quarta-feira, 8 de julho de 2020

Não será trivial projetar um mecanismo de transferência de renda para o pós pandemia, Antonio Delfim Netto, FSP (definitivo)

Trinta séculos de história dos experimentos do homem, em busca da forma de organização capaz de acomodar seu desejo de liberdade com a sua necessidade de segurança vital, levaram-no às repúblicas democráticas pluripartidárias, com eleições livres e em tempo certo como têm, hoje, boa parte das sociedades.

A maior vantagem da democracia não é “escolher o melhor” (o que depende de juízo de valor), mas através de eleições limpas, livres e, em tempo certo, assegurar a transferência do poder incumbente de forma ordenada e pacífica.

As democracias não acabam abruptamente, a não ser por um eventual golpe de força, mas, de maneira sutil, lenta e contínua, erodidas por críticas sistemáticas às suas instituições quando acompanhadas por fatos concretos.

Nosso problema é que ao longo dos últimos 30 anos as políticas públicas só enfrentaram o grave problema da desigualdade de oportunidades com pífias medidas pontuais, como é o caso do Bolsa Família, carro chefe de FHC, Lula, Dilma e Temer. Caiu a ficha no pior momento. Vamos ter de projetar substituto para o auxílio emergencial de 600 reais por mês com um mecanismo de transferência de renda que seja economicamente financiável e politicamente aceitável, o que será difícil quando temos um déficit primário de 10% a 12% do PIB, e a relação dívida bruta/PIB aproxima-se, rapidamente, de 100%.

Na formulação desse programa não deve ser esquecido o objetivo permanente do Estado nacional: perseguir a construção da igualdade de oportunidades.

É preciso lembrar que o que chamamos de desenvolvimento é apenas o aumento da produtividade média de cada trabalhador, que depende da sua capacidade de usar o estoque de capital à sua disposição. Ela (e, logo, o desenvolvimento econômico) determina a quantidade de bens e serviços produzidos por unidade de tempo (PIB). Produzir é um problema técnico, mas a distribuição do produzido é um problema cuja solução depende de quem detém o poder político da sociedade.

Entretanto, por maior que seja o poder político, ele só poderá distribuir o que já foi produzido. Lembremos que o PIB é o total de bens e serviços produzidos no ano com o uso do estoque de capital existente. Na sua produção, consome-se uma parte deste estoque (depreciação). Se o destinado ao investimento não for liquidamente positivo, o PIB não crescerá. Isso lhe impõe, se desejar o crescimento do produzido, respeitar uma harmonia entre a quantidade de bens e serviços que será consumida e a quantidade de bens e serviços destinada a aumentar o estoque de capital que eleva a produtividade do trabalho. Não é um problema trivial.

Antonio Delfim Netto

Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.

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