O ano de 1932 foi do Código Eleitoral e do voto feminino; dos manifestos Integralista e dos Pioneiros da Educação Nova; de mudanças na legislação trabalhista e recomposição de partidos políticos. O país estava convulsionado pela queda do arranjo oligárquico da Primeira República e pela derrota da autodenominada “Revolução Constitucionalista” de 9 de julho.
Apesar da derrota militar, o nome do levante paulista se impôs como uma vitória memorialística. Como recorda Francisco Quartim de Moares no seu livro 1932: a história invertida (Editora Anita Garibaldi, 2020) a Assembleia Constituinte já tinha sido convocada por Getúlio Vargas antes do nove de julho. Nem mesmo a exigência de um interventor civil e paulista era verdadeira, já que o interventor Pedro de Toledo foi exatamente o que as elites paulistas desejavam. Tanto é que no início do movimento sedicioso ele se tornou governador por aclamação.
Durante décadas o levante paulista foi reivindicado como um sacrifício heroico em defesa da democracia, do mérito, dos contratos, da eficiência, da raça bandeirante, das ideias liberais e outros valores que se lhe agregaram posteriormente. Com base nos relatos dos participantes é possível perceber que aqueles atributos não tem nenhuma vigência na realidade histórica, embora componham uma disputa bem sucedida pela memória. O mito da Guerra Cívica se prolongou no tempo, mesmo entre aqueles que nunca leram uma linha acerca dela.
Ela foi mais celebrada do que conhecida. Em muitas cidades de São Paulo a memória de 1932 se ergueu em museus com listas de combatentes e artefatos, como o famoso capacete de aço. Em alguns casos a memória de soldados paulistas da Força Expedicionária Brasileira também é misturada com a de 1932.
Não por acaso, foram os dois únicos conflitos bélicos reais, com dois lados em combate, que envolveram as Forças Armadas depois da Guerra do Paraguai. No mais, elas só participaram de massacres de civis, como Canudos, Contestado ou Volta Redonda; de torturas e assassinatos de presos políticos, indígenas e populações marginalizadas em regimes ditatoriais, como o Estado Novo e a Ditadura Militar de 1964; de golpes de Estado; intervenções em favelas e outras ações em que não havia uma situação que justificasse algum estado de beligerância.
A página mais importante de nossa História militar provocou escaramuças e manobras inteligentes da Coluna Prestes, mas interna corporis foi apagada pelo anticomunismo do partido militar. Em 1932 houve uma guerra, ainda que de baixas proporções comparativamente à coetânea Guerra do Chaco, conflito armado entre a Bolívia e o Paraguai que se estendeu de 1932 a 1935.
A elite de 1932 soube fazer uma contrarrevolução sem negar oficialmente os valores iniciais de 1930. Recusou-os na prática, mas também assumiu formas pragmáticas de acomodação. Ao longo do tempo, fez a apropriação indébita de duas bandeiras que não lhe cabiam: a crítica da corrupção e a do autoritarismo. Aquela identificada com o Partido Republicano Paulista e o regime de 1889 a 1930; e ambas com o trabalhismo.
Pouco importa que a elite paulista comandara a República Velha e que o PRP fosse uma das forças do levante de 1932. Aquelas duas “ideias força” são permanências de longa duração e ainda hoje são mobilizadas pelo discurso hegemônico nos meios de comunicação, agora espalhado por outras regiões do país.
Sua opção pelas armas não deixou de ser eficaz para negociar em melhores termos. A vitória do Governo Provisório só afastou o setor mais ideológico da elite paulista. No exterior os liberais conservadores curtiram seu exílio. Mas a classe dominante como um todo foi poupada e reintegrada. Foi este fato que permitiu perpetuar no tempo a memória da derrota militar como vitória política.
Isso foi possível mediante o afastamento do fenômeno tenentista com seus arroubos de classe média radicalizada. Como disse Góes Monteiro, "a Revolução Paulista trouxe esta consequência boa: restabeleceu a disciplina no Exército, que estava, realmente, ao sabor das conveniências de alguns elementos agitadores e exploradores da farda”. Obviamente, ele não diria que outros exploradores da farda exerceram depois o mesmo papel. O Partido Militar que se reestabeleceria depois de 1932 erigiu a disciplina como ideologia e não enquanto prática. Aliás, a maioria dos oficiais brasileiros só conhece uma ordem de marcha: “Direita, volver!”.
Lincoln Secco é professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP)
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