segunda-feira, 30 de abril de 2012

A terceira revolução industrial


22/04/2012 | Enviar | Imprimir | Comentários: 1 | A A A
A primeira revolução industrial começou na Inglaterra no final do século XVIII, com a mecanização da indústria têxtil. Tarefas feitas anteriormente a mão em centenas de ateliês foram reunidas em um único espaço, e a fábrica nasceu. A segunda revolução industrial veio no início do século XX, quando Henry Ford dominou a linha de montagem móvel e inaugurou a era da produção em massa. As duas primeiras revoluções industriais tornaram as pessoas mais ricas e mais urbanas. Agora, uma terceira revolução está em curso. A manufatura está migrando para o campo digital. E isso pode mudar não apenas os negócios, mas muitas outras coisas mais.
Uma série de tecnologias notáveis estão convergindo: software inteligente, novos materiais, robôs mais ágeis, novos processos (em especial a impressão tridimensional) e toda uma gama de serviços baseados na web. A fábrica do passado baseou-se na produção de zilhões de produtos idênticos: uma frase atribuída a Ford diz que os compradores de carro podem escolher um automóvel na cor que quiserem, desde que ele seja preto. Mas o custo de produção de lotes muito menores de uma variedade mais ampla, com cada produto adaptado com precisão aos caprichos de cada cliente, está caindo. A fábrica do futuro se concentrará na customização em massa e pode acabar se assemelhando mais a esses ateliês do que à linha de montagem da Ford.
A velha maneira de fazer as coisas envolvia várias peças que deveriam ser aparafusadas ou soldadas. Agora, um produto pode ser projetado em um computador e “impresso” em uma impressora 3D, que cria um objeto sólido através da construção de camadas sucessivas de material. O design digital pode ser ajustado com alguns cliques. A impressora 3D pode funcionar de maneira autônoma, e pode fazer muitas coisas que são complexas demais para as fábricas tradicionais. Com o tempo, essas máquinas incríveis podem se tornar capazes de fazer quase qualquer coisa, em qualquer lugar – desde a sua garagem até uma aldeia africana.
As aplicações da impressão 3D são especialmente complexas. Atualmente, aparelhos auditivos e partes de jatos militares de alta tecnologia estão sendo impressos em formatos personalizados. A geografia das cadeias de abastecimento vai mudar. Um engenheiro que trabalha no meio de um deserto que carece de uma determinada ferramenta não tem mais que esperar que ela seja entregue da cidade mais próxima. Ele pode simplesmente baixar o projeto e imprimi-lo. Os dias em que os projetos eram paralisados por falta de peças, ou que os clientes reclamavam que não podiam mais encontrar peças de reposição para as coisas que tinham comprado, estão prestes a se tornar lembranças esquisitas do passado.
Outras mudanças são quase tão importantes. Novos materiais são mais leves, mais fortes e mais duráveis do que os antigos. A fibra de carbono está substituindo o aço e o alumínio em produtos que vão desde aviões até bicicletas. Novas técnicas permitem que engenheiros moldem objetos minúsculos. A nanotecnologia está dando recursos avançados aos produtos, tais como ataduras que ajudam a curar cortes, motores que funcionam de forma mais eficiente, e pratos que são limpos com mais facilidade. Vírus geneticamente modificados estão sendo desenvolvidos para produzir itens como baterias. E com a internet permitindo que designers colaborem cada vez mais em novos produtos, as barreiras à entrada estão caindo. A Ford precisou de muito capital para construir sua fábrica gigantesca; o seu equivalente moderno pode começar com pouco mais que um laptop e uma sede pela invenção.
Como todas as revoluções, ela será perturbadora. A tecnologia digital já abalou os setores de mídia e varejo, assim como fábricas de algodão esmagaram os teares manuais e os automóveis aposentaram muitos fabricantes de ferraduras. Muitos vão olhar para as fábricas do futuro e estremecer. Elas não estarão cheias de máquinas sujas operadas por homens em macacões oleosos. Muitas serão completamente limpas e quase desertas. Algumas montadoras já produzem duas vezes o número de veículos por empregado, do que faziam apenas uma década ou mais atrás. A maioria dos empregos não estará no chão da fábrica, mas nos escritórios nas proximidades, que estarão cheios de designers, engenheiros, especialistas de TI, especialistas em logística, marketing pessoal e outros profissionais. Os empregos na indústria do futuro exigirão mais habilidades. Muitas tarefas enfadonhas e repetitivas se tornarão obsoletas: você não precisa mais de rebitadores quando um produto não tem rebites.
A revolução vai afetar não apenas a maneira como as coisas são feitas, mas também onde elas são produzidas. Fábricas costumavam se deslocar para países de baixos salários para reduzir custos trabalhistas. Mas os custos trabalhistas estão se tornando cada vez menos importantes: um iPad de US$ 499 inclui apenas cerca de US$ 33 de trabalho manufatureiro, do qual a montagem final na China foi responsável por apenas US$ 8. A produção offshore está voltando cada vez mais para os países ricos, não porque os salários chineses estão subindo, mas porque as empresas agora querem estar mais perto de seus clientes, para que eles possam responder mais rapidamente às mudanças na demanda. E alguns produtos são tão sofisticados que se torna vantajoso ter as pessoas que os concebem e as pessoas que os produzem no mesmo lugar. O Boston Consulting Group estima que, em áreas como os transportes, computadores, produtos metalúrgicos e máquinas, um número entre 10 e 30% dos bens que os Estados Unidos importam da China poderiam ser produzidos no país até 2020, aumentando a produção norte-americana em até US$ 55 bilhões anuais.
O choque da novidade
Os consumidores terão pouca dificuldade em adaptar-se à nova era de melhores produtos, rapidamente entregues. Os governos, no entanto, poderão ter mais problemas. Seu instinto é o de proteger indústrias e empresas que já existem, e não as empresas iniciantes que podem destruí-las. Eles inundam antigas fábricas com subsídios e chefes intimidadores que querem transferir a produção para o exterior. Eles gastam bilhões que apóiam as novas tecnologias que, eles acreditam que irão prevalecer. E eles se agarram a uma crença romântica de que a produção é superior aos serviços, e muito mais importante que as finanças.
Nada disto faz sentido. As linhas entre indústria e serviços estão se tornando cada vez menos visíveis. A Rolls-Royce já não vende mais motores a jato; ela vende as horas que cada motor está impulsionando um avião no céu. Os governos sempre foram péssimos na hora de escolher os vencedores, e eles tendem a se tornar piores, enquanto uma legião de empresários troca projetos online, transforma esses projetos em produtos em casa e os comercializa globalmente da uma garagem. Com a revolução em andamento, os governos devem manter o básico: melhores escolas para uma força de trabalho qualificada, regras claras, e igualdade de condições para empresas de todos os tipos. Deixe o resto para os revolucionários.
F22/04/2012 | Enviar | Imprimir | Comentários: 1 | A A A
A primeira revolução industrial começou na Inglaterra no final do século XVIII, com a mecanização da indústria têxtil. Tarefas feitas anteriormente a mão em centenas de ateliês foram reunidas em um único espaço, e a fábrica nasceu. A segunda revolução industrial veio no início do século XX, quando Henry Ford dominou a linha de montagem móvel e inaugurou a era da produção em massa. As duas primeiras revoluções industriais tornaram as pessoas mais ricas e mais urbanas. Agora, uma terceira revolução está em curso. A manufatura está migrando para o campo digital. E isso pode mudar não apenas os negócios, mas muitas outras coisas mais.
Uma série de tecnologias notáveis estão convergindo: software inteligente, novos materiais, robôs mais ágeis, novos processos (em especial a impressão tridimensional) e toda uma gama de serviços baseados na web. A fábrica do passado baseou-se na produção de zilhões de produtos idênticos: uma frase atribuída a Ford diz que os compradores de carro podem escolher um automóvel na cor que quiserem, desde que ele seja preto. Mas o custo de produção de lotes muito menores de uma variedade mais ampla, com cada produto adaptado com precisão aos caprichos de cada cliente, está caindo. A fábrica do futuro se concentrará na customização em massa e pode acabar se assemelhando mais a esses ateliês do que à linha de montagem da Ford.
A velha maneira de fazer as coisas envolvia várias peças que deveriam ser aparafusadas ou soldadas. Agora, um produto pode ser projetado em um computador e “impresso” em uma impressora 3D, que cria um objeto sólido através da construção de camadas sucessivas de material. O design digital pode ser ajustado com alguns cliques. A impressora 3D pode funcionar de maneira autônoma, e pode fazer muitas coisas que são complexas demais para as fábricas tradicionais. Com o tempo, essas máquinas incríveis podem se tornar capazes de fazer quase qualquer coisa, em qualquer lugar – desde a sua garagem até uma aldeia africana.
As aplicações da impressão 3D são especialmente complexas. Atualmente, aparelhos auditivos e partes de jatos militares de alta tecnologia estão sendo impressos em formatos personalizados. A geografia das cadeias de abastecimento vai mudar. Um engenheiro que trabalha no meio de um deserto que carece de uma determinada ferramenta não tem mais que esperar que ela seja entregue da cidade mais próxima. Ele pode simplesmente baixar o projeto e imprimi-lo. Os dias em que os projetos eram paralisados por falta de peças, ou que os clientes reclamavam que não podiam mais encontrar peças de reposição para as coisas que tinham comprado, estão prestes a se tornar lembranças esquisitas do passado.
Outras mudanças são quase tão importantes. Novos materiais são mais leves, mais fortes e mais duráveis do que os antigos. A fibra de carbono está substituindo o aço e o alumínio em produtos que vão desde aviões até bicicletas. Novas técnicas permitem que engenheiros moldem objetos minúsculos. A nanotecnologia está dando recursos avançados aos produtos, tais como ataduras que ajudam a curar cortes, motores que funcionam de forma mais eficiente, e pratos que são limpos com mais facilidade. Vírus geneticamente modificados estão sendo desenvolvidos para produzir itens como baterias. E com a internet permitindo que designers colaborem cada vez mais em novos produtos, as barreiras à entrada estão caindo. A Ford precisou de muito capital para construir sua fábrica gigantesca; o seu equivalente moderno pode começar com pouco mais que um laptop e uma sede pela invenção.
Como todas as revoluções, ela será perturbadora. A tecnologia digital já abalou os setores de mídia e varejo, assim como fábricas de algodão esmagaram os teares manuais e os automóveis aposentaram muitos fabricantes de ferraduras. Muitos vão olhar para as fábricas do futuro e estremecer. Elas não estarão cheias de máquinas sujas operadas por homens em macacões oleosos. Muitas serão completamente limpas e quase desertas. Algumas montadoras já produzem duas vezes o número de veículos por empregado, do que faziam apenas uma década ou mais atrás. A maioria dos empregos não estará no chão da fábrica, mas nos escritórios nas proximidades, que estarão cheios de designers, engenheiros, especialistas de TI, especialistas em logística, marketing pessoal e outros profissionais. Os empregos na indústria do futuro exigirão mais habilidades. Muitas tarefas enfadonhas e repetitivas se tornarão obsoletas: você não precisa mais de rebitadores quando um produto não tem rebites.
A revolução vai afetar não apenas a maneira como as coisas são feitas, mas também onde elas são produzidas. Fábricas costumavam se deslocar para países de baixos salários para reduzir custos trabalhistas. Mas os custos trabalhistas estão se tornando cada vez menos importantes: um iPad de US$ 499 inclui apenas cerca de US$ 33 de trabalho manufatureiro, do qual a montagem final na China foi responsável por apenas US$ 8. A produção offshore está voltando cada vez mais para os países ricos, não porque os salários chineses estão subindo, mas porque as empresas agora querem estar mais perto de seus clientes, para que eles possam responder mais rapidamente às mudanças na demanda. E alguns produtos são tão sofisticados que se torna vantajoso ter as pessoas que os concebem e as pessoas que os produzem no mesmo lugar. O Boston Consulting Group estima que, em áreas como os transportes, computadores, produtos metalúrgicos e máquinas, um número entre 10 e 30% dos bens que os Estados Unidos importam da China poderiam ser produzidos no país até 2020, aumentando a produção norte-americana em até US$ 55 bilhões anuais.
O choque da novidade
Os consumidores terão pouca dificuldade em adaptar-se à nova era de melhores produtos, rapidamente entregues. Os governos, no entanto, poderão ter mais problemas. Seu instinto é o de proteger indústrias e empresas que já existem, e não as empresas iniciantes que podem destruí-las. Eles inundam antigas fábricas com subsídios e chefes intimidadores que querem transferir a produção para o exterior. Eles gastam bilhões que apóiam as novas tecnologias que, eles acreditam que irão prevalecer. E eles se agarram a uma crença romântica de que a produção é superior aos serviços, e muito mais importante que as finanças.
Nada disto faz sentido. As linhas entre indústria e serviços estão se tornando cada vez menos visíveis. A Rolls-Royce já não vende mais motores a jato; ela vende as horas que cada motor está impulsionando um avião no céu. Os governos sempre foram péssimos na hora de escolher os vencedores, e eles tendem a se tornar piores, enquanto uma legião de empresários troca projetos online, transforma esses projetos em produtos em casa e os comercializa globalmente da uma garagem. Com a revolução em andamento, os governos devem manter o básico: melhores escolas para uma força de trabalho qualificada, regras claras, e igualdade de condições para empresas de todos os tipos. Deixe o resto para os revolucionários.
Fontes: The Economist - The third industrial revolutionontes: The Economist - The third industrial revolution

domingo, 29 de abril de 2012

Os melhores filmes de todos os tempos ainda não foram feitos


  • 29 de abril de 2012|
  •  
  • 18h01|
  • Por Alexandre Matias
O cinema não vai acabar, mas mudar
Há uma semana, durante o encontro Global Inet, realizado em Genebra, na Suíça, o fundador da Wikipedia, Jimmy Wales, deu uma declaração no mínimo polêmica. Entusiasmado com a recente notícia de que seu site fez a vetusta Encyclopedia Britannica, que era impressa desde 1768, aposentar sua versão em papel, ele profetizou sobre o futuro da indústria do cinema: “Ninguém se dará conta quando Hollywood morrer. E mais, ninguém vai se importar”.
Não é uma continuação do velho discurso deslumbrado com o digital que o transformava em carrasco final de velhas mídias e tecnologias. Ao contrário do que foi alardeado por todo o século 20, o rádio não matou o jornal, como a TV não matou o cinema, nem o telefone matou a conversação. E quando o tema é internet, tais “mortes anunciadas” parecem apenas provocações – afinal, a internet não “mata” a indústria da música, do audiovisual, da fotografia ou das notícias, mas agrega cada faceta destes universos dentro de sua interface.
A questão, frisou Wales, não é tecnológica, mas social, citando a própria filha, Kira, de 11 anos, como exemplo: “Ela maneja com total desenvoltura uma câmara de alta definição, que usa para captar, editar e produzir seus próprios filmes na internet”. E continuou: “Quando essa geração completar 22 anos realizará filmes com mais qualidade que os de Hollywood. Esses mesmos filmes serão mais populares e destruirão o modelo de negócio vigente. Ocorrerá o mesmo que ocorreu com a Wikipedia, que fez que a Encyclopaedia Britannica deixasse de ser impressa 11 anos após a criação (da Wikipedia)”, declarou. E ao finalizar, cravou: “Há uma grande possibilidade que todo o modelo de produção esteja completamente ultrapassado em muito pouco tempo.”
Isso não quer dizer que o cinema vai acabar – longe disso. Wales falava especificamente da indústria cinematográfica norte-americana, concentrada nos estúdios de Hollywood, em Los Angeles. O modelo funcionou por décadas e foi se adaptando aos tempos: das salas de exibição à chegada da locação (primeiro o VHS, depois o DVD, outros candidatos a “assassinos do cinema”, cada um em seu tempo), passando pela TV a cabo e seu pay-per-view, filmes exibidos em voos até a tecnologia 3D. Tudo isso ficava concentrado na mão de alguns executivos, uma panela de técnicos, uma turma de atores e outra de autores. Mas eis que chegam as mídias digitais e, de repente, qualquer um pode fazer cinema. A princípio apenas alguns filminhos, feitos às vezes com o celular. Acontece que aos poucos outros truques típicos de uma indústria centenária (do figurino aos efeitos especiais, da iluminação à direção de arte, do roteiro à fotografia) são absorvidos por uma geração que nem sequer chegou à maioridade, como a filha de Wales.
Quando chegarem, em menos de dez anos, assistiremos a filmes completamente diferentes, que não se limitam a apostar no que é certo e fugir do que for mais ousado (este sim, o grande erro da indústria tradicional).
Falando de outra indústria, a da música, o ex-guitarrista do grupo inglês Oasis, Noel Gallagher, disse que “o consumidor não queria Sgt. Pepper’s (o clássico disco dos Beatles), nem Jimi Hendrix, nem Sex Pistols”, ao reclamar que a indústria havia se tornado uma imensa pesquisa sobre as vontades do público. Ele ecoava uma frase de Henry Ford muito repetida por Steve Jobs: “Se perguntássemos o que os consumidores queriam, eles não iriam querer o carro, e, sim, um cavalo mais rápido”.
A mídia não vai morrer, mas precisa se reinventar para se adequar. E se a indústria que toma conta disso não assumir logo estas rédeas, outros vão fazer isto por ela, criando uma nova indústria. A melhor analogia sobre a mudança remete à invenção da fotografia, que, teoricamente, acabaria com a função dos retratistas, uma vez que ninguém pagaria para ter um retrato pintado. O que aconteceu? Os pintores da virada do século 19 para o 20 criaram o impressionismo e o modernismo. E isso deve acontecer com o cinema, e logo. Como diz um amigo meu, ainda não vimos os melhores filmes de todos os tempos.

Em tuas mãos, por Mônica Bergamo

FOLHA DE SP - 29/04/12


O maestro João Carlos Martins opera o cérebro para recuperar movimentos; consciente, sentia o sangue escorrer na cabeça e gritava de dor; mas diz que, já na cirurgia, voltou a "sonhar"

"Olha aqui a cirurgia." Uma semana depois de passar por uma operação no cérebro que durou mais de nove horas, o maestro João Carlos Martins, 71, aperta o botão de um DVD Player para mostrar as imagens impressionantes do procedimento. O aparelho, na bancada de seu camarim, num auditório de SP, demora alguns segundos para carregar.

"A cirurgia!", grita ele quando as primeiras cenas aparecem. "Você vai ver que precisa ter muito amor à profissão para enfrentar isso."

As imagens mostram o maestro deitado. Uma parafernália de fios e ferros circunda a sua cabeça. "Eu tive que ficar acordado o tempo todo. E mostrando um astral legal... Olha, a anestesia! Olha!" Uma agulha entra em sua testa. "Olha a serra!" Aumenta o volume do DVD e diz que, na hora, escutava o som do aparelho abrindo um orifício em sua cabeça. "Tudo, tudo, eu escutava tudo!"

Gritava: "Ai, meu Deus! Meu Deus do Céu!". "O Paulo [Niemeyer, neurologista que comandou a cirurgia] avisava os outros: 'O sangue está escorrendo!' E eu sentia o sangue na minha cabeça."

"É agora! Atenção", diz Martins, olhos grudados na tela. A voz do médico destaca-se no barulho dos equipamentos cirúrgicos. Ele pede a Martins que abra a mão esquerda. O maestro bate os dedos no próprio corpo, simulando tocar piano. "Isso tudo com o crânio aberto, miolos aparecendo", diz, ao rever a cena. "Não é impressionante?" Na tela, gira o pulso, estica os dedos. "Eu não abria a mão havia dez anos..."

O maestro sofre de uma disfunção cerebral conhecida como "distonia do pianista", explica Niemeyer à coluna. "É algo que pode acometer, por exemplo, quem escreve muito e tem a 'cãibra do escrivão'." São contrações involuntárias que comprometem os movimentos. No caso de Martins, ela evoluiu a ponto de seu braço esquerdo quase grudar no peito. Em pouco tempo, ele poderia ser obrigado a deixar de reger.

Seria a segunda tragédia profissional de sua vida. Até 1998, Martins era pianista reconhecido internacionalmente, considerado um dos maiores intérpretes de Bach. Daí, o primeiro baque: começou a ter dores "insuportáveis" na mão direita, lesionada anos antes numa partida de futebol. "Era como uma faca entrando na minha pele." Os médicos decidiram cortar o nervo para que ele perdesse a sensibilidade. A mão atrofiou. Passou a tocar apenas com a mão esquerda.

Quatro anos depois, a distonia começou a afetar a outra mão. Em 2002, ele se despediu do piano em um concerto em Pequim. Reencontrou a música em 2004, quando passou a reger. Há alguns meses, alertado pelo maestro Julio Medaglia, percebeu que estava perdendo o movimento dos braços.

Procurou a clínica de Niemeyer. Que disse a ele que seria possível, numa cirurgia, recuperar o movimento dos braços. João Carlos Martins insistiu: "Eu pedi que ele tentasse também abrir as minhas mãos. Aí, qual é o meu sonho? É voltar a tocar piano com a mão esquerda. Mas ele não prometeu isso. Prometeu abrir o meu braço. Eu já estava com o braço aqui atrás".

Na cirurgia, realizada no Rio, Niemeyer fez um furo no crânio do maestro. Por ali, programado por um computador, um equipamento levou um eletrodo até núcleos do cérebro responsáveis pela modulação dos movimentos. O paciente precisa ficar consciente porque são feitos testes para ver se o eletrodo está bem posicionado. Se ele apresentar algum distúrbio visual ou dormência, por exemplo, é sinal de que o aparelho não está no lugar correto dentro da cabeça.

Do eletrodo partem fios que, entre o osso e a pele, descem pelo pescoço até a região peitoral. Ali, são ligados a estimuladores, como marcapassos, que inibem as cargas elétricas que provocam as contrações no braço do maestro.

Martins puxa a camiseta, mostra o lugar onde foram instalados "os chips". "Aqui. Um japonês e outro americano. Se um pifar, tem outro. Os médicos agora vão regulando toda semana, até o ideal."

"A única coisa que eu posso dizer é que o Paulo Niemeyer é um gênio. Uma pessoa com uma coragem incrível. E, fora ser um ícone, mantém 150 leitos para pessoas carentes no Rio de Janeiro. É de uma humildade, uma dedicação...", diz o maestro.

"Hoje faz uma semana que eu estou aqui de volta, regendo." Aponta para a camiseta e lê a frase estampada nela: "A música venceu".

Diz que teve medo. "Claro. Claro. Em 1966, eu regi um concerto com o apêndice supurado. Eu tinha 26 anos. Saí do palco, fui internado, tive uma embolia pulmonar e fiquei dois meses em coma. Qualquer um que já tenha vivido isso sente muito medo."

Na hora em que "estava ouvindo o barulho daquela serra cortando a minha cabeça, pensei: 'Meu Deus, o que estou fazendo aqui?'. Com 71 anos, você não tem que arriscar mais nada na vida. Mas, no momento em que minha mão abriu na operação, já comecei a sonhar: 'Vou continuar a reger. E quem sabe volto a tocar piano também'. Porque, no fundo, eu não me conformo de não poder tocar. É uma dor. É como um cadáver enterrado lá dentro".

"Eu já fiz 20 operações", diz ele. "Troco toda uma vida por um sonho. E ele está relacionado à música."

A TV Globo acompanhou cada passo da cirurgia de João Carlos Martins. Dias antes, filmaram o maestro regendo com o braço esquerdo colado ao corpo. Captaram imagens dele fazendo a barba, com a cara ensanguentada -com movimentos precários, ele se cortava involuntariamente. Registraram sua entrada na sala de cirurgia. E um médico fez imagens das nove horas da operação que depois foram entregues à emissora. Tudo vai ao ar nesta terça, no "Profissão Repórter", comandado por Caco Barcellos. O programa vai falar de superação.

"Lá em Rondônia, ninguém sabe meu nome. Mas falam: 'Olha, o cara da novela, o cara da Vai-Vai, o cara da superação", diz Martins, que em 2009 participou do encerramento de "Viver a Vida", trama das oito da Globo, e foi tema de samba-enredo da escola de samba paulista. "No aeroporto, por onde eu ando, as pessoas vêm com lágrimas nos olhos me dizer: 'Perdi meu filho e o seu exemplo me inspirou'. Ou dizem que tiveram câncer, tudo o que você pode imaginar."

O maestro diz que, agora, começa a segunda parte da "longa estrada" de sua recuperação. "A minha mão esquerda estava atrofiada. Eu tenho que fazer todo um aprendizado para usá-la de novo." Ergue uma garrafa de Fanta Laranja com o polegar e os dois primeiros dedos da mão esquerda. "É uma superação psicológica. Meu maior adversário serei eu mesmo."

Mesmo sem a garantia de que voltará a tocar, começará a estudar piano de novo, "como uma criança de seis anos". E faz planos: "Estreei como pianista aos 20 anos, no Carnegie Hall de Nova York. Eleanor Roosevelt estava na plateia". Na casa de shows, regeu a Orquestra Bachiana Filarmônica em 2008 e chorou ao ver tremularem, na plateia, duas bandeiras do Brasil. "No Carnegie Hall, eu tive as maiores emoções da minha vida. Meu sonho é viver, lá, tudo isso de novo."