Sístoles e diástoles: assim como o coração se contrai e relaxa para bombear sangue, a epidemia de Covid também segue um ritmo pulsante, ditado pelo grau de distanciamento social. Na ausência de vacinas suficientes para garantir imunidade coletiva, quer dizer.
No Brasil, a primeira dose de imunizantes mal chegou a um quinto da população, por culpa federal de você-sabe-quem. Nessas condições, unidades de saúde só veem escassear doentes prostrados pelo corona quando autoridades estaduais e municipais apertam restrições à mobilidade.
No pulso seguinte, com o enésimo relaxamento das medidas restritivas, unidades básicas, prontos-socorros e UTIs voltam a se encher. Leitos lotam, suprimentos para intubação rareiam, oxigênio passa a faltar, mais e mais mortes acontecem. Já vimos esse filme.
A repetição do colapso hospitalar é tão previsível quanto batimentos cardíacos, nesse paciente intratável chamado Brasil. A analogia para por aqui, porque sístoles e diástoles se sucedem em frações de segundos, ao passo que altos e baixos de casos e óbitos na epidemia avançam com defasagem de três a quatro semanas.
O intervalo que separa o aumento no número de infecções da subida na quantidade de mortos corresponde ao tempo de progressão da doença nos infectados sintomáticos. Entre mais pessoas entrarem em circulação, contraírem o vírus, desenvolverem sintomas, serem internadas e precisarem de cuidados intensivos, vários dias transcorrem; uma vez intubados na UTI, demora outro tanto até que 80% sucumbam.
Retomando a analogia: ao longo da vida, o coração se desgasta sob o esforço de bater 100 mil vezes a cada 24 horas, 36 milhões por ano, década após década, e um dia para; a fadiga social com idas e vindas da Covid, porém, se manifesta bem mais rápido.
Nem saímos do segundo ciclo, e já bastou para população, governadores e prefeitos, exaustos, baixarem mais um pouco a guarda (de resto, imperfeita). Ninguém aguenta mais a falta de amigos, respeito, parentes, popularidade, sossego, recursos, vacinas, empregos, sedativos, renda, solidariedade, leitos, decência...
“Lockdown” virou palavra maldita, pecado mortal, graças aos esforços genocidas de Jair Bolsonaro. Seus adversários políticos fogem da providência como a cruz que se aparta do demônio. Nunca fizemos nada parecido com o trancamento geral.
Após tanta negligência com providenciar vacinas, testes em massa e rastreamento com separação de infectados seriam a única medida capaz de derrubar as curvas funéreas de maneira sustentável.
Na falta de tudo, torna-se fácil antever novo repique de mortes em poucas semanas. Pode parecer irresponsável tal presságio, quando o número de óbitos está em queda, mas até crianças sabem que a água do mar recua antes de tudo submergir no tsunami.
Não deveria haver espaço para alívio quando quase 2.000 brasileiros morrem por dia. Ainda por cima, a quantidade de infectados parou de cair e volta a subir em vários lugares. A lotação de UTIs ultrapassa alarmantes 80% na maioria dos estados e capitais.
Fique aqui a previsão, coisa mais arriscada para um jornalista fazer: em poucas semanas chegará uma terceira e mortífera onda. O Brasil alcançará a cifra chocante de meio milhão de mortos em meados de junho, ou logo depois.
É para anotar e cobrar a coluna quando chegar a hora. Nada dará mais satisfação do que errar, nesse caso.
Aos que acreditam em Deus, contudo, recomenda-se muita oração. Dos humanos, com ou sem poder de decisão, já não cabe esperar quase nada.
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