Eder Chiodetto
O fotógrafo German Lorca nasceu em São Paulo, em 1922, cem anos após a Independência do Brasil e cem dias depois da Semana de Arte Moderna, também na capital paulista. Ao nos deixar neste sábado, de causas naturais, estava a 20 dias de completar 99 anos.
Lorca veio ao mundo entre a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, entre o dadaísmo e o surrealismo —os dois principais movimentos de vanguarda, que alteraram profundamente o estatuto da arte.
Impulsionado por esse momento de revisão do mundo e da arte, Lorca, ao lado de Geraldo de Barros, morto em 1998, e de outros poucos fotógrafos mais rebeldes do Foto Cine Clube Bandeirante, revolucionaram a fotografia brasileira entre os anos 1940 e 1960, tirando-a do âmbito estritamente utilitário para inscrevê-la de vez no caminho da arte e dos labirintos da percepção visual experimental.
Os ecos das vanguardas artísticas europeias, ainda que tardios, fizeram florescer na produção desse grupo um imaginário que se traduziu na incorporação da latência do inconsciente e da câmera como ferramenta que, além de registrar o cotidiano, podia também ousar desvelar parcelas de beleza enclausurada nas tramas urdidas entre o formal e o sensorial.
Dessa forma, Lorca se lançou no uso de justaposições, solarizações e enquadramentos que buscavam o equilíbrio entre volumes e sombras, trazendo à luz um universo onírico que expandia o olhar.
Forjava-se assim, nesse momento no Brasil, a ideia modernista de um olhar que não é uma devolução mecânica do visível, mas uma sensibilidade reveladora dos mistérios contidos na caixa preta das máquinas fotográficas e nas fabulações do artista.
Essa produção fotoclubista, da qual Lorca é um dos ícones, tem sido cada vez mais estudada e colecionada por importantes instituições mundo afora. Ontem, enquanto Lorca se despedia desse mundo, estava sendo aberta no MoMA, o Museu de Arte Moderna de Nova York, a mostra “Fotoclubismo: Brazilian Modernist Photography, 1946–1964", com várias obras dele no acervo do museu.
Mas a importância de Lorca para a fotografia não se restringiu ao campo experimental e artístico. Ele, que havia deixado a profissão de contador, em 1952 abriu o G. Lorca Foto Stúdio, no centro de São Paulo, voltado à “fotografia técnica, industrial e comercial, reportagens em geral e álbuns para crianças e casamentos”. Fotografou o casamento da cantora Maysa e o do poeta Haroldo de Campos, entre muitos outros.
Em 1954, mudou seu estúdio para o Cambuci, com o nome Lorca Fotógrafos, e passou a se dedicar à publicidade, com grande notoriedade. Lorca teve o primeiro estúdio no qual era possível fotografar um carro, área na qual se destacou por conseguir fotografar os automóveis sem os indesejados reflexos dos flashes.
O caráter experimental do fotoclube, somado à sua exímia técnica, fez dele um dos fotógrafos de publicidade mais requisitado a partir dos anos 1960. Num mercado ainda incipiente, sem agências de modelo ou diretores de arte dando ordens, Lorca era livre para criar campanhas.
Seus filhos serviam de modelos quando se precisava de crianças nas imagens publicitárias. Uma vizinha de pernas bonitas foi requisitada para a famosa imagem da campanha de meias femininas Pégaso, com inspiração surrealista.
Lorca também fez a capa de disco de muitos artistas da gravadora RCA. Numa época em que as capas de LPs traziam obrigatoriamente o rosto do artista, ele inovou pondo a cantora Vanusa dançando, em movimento.
Na capa do álbum do grupo Os Incríveis, realizou uma solarização colorida, injetando a modernidade pautada pela sua busca incessante por imagens que fugiam do comum.
Diante das mudanças técnicas da fotografia, do preto e branco para a cor na publicidade e do analógico para o digital, Lorca manteve sempre uma atitude entusiasta. Adorava desafios.
Nos últimos anos, já aposentado do estúdio que transferiu aos filhos, divertia-se com as possibilidades de tratamento das imagens no Photoshop e adorava câmeras digitais. Estava sempre testando limites e possibilidades expressivas a partir dos jogos cromáticos que provocava, tendo por base sua vasta experiência em questionar dogmas e buscar imagens que lhe traziam prazer estético.
Após o MoMA ter adquirido obra suas em 2016, Lorca resolveu viajar a Nova York, aos 94 anos, para visitar o museu e terminar um trabalho que havia começado décadas antes: um ensaio fotográfico sobre o Central Park que ele sonhava expor junto com fotografias do parque do Ibirapuera. Esse material segue inédito.
O artista partiu, mas sua obra certamente seguirá iluminando as novas gerações. A atitude iconoclasta e poética de Lorca diante da linguagem que ele elegeu para ser sua arte e seu ofício é um legado dos mais potentes para nós que por aqui ficamos.
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