domingo, 3 de fevereiro de 2013

Que saudade da presença...


Renato Janine Ribeiro
É comum se discutir que mudanças a internet trouxe para as relações humanas. Como é este mundo pós-pós-moderno, diferente de tudo que antes existiu? Uma imagem ilustra o que uns chamam de perplexidade, uma imagem frequente, hilariante - e banal: cinco ou seis pessoas juntas, mas cada uma mergulhada em seu laptop ou celular. Parecem ser um grupo, só que não são, cada uma fechada em seu virtual.
Quem está fisicamente perto pode estar muito longe - Paulo Liebert/AE
Paulo Liebert/AE
Quem está fisicamente perto pode estar muito longe
Mas isso é mesmo uma novidade? Porque o distanciamento de quem fisicamente está próximo é um tema antigo na filosofia. Ele remonta pelo menos a Platão, no século 5º antes de Cristo.
Em seu diálogo Fedro, o filósofo grego conta que o ministro Tot apresentou ao faraó Tamus uma série de invenções. A escrita, disse Tot, permitiria guardar a memória do passado e transmitir mensagens a distância, superando as barreiras do tempo e do espaço. Mas o faraó a condena: ela permite a mentira, a falsidade. Assim, desde a Antiguidade - comenta Jacques Derrida - se valoriza a presença e se desconfia da ausência, da distância, da representação. Representar é tornar presente o ausente, é fazer que o morto ou o longínquo esteja conosco; o problema é que assim é fácil falsificá-lo. É o que dirá outro filósofo, Rousseau, no século 18: quando você fala com alguém na sua frente, os gestos e o olhar enriquecem a comunicação; já um texto escrito pode ser manipulado à vontade.
Os índios brasileiros também entram nessa notável querela. Em 1938, Lévi-Strauss, que lecionava na USP e ainda não se tornara o importante antropólogo que foi, esteve entre os nhambiquaras. O chefe da tribo notou que o branco escrevia. Quando Lévi-Strauss encerrou a estada entre eles e deu os presentes de praxe, o chefe pediu para distribuí-los - e pegou uma folha de papel, fingindo ler nela o nome de cada um e o presente a ele destinado. O antropólogo ficou fascinado: um analfabeto intuía a essência da escrita - que segundo Lévi-Strauss é fundar um poder forte, fugir ao diálogo, suprimir a igualdade, em suma, dar um golpe de Estado na sociedade.
Ora, quais invenções aumentam a representação, substituindo a presença, o olho a olho, o tête-à-tête, pela distância, falsidade ou manipulação? Primeiro, a escrita; depois, a imprensa; em nossos dias, a internet. Mas imprensa e internet não nasceram do nada. Cada uma potencializou o que já existia. Cada uma amplia as possibilidades da comunicação a distância. Com isso, cada uma castiga a presença. Essa se torna dispensável, inferior, secundária. O avanço da amizade online, que muitas vezes quando vamos conferir é falsa (as pessoas são mais feias ou pobres do que se disseram), desvaloriza a amizade presencial. Sem dúvida, essas formas de comunicação permitem que as pessoas saiam de seus recantos fechados. Um homossexual numa aldeia conservadora vive um inferno. Pelo acesso à rede, pode se fortalecer graças à solidariedade de amigos a distância. Mas isso já acontecia com o telefone, o correio ou mesmo com a imaginação. Uma amiga, que viveu na década de 1980 numa cidade machista do interior, proibiu de entrar em sua casa o melhor amigo do marido porque o visitante atacava sem parar as mulheres. O que deu forças a ela para isso? Pensar nos milhões de mulheres que estavam mudando a vida. As mídias e a internet aumentam esses referenciais, mas não os tiram do nada.
Perdemos muito com o declínio da presença? Seguramente. A presença, mesmo quando pobre, é de carne e osso. Nela há um cerne que nada pode substituir. O sexo virtual não substitui o intercurso. Há no convívio físico - e não apenas sexual - riquezas únicas. Isso não significa que necessariamente a presença traga a verdade, e a distância a mentira, como queriam Platão, Rousseau e Lévi-Strauss. Aliás, é exatamente nesse ponto que Derrida os contesta, em sua Gramatologia; mas os pontos seguintes Derrida não aborda.
Há aquilo que só a presença pode trazer. Suponhamos um excesso de representação, a virtualização maciça da "res", a substituição do toque presencial pelo touch da tela: tudo isso é insuficiente. De vez em quando, um jornalista passa uma semana somente se relacionando com o mundo pela internet. Disso resulta um artigo divertido e, geralmente, de final preocupado: uma versão atenuada de quem passa um ano só no fast-food. Mas qual é o grande problema dessa, digamos, hipoexperiência? É ser uma experiência pobre. O essencial na vida é experimentar. Não há palavra que resuma melhor a capacidade criativa do ser humano. Ora, experiência exige diversidade. Quem passa a vida lendo também se limita, tal como quem leva a vida na balada ou na praia. Proponho chamar algumas dessas experiências de "hipo", o prefixo grego para a posição inferior ou a escassez, e outras, por que não, de "hiper", prefixo para posição superior ou mesmo excesso. Há experiências que enriquecem, outras que atrofiam. Mas geralmente o fato de ter experiências diferentes ou mesmo opostas já é enriquecedor. E por isso mesmo o problema que muitos veem na internet não é apenas ela: é o fato de se tornar um vício, uma adição. Não temos registros que nos digam se a escrita, quando surgiu, gerou seus viciados, mas sabemos que a imprensa, sim, ou pelo menos a leitura do impresso: Dom Quixote e mais tarde Madame Bovary são os grandes exemplos. Ora, o justificado medo de danos até para a saúde física, para não dizer a mental, de se ficar 24/7 plugado na rede, é uma radicalização da leitura como vício; um medo que vem de longe.
RENATO JANINE RIBEIRO, PROFESSOR TITULAR DE ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, É AUTOR DE A SOCIEDADE CONTRA O SOCIAL - O ALTO CUSTO DA VIDA PÚBLICA NO BRASIL (COMPANHIA DAS LETRAS) 

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