domingo, 3 de fevereiro de 2013

Ainda a inspeção veicular por Celso Ming


O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, não explicou como vai cumprir uma de suas mais importantes promessas de campanha: acabar com a taxa de inspeção veicular. A isenção da taxa (que hoje é de R$ 47,44 para veículos de passeio) não resolveria o problema principal e criaria outros mais.
Do ponto de vista da administração da cidade, o maior problema não é o custo do serviço, mas a evasão à inspeção. Haddad reconhece que o Município vem perdendo R$ 320 milhões (cerca de 1% da arrecadação anual) em participação no IPVA (cobrado pelo Estado), porque cada vez mais os proprietários estão licenciando seus veículos em municípios vizinhos, onde não há obrigatoriedade de inspeção veicular.
A razão da evasão não é o tamanho da taxa, mas o custo dos serviços de reparo no veículo que não consegue passar no teste de inspeção.
Harald Peter Zwetkoff, diretor-presidente da Controlar, concessionária do serviço em São Paulo, admite que cerca de 20% dos veículos são reprovados no primeiro teste. Como São Paulo tem cerca de 4,5 milhões de veículos, incluídos aí os irregulares, mais de 1 milhão não consegue passar na inspeção. O que, em princípio, o motorista tem a fazer é procurar uma oficina especializada para serviços de revisão. Os reparos podem custar R$ 130, no caso de uma simples mangueira solta, ou avançar para mais de R$ 4 mil, caso haja algo mais grave, por exemplo a queima de óleo pelo motor.
Para esses, fica mais em conta licenciar seu carro numa cidade vizinha, com ou sem ajuda de despachante. Na entrada de municípios da Grande São Paulo, grandes faixas convidam os proprietários a deixar de licenciar em território paulistano para não serem engolidos por despesas.
Para a fúria dos ambientalistas, Haddad admite que estuda a isenção dos veículos durante o tempo de vigência da garantia de fábrica e, também, o espaçamento da inspeção, possivelmente para ser feita a cada dois anos, em vez de anualmente.
Essas providências apenas reduziriam o custo do serviço para o Município em caso de eliminação da tarifa para o proprietário. Não contribuiria para acabar com a evasão dos licenciamentos para outros municípios.
A proposta de aprovar lei estadual que imponha o serviço de inspeção veicular em todo o Estado esbarra com forte obstáculo político. Depois de ter sido demonstrado que a defesa do fim da taxa de inspeção é excelente bandeira eleitoral, não há político que se atreva a votar uma lei que contrarie suas ambições.
Na edição de 19 de janeiro, esta Coluna argumentou que um serviço de inspeção das condições de segurança do veículo é tão importante ou mais do que uma inspeção das emissões de poluentes. Carros com problemas de freio, com folga na direção, pneus carecas e amortecedores ineficientes matam mais, geram mais ferimentos e, no entanto, circulam livremente por ruas e rodovias.
O problema é o custo de um empreendimento desses. Mais ainda, é o custo dos reparos que serão cobrados. Além disso, não basta que esses serviços vigorem localmente. Têm de ser em escala nacional. Seria preciso, ainda, eficiente sistema que tire de circulação veículos deteriorados, como essas Kombis de 20 anos e as Brasílias amarelas que a gente ainda vê rodando por aí.

Que saudade da presença...


Renato Janine Ribeiro
É comum se discutir que mudanças a internet trouxe para as relações humanas. Como é este mundo pós-pós-moderno, diferente de tudo que antes existiu? Uma imagem ilustra o que uns chamam de perplexidade, uma imagem frequente, hilariante - e banal: cinco ou seis pessoas juntas, mas cada uma mergulhada em seu laptop ou celular. Parecem ser um grupo, só que não são, cada uma fechada em seu virtual.
Quem está fisicamente perto pode estar muito longe - Paulo Liebert/AE
Paulo Liebert/AE
Quem está fisicamente perto pode estar muito longe
Mas isso é mesmo uma novidade? Porque o distanciamento de quem fisicamente está próximo é um tema antigo na filosofia. Ele remonta pelo menos a Platão, no século 5º antes de Cristo.
Em seu diálogo Fedro, o filósofo grego conta que o ministro Tot apresentou ao faraó Tamus uma série de invenções. A escrita, disse Tot, permitiria guardar a memória do passado e transmitir mensagens a distância, superando as barreiras do tempo e do espaço. Mas o faraó a condena: ela permite a mentira, a falsidade. Assim, desde a Antiguidade - comenta Jacques Derrida - se valoriza a presença e se desconfia da ausência, da distância, da representação. Representar é tornar presente o ausente, é fazer que o morto ou o longínquo esteja conosco; o problema é que assim é fácil falsificá-lo. É o que dirá outro filósofo, Rousseau, no século 18: quando você fala com alguém na sua frente, os gestos e o olhar enriquecem a comunicação; já um texto escrito pode ser manipulado à vontade.
Os índios brasileiros também entram nessa notável querela. Em 1938, Lévi-Strauss, que lecionava na USP e ainda não se tornara o importante antropólogo que foi, esteve entre os nhambiquaras. O chefe da tribo notou que o branco escrevia. Quando Lévi-Strauss encerrou a estada entre eles e deu os presentes de praxe, o chefe pediu para distribuí-los - e pegou uma folha de papel, fingindo ler nela o nome de cada um e o presente a ele destinado. O antropólogo ficou fascinado: um analfabeto intuía a essência da escrita - que segundo Lévi-Strauss é fundar um poder forte, fugir ao diálogo, suprimir a igualdade, em suma, dar um golpe de Estado na sociedade.
Ora, quais invenções aumentam a representação, substituindo a presença, o olho a olho, o tête-à-tête, pela distância, falsidade ou manipulação? Primeiro, a escrita; depois, a imprensa; em nossos dias, a internet. Mas imprensa e internet não nasceram do nada. Cada uma potencializou o que já existia. Cada uma amplia as possibilidades da comunicação a distância. Com isso, cada uma castiga a presença. Essa se torna dispensável, inferior, secundária. O avanço da amizade online, que muitas vezes quando vamos conferir é falsa (as pessoas são mais feias ou pobres do que se disseram), desvaloriza a amizade presencial. Sem dúvida, essas formas de comunicação permitem que as pessoas saiam de seus recantos fechados. Um homossexual numa aldeia conservadora vive um inferno. Pelo acesso à rede, pode se fortalecer graças à solidariedade de amigos a distância. Mas isso já acontecia com o telefone, o correio ou mesmo com a imaginação. Uma amiga, que viveu na década de 1980 numa cidade machista do interior, proibiu de entrar em sua casa o melhor amigo do marido porque o visitante atacava sem parar as mulheres. O que deu forças a ela para isso? Pensar nos milhões de mulheres que estavam mudando a vida. As mídias e a internet aumentam esses referenciais, mas não os tiram do nada.
Perdemos muito com o declínio da presença? Seguramente. A presença, mesmo quando pobre, é de carne e osso. Nela há um cerne que nada pode substituir. O sexo virtual não substitui o intercurso. Há no convívio físico - e não apenas sexual - riquezas únicas. Isso não significa que necessariamente a presença traga a verdade, e a distância a mentira, como queriam Platão, Rousseau e Lévi-Strauss. Aliás, é exatamente nesse ponto que Derrida os contesta, em sua Gramatologia; mas os pontos seguintes Derrida não aborda.
Há aquilo que só a presença pode trazer. Suponhamos um excesso de representação, a virtualização maciça da "res", a substituição do toque presencial pelo touch da tela: tudo isso é insuficiente. De vez em quando, um jornalista passa uma semana somente se relacionando com o mundo pela internet. Disso resulta um artigo divertido e, geralmente, de final preocupado: uma versão atenuada de quem passa um ano só no fast-food. Mas qual é o grande problema dessa, digamos, hipoexperiência? É ser uma experiência pobre. O essencial na vida é experimentar. Não há palavra que resuma melhor a capacidade criativa do ser humano. Ora, experiência exige diversidade. Quem passa a vida lendo também se limita, tal como quem leva a vida na balada ou na praia. Proponho chamar algumas dessas experiências de "hipo", o prefixo grego para a posição inferior ou a escassez, e outras, por que não, de "hiper", prefixo para posição superior ou mesmo excesso. Há experiências que enriquecem, outras que atrofiam. Mas geralmente o fato de ter experiências diferentes ou mesmo opostas já é enriquecedor. E por isso mesmo o problema que muitos veem na internet não é apenas ela: é o fato de se tornar um vício, uma adição. Não temos registros que nos digam se a escrita, quando surgiu, gerou seus viciados, mas sabemos que a imprensa, sim, ou pelo menos a leitura do impresso: Dom Quixote e mais tarde Madame Bovary são os grandes exemplos. Ora, o justificado medo de danos até para a saúde física, para não dizer a mental, de se ficar 24/7 plugado na rede, é uma radicalização da leitura como vício; um medo que vem de longe.
RENATO JANINE RIBEIRO, PROFESSOR TITULAR DE ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, É AUTOR DE A SOCIEDADE CONTRA O SOCIAL - O ALTO CUSTO DA VIDA PÚBLICA NO BRASIL (COMPANHIA DAS LETRAS) 

Doula a quem doer



Apesar da resistência de hospitais, as acompanhantes de parto têm papel fundamental

02 de fevereiro de 2013 | 16h 00
Ana Cristina Duarte
Quando em 2001 o primeiro curso de formação de doulas teve lugar no Brasil, por iniciativa de um médico obstetra, ninguém poderia imaginar a importância que essas profissionais teriam num futuro tão próximo. Naquela época raras pessoas sabiam o que era uma doula e sua função. Apesar de ainda hoje se fazer muita confusão, muita gente já conhece as funções a elas atribuídas, sua importância e seu papel no cenário da assistência ao parto.
A doula Maíra Duarte ajuda a mãe Alcione Agnes uma hora após o nascimento de Giulia - www.carlaraiter.com
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A doula Maíra Duarte ajuda a mãe Alcione Agnes uma hora após o nascimento de Giulia
Doulas são mulheres treinadas para dar suporte durante o parto. Embora elas não possam executar a parte técnica da assistência, têm papel importante durante o processo, o que faz a maior diferença nos resultados. Em outras palavras, pensando num mesmo público, mesma maternidade, mesma equipe de médicos e enfermeiras, são as mulheres acompanhadas por doulas as que serão mais beneficiadas. Os estudos mostram redução de 20% nas taxas de cesariana e de 30% nos nascimentos de bebê com baixa nota nos primeiros minutos de vida, para citar alguns parâmetros, tudo isso sem nenhum efeito deletério.
Os dois modelos de atuação são as doulas do setor privado, remuneradas por seu trabalho de atendimento a clientes que as contratam, e as doulas voluntárias, que trabalham no sistema público sem conhecer anteriormente as gestantes que vão atender. Nos países do primeiro mundo, como Estados Unidos por exemplo, as doulas já estão ativas na assistência há mais de 30 anos.
No Brasil existem entre 2 mil e 4 mil doulas atuantes entre os dois setores, embora não haja um número oficial ou um cadastro único. Neste 31 de janeiro, o Ministério do Trabalho lançou a nova versão da Classificação Brasileira de Ocupações onde figura, pela primeira vez, a ocupação de doula. Não existe uma profissionalização oficial, tal qual ocorre em outras ocupações em que não há execução de procedimentos de risco para a população. Tal qual fotógrafos e cinegrafistas que adentram o recinto do parto, as doulas não executam procedimentos médicos ou de enfermagem, não oferecendo, portanto, riscos à população. As funções básicas da doula são: acompanhar, acalmar, oferecer suporte emocional e físico, realizar massagem localizada, sugerir movimentos, respirações, atitudes, enfim, uma miríade de ferramentas que ajudam a mulher a atravessar o intenso processo que é dar à luz um bebê.
Uma grande polêmica ocorreu essa semana quando dois grandes hospitais privados da capital paulista proibiram a presença de doulas nos partos, alegando risco de infecção, e recuaram após imensa repercussão na mídia e nas redes sociais. A questão, no entanto, passa longe dos alegados riscos.
Estamos falando de relações de poder, de interesses econômicos, de falta de gerenciamento do setor privado.
Uma boa parte dos hospitais privados do Brasil apresenta taxas de cesarianas superiores a 90%. As cesarianas marcadas são o pilar de sustentação financeira das maternidades privadas. Partos normais, apesar de mais seguros, causam prejuízo, ocupam imprevisivelmente o leito por muito tempo, dão trabalho à enfermagem, não têm hora para ocorrer e não podem ser controlados. Doulas, acompanhando mulheres em trabalho de parto que querem muito um parto natural, perturbam a ordem natural de um centro cirúrgico estruturado para cesarianas pré-agendadas. Doulas pedem água, alimentos e explicações. Mulheres acompanhadas de doulas desobedecem às regras da instituição, questionam, desafiam. Pais acompanhados de doulas são mais protetores e questionadores. Doulas incomodam, partos normais incomodam.
Enquanto todos os setores do nosso país não assumirem que as mulheres estão sendo roubadas em seus partos, tanto no setor privado, com suas cesarianas agendadas, quanto no setor público, com seus partos altamente medicalizados e violentos, não poderemos avançar de fato nas crises profissionais. O problema não são as doulas e sua regulamentação. O problema não são as alegadas infecções provocadas pela presença de mais um acompanhante. Estamos falando de um processo de violência coletiva que vem se perpetuando há décadas em nosso país, sob os olhos semicerrados do governo, da Agência Nacional de Saúde Suplementar, do Ministério da Saúde, das secretarias.
Se nem a Lei do Acompanhante é obedecida em mais da metade das instituições paulistas, o que se dirá de uma iniciativa que deve ser tomada de livre e espontânea vontade pelas instituições para melhorar a assistência às mulheres que desejam um parto suave, prazeroso, positivo, acolhedor? Ainda temos um longo caminho a percorrer, e as doulas continuarão a ter um papel fundamental nesse processo.
ANA CRISTINA DUARTE, OBSTETRIZ PELA USP E INSTRUTORA EM CAPACITAÇÃO DE DOULAS, É COORDENADORA DO GRUPO DE APOIO À MATERNIDADE ATIVA (GAMA) E AUTORA DE PARTO NORMAL OU CESÁREA? O QUE TODA MULHER DEVE SABER - E TODO HOMEM TAMBÉM (UNESP)