retratado como um sádico pelos presos. Logo chegaram ali o capitão Freddie Perdigão, o Doutor Flávio, e o major Rubens Paim Sampaio, o Doutor Teixeira. Paiva foi o primeiro a ser torturado.

O que Cecília não sabia nem Pedroso Horta pôde contar é que, no meio do suplício de Paiva, dois oficiais se insurgiram: o tenente Armando Avólio Filho e o capitão Ronald José Motta Baptista Leão. Tentaram entrar na sala onde ex-deputado era interrogado, mas foram impedidos pelo major Paim. Decidiram denunciar o que estava acontecendo ao superior: o então major Belham.
“Major, é bom o senhor dar uma chegada lá na sala do interrogatório porque aquilo não vai terminar bem”, disse Avólio. Belham ficou olhando o tenente, que completou: “É o Hughes que está lá...”. O major nada fez. Avólio e Leão não desistiram. Foram procurar o comandante do Batalhão de Polícia do Exército, que funcionava no mesmo quartel do DOI, mas ele também não se moveu.
Belham saberia de tudo do que se passava e nada fizera para salvar o prisioneiro. No meio da madrugada, Paiva foi examinado pelo médico Amílcar Lobo, que constatou o abdome enrijecido, sinal de hemorragia interna, e uma possível falência hepática. O preso repetia apenas: “Eu sou o deputado Rubens Paiva”.
Décadas depois, o major Paim contou, ao depor ao Ministério Público Federal, que foi informado pelos homens do DOI que o ex-deputado sofreu um enfarte. E que eles teriam decidido fazer um “teatrinho”: simular uma fuga de Paiva para justificar seu desaparecimento. Era, nas palavras do coronel Riscala Corbage, o Doutor Nagib do DOI do 1.º Exército, mais uma “mágica” feita no destacamento.
Assim como Bolsonaro gostava de se associar à Ustra, o então deputado federal também se aproximou de Belham. Em 2003, a professora Maria de Fátima de Campos Belham, mulher do general da reserva, foi nomeada para trabalhar no gabinete do parlamentar em Brasília. Ali, anos depois, durante a inauguração do busto de Paiva na Câmara dos Deputados, Bolsonaro cuspiria nele, dizendo de Paiva: “Teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!“.
Com a morte de Ustra, em 2015 – o então deputado pretendia ver o nome dele inscrito entre os “heróis da Pátria” –, nenhum outro militar ocupara o espaço nos protestos de militantes de esquerda deixado pelo coronel, cuja imagem simbolizava todos os agentes envolvidos nas violações dos direitos humanos praticadas durante o regime militar. É este o papel que Belham agora parece desempenhar.

Após deixar o DOI do Rio, Belham fez a Escola de Comando e Estado-Maior. Em seguida, foi servir no Centro de Informações do Exército (CIE), onde dirigiu, ainda nos anos 1970, a Seção de Operações do órgão, a 104. Em 1977, ele substituiu nessa tarefa o amigo Brilhante Ustra. Permaneceu ali até transmitir o cargo a outro experiente “mágico” do DOI paulista, o tenente-coronel Ênio Pimentel da Silveira, o Doutor Ney, que assumiu a chefia da seção em 1980.
Belham é um dos dois únicos réus vivos do processo Paiva – o general foi denunciado pelo crime em 2014. A ação penal subiu para o STF, que agora vai analisar se a Lei da Anistia se aplica aos crimes de sequestro e cárcere privado cometidos durante a ditadura militar. Para tanto, deve julgar três casos – o de Paiva e o de Mário Alves estão entre eles –, que devem ter repercussão geral.

A tese é a de que a ocultação de cadáver e o sequestro são crimes permanentes, portanto, ainda estariam sendo cometidos depois da Lei de Anistia. Por isso, não seriam abrangido pela legislação que encerrou as ações penais sobre outros crimes praticados por agentes do Estado. O futuro de Belham deve ser definido pelo plenário do STF. Até lá, seu nome deve continuar como uma presença certa nos protestos dos que são contra a anistia do presente e a do passado.
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