A maconha (Cannabis sativa) é uma planta fascinante, em especial para quem se debruça sem preconceito sobre seus efeitos psíquicos e medicinais. Um estudo molecular do composto canabidiol (CBD), por exemplo, detalha as vias bioquímicas do que vem sendo proposto como seu uso para combater psicose.
Como assim, a erva não é contraindicada para adolescentes e pessoas com tendências psicóticas justamente pelo potencial de desencadear surtos? Verdade. Só que neste caso a influência indesejada vem do tetrahidrocanabinol (THC).
Eis o paradoxo da marijuana: seus ingredientes mais conhecidos vão em sentidos opostos no que respeita a psicoses. Consumo de variedades com alto teor de THC, como skunk, estão comprovadamente associados com maior incidência de transtorno psicótico.
A relação aparece demonstrada num artigo publicado em 2019 na revista The Lancet Psychiatry por vários autores, alguns deles brasileiros: o risco de desenvolver transtorno desse tipo ao longo da vida é 3,2 maior para quem fuma a erva diariamente e 1,6 maior para os que recorrem a skunk e similares.
Na outra ponta está o CBD, que ajuda crianças portadoras de epilepsia grave, pacientes submetidos a quimioterapia e portadores de dores crônicas. São indicações que levaram vários países e estados americanos a licenciar o uso medicinal da maconha, e há quem proponha o CBD também como antipsicótico.
O grupo de Daniel Martins-de-Souza e Valéria de Almeida, da Unicamp, uniu esforços com o de Jaime Hallak, Antonio Zuardi e José Crippa, na USP de Ribeirão Preto, para esmiuçar os mecanismos fisiológicos por trás desse potencial. O trabalho saiu em 28 de maio no periódico Frontiers in Molecular Neuroscience.
Não vou aborrecer o leitor, aqui, com minúcias da complicada metodologia. De modo resumido, os neurocientistas analisaram os perfis das proteínas secretadas por células nervosas após as culturas serem tratadas com medicamentos antipsicóticos e CBD.
Os remédios testados foram clozapina e haloperidol, que pertencem respectivamente às classes de antipsicóticos atípicos e típicos.
Os típicos, ou de primeira geração, atacam mais os sintomas psicóticos mal batizados como positivos. Recebem esse nome as manifestações psíquicas que não ocorrem na pessoa saudável, como delírios e alucinações.
A segunda geração, a dos antipsicóticos atípicos, vai além: buscam conter tanto os sintomas positivos quanto os negativos. No segundo caso, trata-se do rebaixamento de funções psíquicas importantes, resultando em embotamento afetivo, isolamento social, perda cognitiva.
A parceria da Unicamp com a USP encontrou que o perfil proteômico induzido pelo CBD se assemelha mais à ação dos atípicos do que à dos típicos.
Com base em algumas pistas, investigou-se também se o composto da maconha tinha impacto sobre vias metabólicas envolvidas na desmielinização. Esse dano à bainha que cobre nervos é fundamental para transmissão de impulsos nervosos e tem sido implicada na esquizofrenia.
A análise das proteínas indicou que, sim, o CBD parece ajudar na remielinização. “Outra coisa que queremos explorar são os eventos bioquímicos disparados pelos antipsicóticos atuais e não disparados pelo CBD, pois esses eventos podem justamente ser aqueles culpados pelos efeitos colaterais”, indica Martins-de-Souza.
“Se um novo medicamento puder eliminá-los, voilà!”, entusiasma-se. “O que CBD e antipsicóticos tradicionais têm em comum deve ser bom para tratar doença; o que é bioquimicamente específico aos antipsicóticos tradicionais pode ser justamente o que não queremos em novos medicamentos.”
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